26 de setembro de 2020

Despedida em sol maior

 Por Clênio Sierra de Alcântara

 

Imagem: Instagram do Artista
Márcio Lemos (1981-2020)


Foi um amigo em comum, Luiz Henrique, que fez com que eu conhecesse a pessoa e a arte musical de Márcio Lemos. Conversávamos sobre música e eu lhe mostrava algumas de minhas composições quando, lá pelas tantas, Luiz me repassou um link para que eu conhecesse o trabalho do seu amigo.

Recordo claramente que, ao acessar a plataforma de músicas e começar a ouvir cada uma delas, eu fiquei de imediato apaixonado pela voz de acalanto e pela poesia de Márcio Lemos. E disse para mim mesmo: “Eu preciso conhecer esse cara”. Durante dias aquelas canções do álbum Interior ficaram a soar nos meus ouvidos de modo persistentemente benigno. Eu inevitavelmente comparei a cantiga daquele sujeito a de Beto Guedes e a de Flávio Venturini, dois dos meus cantores prediletos.

Lembro também que, para tentar suportar a minha ansiedade de conhecer pessoalmente aquele intérprete de voz tão melodiosa, eu pedi o contato telefônico dele ao Luiz; e, de posse do número, tratei de entrar em contato com o artista e não poupei elogios ao seu trabalho tão singelo, delicado e primoroso. Não satisfeito com a nossa troca de mensagens, eu saí à procura de vídeos dele no YouTube como forma de amenizar a ânsia que me tomara de estar frente a frente com aquele rapaz talentoso; e assisti, entre outros vídeos, à entrevista que ele concedeu ao canal Na Frequência, em julho do ano passado; e, vendo-o ali, pleno e faceiro, entremeando falas com suas músicas eu não tive nenhuma dúvida de me tornara mesmo seu fã.

Passados alguns dias, eis que finalmente nos encontramos. Ele deve ter notado que os meus olhos estavam brilhantes, muito brilhantes naquele momento. Disse-lhe que a sua música e a sua voz me encantaram de tal forma que eu não conseguia mais deixar de ouvi-las pelo menos uma vez a cada dia. Abraçamo-nos. Dei a ele um dos meus livros; e ele me presenteou com o seu disco solo. Falei para ele das minhas composições e tal; e ele me disse do desapontamento que estava sentindo com relação à música e ao meio musical propriamente dito por causa da dificuldade de conseguir entrar na cena e se projetar; contou do esforço financeiro que fez para bancar a produção do disco – ele chegou a vender um carro para pagar os custos – e que nem chegou a fazer um show de lançamento. Também me falou da banda que ele integrava, a Banda Viruz.


O presente ofertado no dia do nosso primeiro encontro

Ouvi o disco várias vezes em casa. Para mim Interior é uma pequena joia musical. O talento e a sensibilidade de Márcio Lemos transbordam em cada uma das onze faixas, todas elas composições autorais. Tudo é tão bem feito; nada está fora do lugar. Muito dono do seu ofício, ele vai deslizando pelas canções como quem parece passear tranquilamente por um terreno que é deveras conhecido. Logo na faixa de abertura nós somos presenteados com essa beleza que é “Tempo de amar”, na qual ele nos diz que “Perto das ribanceiras do meu bem querer... Eu sei que vai brotar a semente do amor”. Ainda tem outras coisinhas igualmente doces e delicadas como “Lembrança”, “Rotação”, “Daqui pra lá” e “Celebração”. É também muito inspirada a faixa-título do disco em que ele, modesto, diz que “A arte é um dom, um presente, que venho tentando agarrar”, como se ele já não a tivesse por inteiro em suas mãos. Em “Frevando a três” o contido intérprete solta a voz neste frevo de declaração de amor a Olinda e ao Recife. Na faixa 9, “Viver”, ele se propõe a “Calar a memória” e se “jogar ileso ao mar de emoções”. Há em “Valsando”, ao contrário do que é dito na faixa anterior, um resgate e um dar a voz à memória; nela aparecem um protesto e uma repreensão ao acontecimento da escravidão de negros ocorrido na história deste país; “Valsando” é ao mesmo tempo um canto de lamento pelo que ocorreu e um tributo aos sobreviventes do flagelo da escravidão. Na penúltima faixa, “Vô”, Márcio celebra a figura de João, aquele “matuto de atitude, ofício, disposição” que era chamado de “João das Princesas”. E, encerrando um disco que é todo ele um primor e uma conjunção de boa e autêntica arte musical com apurado refinamento técnico, aparece “O que me resta”, a minha faixa preferida, um aceno de adeus, ainda que ele diga querer “negar a partida, pro dia morrer melhor”.

Nos últimos dias eu andara bastante animado com a possibilidade de Márcio Lemos vir a tocar umas composições que venho aprontando. Mas aí a realidade mais uma vez me pregou uma peça e me deu uma grande rasteira: ontem, pouco depois das 14:00 h, Luiz Henrique me telefonou para contar que Márcio Lemos, o talentoso, o jovem, o muito gente boa Márcio Lemos falecera num trágico acidente junto com a esposa Rakelly. Nossa, ao ouvir isso, eu fiquei todo arrepiado de pavor. E, como às vezes acontece nessas ocasiões, não quis acreditar que aquela notícia triste e profundamente lamentável era verdadeira. Como pode ser isso? Como aceitar que uma vida em plenitude seja de um instante para outro interrompida?

Mergulhado numa solidão imensa e numa tristeza tamanha eu fiquei matutando e resolvi que a melhor homenagem que eu poderia prestar a um músico e cantor de grande talento era fazer uma canção para ele, como uma prova da estima e da admiração que eu sentia e sinto por sua pessoa e por sua arte. E assim foi que, sem demora, eu escrevi, cantei, gravei o áudio, chorei copiosamente a dor dos inconformados enquanto me ouvia cantando aquele lamento e espalhei a cantiga pelo WhatsApp. Eis a letra em sua inteireza:

 

Canção para Márcio Lemos


Foi por você que eu fiz esta canção.

Recordei o teu abraço, o teu sorriso

e  tua voz espalhando emoção.

 

Nós logo nos entendemos;

a música foi um fio condutor a nos unir.

Naquele dia eu te falei que fiquei encantado

com teu jeito de fazer tudo fluir.

 

A tua poesia muito me tocou

como uma coisa que eu não sei explicar.

Eu ainda entendo pouco de ser sol;

você é que sabia tudo iluminar.

 

Coro


A saudade vai ficar

doendo aqui dentro de mim,

porque você se foi

e isso foi tão ruim.

 

Meu amigo, você não sabe

a falta que vai me fazer.

Quando o encontro é marcante

a gente não quer é esquecer.

 

Um dos luminares presentes em minha biblioteca, o historiador norte-americano Lewis Mumford disse em Arte e técnica, de 1952, que “A arte é uma das esferas essenciais das atividades autônomas e criadoras do homem”. Já o ensaísta inglês Walter Pater, que viveu no século XIX, escreveu esta frase que tem para mim um significado mais do que especial e motivador: “Toda arte aspira continuamente à condição da música”.

Hoje, antes de começar a escrever esta narrativa, eu pus Interior no toca-discos para que a voz do meu amigo ocupasse todos os cômodos de minha casa e eu pudesse imaginar que ele poderia estar ali comigo. Eu bem sei por que senti tanto a perda física do Márcio Lemos. Foi porque no dia do nosso primeiro e fraterno encontro, eu reconheci na pessoa dele um exemplo de grande artista da música que eu almejava e almejo ser. Agora não me resta só a saudade, porque, muito embora ela vá ficar “doendo aqui dentro de mim”, toda vez que eu escutar a voz dele cantando, de alguma forma será, tenho certeza disso, como se sempre estivéssemos nos reencontrando no abrigo e no conforto de um muito afetuoso abraço.

2 comentários:

  1. A música nos causa bem dando, alcançando lugares que ciência até agora não consegue explicar. A estrela continuará brilhando, entoando cada poesia, harmonia, sentimentos e sonhos. Furacão passou aqui na terra,por que não dizer um anjo que encatvas por onde passavas com sua singela e poética canção. Sua música brilhará pra sempre, e ficará eternizada nos corações daqueles que ouviram e tiveram privilégio de estar com este ser. Meus sentimentos pela passagem desta porta musical, CLenio Sierra. Raimundo nonato... neguinho.

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  2. Interessante e triste sua postagem. De qual cidade era o artista? Existe pouca informação sobre ele na rede. Antes de ler no seu blog, eu tinha pego uma play list com músicas pernambucanas, aí econtrei 3 faixas do Márcio, por isso resolvi pesquisar sobre ele. É uma pena.

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