3 de outubro de 2020

A “mui nobre, sempre leal e mais antiga Vila de Santa Cruz e Santos Cosme e Damião”, Igaraçu, completou 485 anos

 Por Clênio Sierra de Alcântara


Igaraçu numa gravura de Frans Post de 1645.
Elevada à categoria de "Leal Vila", por alvará de 1811, e tendo recebido o predicado de cidade em 1872, desde há muito a gloriosa cidade pernambucana ostenta em seu sítio histórico um belo conjunto arquitetônico que diz muito do passado colonial deste país. Preservar Igaraçu é garantir às futuras gerações o conhecimento e a oportunidade de estar num cenário onde ocorreram inúmeros acontecimentos históricos


No estudo que elaborou sobre as cidades e/ou núcleos urbanos do período colonial brasileiro, Nelson Omegna nos disse que, no geral, os cronistas dos primeiros séculos de nossa existência como Colônia de Portugal denunciaram semelhança entre as formações citadinas que foram surgindo naquele tempo: “Os cronistas passam por aquelas vilas sem que percebam um traço marcante e diferente e as veem com as mesmas casas religiosas, as mesmas casas de engenho, as mesmas ruas tortuosas, os mesmos sobrados, denunciando os mesmos problemas econômicos, religiosos, militares e demográficos” (Nelson Omegna. A cidade colonial. 2 ª ed. Brasília: EBRASA – Editora de Brasília S. A., 1971, p. 5).

É de Aroldo de Azevedo o entendimento de que os “mais remotos embriões de nossas cidades podem ser consideradas as modestas feitorias surgidas no litoral brasileiro, nos 30 primeiros anos do século XVI”. Contudo, continua ele, não se pode exagerar tal importância desses modestos núcleos de povoamento, porque, segundo ele, as feitorias tinham um caráter principalmente militar, “apresentavam extrema precariedade, tinham insignificante função econômica como simples entrepostos de trocas em espécie e não se enraizavam no lugar em que eram fundadas” (Aroldo de Azevedo. Vilas e cidades do Brasil Colonial. Ensaio de Geografia Urbana. São Paulo: Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Boletim nº 208, Geografia nº 11, 1956, p. 9 e 11). Aroldo de Azevedo destacou ainda que a urbanização deste país só teve início realmente quando principiou de fato o processo de colonização; o que, de acordo com ele, só ocorreu quando foi instituído o regime das Capitanias Hereditárias; e que, embora não pudessem estabelecer cidades, os donatários gozavam do direito de fundar vilas (Aroldo de Azevedo. Op. cit. p. 11 e 14).

Sabe-se que data de 1516 o estabelecimento de uma feitoria às margens do Canal de Santa Cruz sob o comando de Cristóvão Jaques. Seguindo o raciocínio de Aroldo de Azevedo eu pergunto: será que em algum momento homens que estiveram nessa feitoria saíram em excursão e encontraram o sítio onde, anos depois começaria a surgir a vila de Igaraçu? Acredito que sim, afinal, o ponto onde ela foi fixada não era tão distante do terreno onde Duarte Coelho, que chegou à Capitania de Pernambuco, como seu primeiro donatário, em 9 de março de 1535, ainda nesse ano estabeleceu a vila de Igaraçu, que é considerada por vários estudiosos, como o meu mestre Marcos Albuquerque, como o primeiro núcleo de povoamento do Brasil, o que não é pouca coisa. Todavia, eu também tenho conhecimento de diligências que um inglês chamado Christopher Sellers vem há anos empreendendo em defesa da primazia que, segundo ele, deve caber à comunidade de Vila Velha, na Ilha de Itamaracá – Cristóvão Jaques fundou uma feitoria na ilha em 1526; e a vila, no período colonial, era chamada de Vila de Nossa Senhora da Conceição, e constituía-se como o centro principal da então Capitania de Itamaracá – tanto como primeira vila constituída na região como possuidora da igreja mais antiga do país, ou seja, segundo ele, o templo religioso mais antigo em funcionamento no Brasil não é a Igreja dos Santos Cosme e Damião, como é divulgado, e sim a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, de Vila Velha.

Algo importante a ser notado ao longo da história de Igaraçu que, de simples e pacata vila quinhentista seria por volta de 1550 alçada à condição de freguesia e levaria séculos para ser reconhecida como município autônomo (1893) e, finalmente, como cidade (1895), é que, em que pese a importância do seu papel dentro do percurso histórico pernambucano, em particular, e brasileiro, em geral – foi ali, por exemplo, que, em 1632, houve um embate travado contra invasores holandeses -, ela atravessou a maior e/ou expressiva parte do período de sua existência sem conseguir lograr um grande desenvolvimento socioeconômico e assistindo ao progressivo abandono quando não a ruína total de parcela do seu precioso e admirável patrimônio histórico edificado.

Quando saiu a lume, em 1817, a Corografia Brasília ou Relação histórico-geográfica do Reino do Brasil, do padre Manuel Aires de Casal, Igaraçu mereceu até uma avaliação positiva dele; sob a pena de Aires de Casal “Iguaraçu” foi denominada de “vila considerável, a mais antiga da província, enobrecida com o ilustre título de leal, ornada com uma igreja matriz dos Santos companheiros Cosme e Damião, casa de misericórdia, um convento de franciscanos, um recolhimento de mulheres, quatro ermidas, abastada de peixe, carne e frutas, fica cinco para seis léguas ao norte de Olinda, e duas longe do mar sobre a margem direita do rio, que lhe deu o nome [...]” (Manuel Aires de Casal. Corografia brasílica ou Relação histórico-geográfica do Reino do Brasil. Belo-Horizonte: Editora Itatitaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1976, p. 263).

O registro feito pelo padre Aires de Casal será uma das exceções que se verá ao longo de todo o século XIX no que foi escrito por viajantes que caminharam por Igaraçu e deixaram apontamentos de suas impressões sobre ela. O inglês Henry Koster, que passou por ali em outubro de 1810, registrou que: “O lugar demonstra claramente ter usufruído maior prosperidade que a presentemente possuída. Muitas casas têm dois pavimentos, mas estão deterioradas e algumas com aspecto de decadência e ruína. As ruas são de calçadas, mas carecem de reparos e a erva cobre vários lugares” (Henry Koster. Viagens ao Nordeste do Brasil. 12ª ed. Trad. Luís da Câmara Cascudo. Rio de Janeiro – São Pulo – Fortaleza: ABC Editora, 2003, p. 87).

Outro observador do sítio urbano igaraçuense foi o metodista norte-americano Daniel Parish Kidder, que conheceu a vila no final da década de 1830 – possivelmente no primeiro semestre de 1840 - e descreveu assim a heroica e resistente Igaraçu oitocentista: Tem um aspecto de grande antiguidade e está em franca decadência, sendo pequeno o seu movimento comercial. Vimos uma igreja com o telhado caído” (Daniel Parish Kidder. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do Brasil: compreendendo notícias históricas e geográficas do Império e das diversas províncias. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1980, p. 146).

No ano de 1859, precisamente no dia 22 de novembro, o imperador Dom Pedro II, que estava em viagem pelas províncias do Norte, desembarcou no Recife para uma estada de vários dias. Certamente sabedor – é o que eu presumo – dos interesses que tinha o muito erudito monarca pela história e outros aspectos dos lugares que visitava, o ex-juiz municipal de Igaraçu, Adelino Antonio de Luna Freire, fez um manuscrito a pena ligeira narrando fatos e descrevendo alguns prédios que existiam por lá, e o ofereceu ao imperador, que chegou à parte de ocupação mais antiga da vila às 6 horas da manhã do dia 5 de dezembro, vindo do Engenho Monjope, onde permanecera por várias horas.

Em seu manuscrito, Adelino Antonio de Luna Freire, entre muitas outras informações, registrou o seguinte: “Há dez anos, pouco mais ou menos que Iguaraçú envergonha-se sem duvida de si mesmo parou na ladeira, que a levava á ruína, e como que tomou de forças para lutar contra o fatal destino, que a aflige; pode oferecer um progresso muito moderado”. Confiante num futuro de prosperidade para a vila que no seu dizer “parou na carreira”, Adelino apostava que, “assim como alguns Imperios, semelhantes á maravilhosa fenix si reerguem das ruínas, é de se esperar, que Iguaraçú ainda ocupará um lugar importante no mapa do Brasil” (Adelino Antonio de Luna Freire. “Apontamentos sobre Iguarassú”. In Revista do Arquivo Público. 1º e 2º semestres – Anos V e VI - Números VII e VII. Recife: Secretaria do Interior e Justiça, 1950-1951, p. 490 e 489).

Mas e o imperador Dom Pedro II, quais foram as impressões que ele teve de Igaraçu? Segundo os registros do seu diário de viagem o monarca não se entusiasmou com o que viu. Ele reparou que a antiga Casa da Câmara e Cadeia estava em ruínas – como, aliás, escrevera Adelino Antonio de Luna Freire -, visitou as aulas das meninas e avaliou que elas não estavam adiantadas; e que a professora não parecia boa. E tendo andado por lá sentenciou: “A vila não tem futuro e só a estrada de Goiana lhe dará alguma vida” (Dom Pedro II. “Viagem a Pernambuco e 1859”. Cópia, introdução e notas de Guilherme Auler. In Revista do Arquivo Público. 1º e 2º semestres – Anos V e VI - Números VII e VIII. Recife: Secretaria do Interior e Justiça, 1950-1951, p.420).


Rara fotografia de uma Igaraçu Oitocentista. Provavelmente Augusto Stahl, o fotógrafo alemão autor deste belo registro, captou a imagem em 1859, quando da visita do Imperador Dom Pedro II à ainda então vila, porque ele acompanhou a passagem do monarca por Pernambuco, tendo sido, inclusive, agraciado por ele, em dezembro daquele ano, com o título de "Fotógrafo de Sua Majestade o Imperador do Brasil". Possivelmente Stahl deve deve ter feito outros registros do lugar, mas, pelo menos até agora, eu não tenho conhecimento deles


É de se notar que Igaraçu atravessará pelo menos a primeira metade do século XX ainda sendo vista com certo desânimo e lamento por alguns argutos observadores que a visitaram e/ou escreveram sobre ela nesse período.

Em outubro de 1934, portanto, às vésperas de Igaraçu completar 400 anos de sua fundação, o sempre diligente e incansável Mário Melo disse aos seus companheiros do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano que a Igreja dos Santos Cosme e Damião estava ameaçada de desabar e que os quatro painéis históricos nela existentes – estes painéis são, na verdade, ex-votos; e se encontram atualmente em exposição no museu existente no Convento Franciscano, próximo à igreja – “se acham estragadissimos”. Ele disse ainda que, atendendo ao seu apelo, o Governo estadual tomara medidas imediatas para assegurar a integridade do templo; e o Rotary Clube do Recife acenou que poderia se encarregar da restauração dos tais quatro painéis. Já sobre a cidade, ele disse assim: “A vila, hoje cidade de Igarassú, com uma parte alta e outra baixa, está aquela em franca decadência [...] A parte baixa está á margem da rodovia Recife-Fortaleza e apresenta sintomas de reação [ era o vaticínio do imperador Dom Pedro II, lembram?], enquanto a outra está em franco declínio”. E foi nessas condições que, no ano seguinte, quando foi comemorado também o Quarto Centenário de Colonização de Pernambuco – toma-se como marco o dia 9 de março de 1535, data da chegada do donatário Duarte Coelho; já o dia de fundação da vila de Igaraçu é 27 de setembro do mesmo ano – que Igaraçu foi reconhecida como Monumento Público Estadual “A cidade de Igarassú – Monumento Estadual”. In Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Vol. XXIII – Números 155 e 158. Recife: Oficinas Gráficas da Imprensa Oficial, 1933-1935, p. 349).

No seu estudo – já citado aqui -, publicado em 1956, Aroldo de Azevedo descreveu Igaraçu como um “pequeno aglomerado urbano de Pernambuco, que conseguiu arrastar-se obscuramente através dos séculos e ainda hoje existe como simples relíquia histórica” (Aroldo de Azevedo. Op. cit. p. 11).

No domingo passado, dia 27 de setembro, Igaraçu, o povoado, a vila, a freguesia, o município, a cidade de Igaraçu completou 485 anos de uma existência que conheceu sim, altos e baixos, como vimos, mas foram altos e baixos que não tiraram dela, do seu núcleo primitivo, que é muito mais do que uma “simples relíquia histórica”, a beleza e o esplendor de um dos conjuntos arquitetônicos mais representativos da colonização portuguesa nas Américas. Para além do sítio histórico que, no geral, está bem conservado – a lamentar o caso do imóvel de nº 66 existente no entorno da Praça da Bandeira que está há mais de uma década à espera de uma solução da Justiça para que possa ser restaurado pelo seu proprietário, embora eu acredite que ele não tenha nenhum interesse em fazer isso -, a cidade, que não possui mais a dimensão territorial de séculos atrás, cresceu bastante socioeconomicamente nos últimos vinte anos, apresentando um comércio e um parque industrial pujantes.

Apesar de todas as dificuldades de ordem financeira que historicamente marcaram a existência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), criado em 1937, Igaraçu, com o seu belo e admirável conjunto arquitetônico e o seu conservado traçado urbano primitivo, é uma prova de que políticas públicas que visam à proteção do patrimônio edificado do país de alguma forma conseguem salvaguardar tais acervos da ruína pura e simples, do descaso dos seus proprietários e do avanço da especulação imobiliária, que tudo destroem porque são completamente avessos aos ditames da necessidade de preservação da memória.

Todas as vezes que atravesso o sítio histórico de Igaraçu eu reconheço nele a persistência e a valorização de nossa memória e de nossa história. Compartilho com Antonio Augusto Arantes o entendimento de que a preservação dos bens culturais é uma prática social com múltiplas implicações e dimensões de valor que se inter-relacionam: “de valor econômico que pode ser aumentado ou diminuído dependendo do tratamento que se dê aos bens preservados; de valor simbólico, constitutivo da memória, da territorialidade e da identidade nacional, além de outras identidades mais específicas e locais; e de valor político, levando ao aspecto da hegemonia e ao dos direitos dos cidadãos” (Antonio Augusto Arantes. “A preservação de bens culturais como prática social”. In Revista de Museologia. Vol. 1 – Nº 1. São Paulo: Instituto de Museologia de São Paulo/Fundação Escola de Sociologia e Política, 1989, p. 16).

Defendo a tese de que, enquanto mantivermos e conservarmos social e coletivamente uma consciência e uma ação com vistas a preservar nossos patrimônios materiais e imateriais, seguramente estaremos não apenas garantindo que esses valores sejam conhecidos pelas futuras gerações, como também confirmando que foram acertadas as engrenagens do nosso processo civilizatório, porque é a barbárie que destrói tudo aquilo que repele e ignora.

O poeta Mauro Mota, um dos grandes valores pernambucanos, certa feita escreveu a respeito de Igaraçu que em “Nenhum outro dos núcleos onde primeiro chegaram os colonizadores a ultrapassa no amor à cultura de sua formação e nos intentos de preservá-la” (Mauro Mota. “Igarassu é outra civilização”. In Revista do Arquivo Público. Vol. 33-34 – Anos XVI-XVII – Números 35-36. Recife: Secretaria de Turismo, Cultura e Esportes, 1979 – 1980, p. 78). E que assim continue a ser para todo o sempre.

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