29 de abril de 2023

A propósito de ter onde morar

 Por Sierra


Foto: Reprodução/Google Maps
O Edifício Leme antes do desabamento: o descaso para com a falta de moradia e com a vida humana resultou na morte de seis pessoas. O prédio estava condenado à demolição havia mais de vinte anos


A casa, a moradia, o lar comumente são, para muita gente, sinônimos de abrigo, de segurança, de fortaleza, de ninho e de aconchego. Para outro tanto de gente, a casa, a moradia, o lar significam insegurança, desassossego, preocupação, precariedade, risco de morte e medo. E, para outro grupo social, a casa, a moradia, o lar representam vontade de possuir, aspiração, algo inalcançável, impossibilidade.

Há quem diga que para realmente saber o que é a fome não saciada é preciso vivenciá-la. Do mesmo modo se diz sobre morar em ambientes precários e/ou não ter onde morar. Nunca passei fome, mas sei bem o que é viver na insegurança de ter de pagar pelo aluguel de uma casa quando a sua renda é insuficiente para cobrir as despesas básicas da vida prática. Uma das piores lembranças de minha infância é a memória das humilhações que a minha algumas vezes sofreu porque não conseguia sempre quitar a dívida com o locador. Eu nunca esquecerei isso.

A questão habitacional é uma pauta que não sai da ordem do dia neste país; e, no entanto, a realidade mostra que dificilmente ela será solucionada. Milhões de pessoas moram em áreas elevadas, como morros e encostas, arriscando ver suas residências e elas próprias serem arrastadas morro abaixo quando vier a próxima chuva. Milhões de pessoas residem em terrenos, seja em casas de alvenaria, seja em mocambos de madeira ou de toda espécie de materiais, como são feitas as palafitas, sujeitas a ter seus lares invadidos pelas enxurradas do temporal que se anunciou. E não sei quantos milhares - talvez, milhões - vivem pulando de uma casa ou de um apartamento ou de um quartinho para outro porque sua renda não é suficiente para pagar o aluguel; enquanto outros estão numa condição de rua, vivendo sob marquises e viadutos, dormindo ao relento à espera de uma providência divina ou política.

Não são poucos os espaços das grandes cidades - principalmente nos países pobres - ocupados por moradias precárias. Escrevendo na década de 1970, a economista britânica Barbara Ward anotou que tais ocupações, espalhadas pelo mundo, só mudam mesmo de nomes: favelas, callampas, barriadas, bustees e bidonvilles (Barbara Ward. La morada del hombre. Trad. Juan José Utrilla. Ciudad del México: Fondo de Cultura Económica, 1976, p. 352). E são para esses espaços que geralmente correm os desafortunados como os que vêm do interior para as grandes cidades carregando consigo o sonho do alcance de uma melhoria de vida. Realidade essa que fez Barbara Ward se perguntar: "? Es éste um veredicto fatalista, la sentencia a una miseria irredimible, impuesta a millones de emigrantes por el delito de ser demasiado numerosos, demasiado pobres, demasiado resuetos a abandonar sus aldeas, demasiado ansiosos por buscar algo mejor en la ciudad? Claro que no" (Barbara Ward. Op. cit., p. 352).

Cidades grandes de países pobres - e também de alguns ricos, como vimos na pandemia da covid-19 - apresentam contrastes sociais muito evidentes, como no Recife das palafitas no Rio Capibaribe e os prédios de alto padrão não muito distantes delas. E o que dizer de edifícios abandonados há muitos anos e em condições de uso que o poder público não trata de desapropriar ou de confiscar, em razão de dívidas com a Municipalidade, para transformá-los em moradias para pessoas de baixa renda? 

Na noite da última quinta-feira, no bairro de Jardim Atlântico, em Olinda, os contrastes sociais de cidades excludentes fez várias vítimas fatais: o Edifício Leme, um prédio-caixão que há mais de vinte anos foi condenado à demolição por conta de sua estrutura fragilizada indicar um possível colapso, desabou parcialmente provocando a morte de seis pessoas que, junto com outras, ocupavam irregularmente o imóvel.

Sim, é fato que há gente que ocupa tais edifícios às vezes tendo outros lugares para morar, mas assim o faz para tentar "ganhar alguma coisa do governo", como se diz por aí. No entanto, isso não altera uma evidente realidade de déficit habitacional que programas como o Minha casa, minha vida, não conseguiram até agora solucionar. E o desabamento parcial do Edifício Leme expôs que o poder público falhou em várias frentes: se o prédio estava condenado por que não fora demolido, situação essa em que encontram outros imóveis naquela área, como eu já vi in loco? Por que, sabendo da ocupação indevida e perigosa, não se tratou de promover a evacuação do edifício?

Numa das passagens mais contundente do seu diário de uma favelada, que Audálio Dantas escolheu como título Quarto de despejo, quando se encarregou de publicá-lo, Carolina Maria de Jesus fez uma declaração que soa bastante atual - a declaração vai dita aqui tal qual apareceu na obra:

10 de maio. Fui na delegacia e falei com o tenente. Que homem amavel! Se eu soubesse que ele era tão amavel, eu teria ido na delegacia na primeira intimação. (...) O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidades de delinquir do que tornar-se util a patria e ao país. Pensei: Se ele sabe disto, porque não faz um relatorio e envia para os politicos? O senhor Janio Quadros, o Kubstchek e o Dr. Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou uma pobre lixeira. Não posso resolver nem as minhas dificuldades (Carolina Maria de Jesus. Quarto de despejo. 3ª ed. São Paulo: Editora Edibolso, 1976, p. 28).


Foto: Reprodução/TV Globo
 O Edifício Leme depois que parte de sua estrutura desabou: o déficit habitacional, infelizmente, ainda está longe de ser resolvido neste país


Escombros, desespero, choro... Ironicamente o nome do edifício que desabou parcialmente em Olinda é Leme. Leme, assim, com letra inicial maiúscula, é um dos bairros da beira-mar da Zona Sul do Rio de Janeiro; e leme, assim, com letra inicial minúscula, é um objeto, é uma peça que faz parte de aviões e navios e que serve para lhes dar rumo e direção. Tirados de seus lares à custa de uma tragédia anunciada, os ex-moradores do Edifício Leme estão agora sem rumo e direção.

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