Por Clênio Sierra de Alcântara
No estudo que elaborou sobre
as cidades e/ou núcleos urbanos do período colonial brasileiro, Nelson Omegna
nos disse que, no geral, os cronistas dos primeiros séculos de nossa existência
como Colônia de Portugal denunciaram semelhança entre as formações citadinas
que foram surgindo naquele tempo: “Os cronistas passam por aquelas vilas sem
que percebam um traço marcante e diferente e as veem com as mesmas casas
religiosas, as mesmas casas de engenho, as mesmas ruas tortuosas, os mesmos
sobrados, denunciando os mesmos problemas econômicos, religiosos, militares e
demográficos” (Nelson Omegna. A cidade
colonial. 2 ª ed. Brasília: EBRASA – Editora de Brasília S. A., 1971, p.
5).
É de Aroldo de Azevedo o
entendimento de que os “mais remotos embriões de nossas cidades podem ser
consideradas as modestas feitorias surgidas no litoral brasileiro, nos 30
primeiros anos do século XVI”. Contudo, continua ele, não se pode exagerar tal
importância desses modestos núcleos de povoamento, porque, segundo ele, as
feitorias tinham um caráter principalmente militar, “apresentavam extrema
precariedade, tinham insignificante função econômica como simples entrepostos
de trocas em espécie e não se enraizavam no lugar em que eram fundadas” (Aroldo
de Azevedo. Vilas e cidades do Brasil
Colonial. Ensaio de Geografia Urbana. São Paulo: Universidade de São
Paulo/Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Boletim nº 208, Geografia nº
11, 1956, p. 9 e 11). Aroldo de Azevedo destacou ainda que a urbanização deste
país só teve início realmente quando principiou de fato o processo de
colonização; o que, de acordo com ele, só ocorreu quando foi instituído o
regime das Capitanias Hereditárias; e que, embora não pudessem estabelecer
cidades, os donatários gozavam do direito de fundar vilas (Aroldo de Azevedo.
Op. cit. p. 11 e 14).
Sabe-se que data de 1516 o
estabelecimento de uma feitoria às margens do Canal de Santa Cruz sob o comando
de Cristóvão Jaques. Seguindo o raciocínio de Aroldo de Azevedo eu pergunto:
será que em algum momento homens que estiveram nessa feitoria saíram em
excursão e encontraram o sítio onde, anos depois começaria a surgir a vila de
Igaraçu? Acredito que sim, afinal, o ponto onde ela foi fixada não era tão
distante do terreno onde Duarte Coelho, que chegou à Capitania de Pernambuco,
como seu primeiro donatário, em 9 de março de 1535, ainda nesse ano estabeleceu
a vila de Igaraçu, que é considerada por vários estudiosos, como o meu mestre
Marcos Albuquerque, como o primeiro núcleo de povoamento do Brasil, o que não é
pouca coisa. Todavia, eu também tenho conhecimento de diligências que um inglês
chamado Christopher Sellers vem há anos empreendendo em defesa da primazia que,
segundo ele, deve caber à comunidade de Vila Velha, na Ilha de Itamaracá –
Cristóvão Jaques fundou uma feitoria na ilha em 1526; e a vila, no período
colonial, era chamada de Vila de Nossa Senhora da Conceição, e constituía-se
como o centro principal da então Capitania de Itamaracá – tanto como primeira
vila constituída na região como possuidora da igreja mais antiga do país, ou
seja, segundo ele, o templo religioso mais antigo em funcionamento no Brasil
não é a Igreja dos Santos Cosme e Damião, como é divulgado, e sim a Igreja de
Nossa Senhora da Conceição, de Vila Velha.
Algo importante a ser notado
ao longo da história de Igaraçu que, de simples e pacata vila quinhentista
seria por volta de 1550 alçada à condição de freguesia e levaria séculos para
ser reconhecida como município autônomo (1893) e, finalmente, como cidade
(1895), é que, em que pese a importância do seu papel dentro do percurso
histórico pernambucano, em particular, e brasileiro, em geral – foi ali, por
exemplo, que, em 1632, houve um embate travado contra invasores holandeses -,
ela atravessou a maior e/ou expressiva parte do período de sua existência sem
conseguir lograr um grande desenvolvimento socioeconômico e assistindo ao
progressivo abandono quando não a ruína total de parcela do seu precioso e
admirável patrimônio histórico edificado.
Quando saiu a lume, em 1817,
a Corografia Brasília ou Relação
histórico-geográfica do Reino do Brasil, do padre Manuel Aires de Casal,
Igaraçu mereceu até uma avaliação positiva dele; sob a pena de Aires de Casal “Iguaraçu”
foi denominada de “vila considerável, a mais antiga da província, enobrecida
com o ilustre título de leal, ornada com uma igreja matriz dos Santos
companheiros Cosme e Damião, casa de misericórdia, um convento de franciscanos,
um recolhimento de mulheres, quatro ermidas, abastada de peixe, carne e frutas,
fica cinco para seis léguas ao norte de Olinda, e duas longe do mar sobre a
margem direita do rio, que lhe deu o nome [...]” (Manuel Aires de Casal. Corografia brasílica ou Relação histórico-geográfica
do Reino do Brasil. Belo-Horizonte: Editora Itatitaia; São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1976, p. 263).
O registro feito pelo padre
Aires de Casal será uma das exceções que se verá ao longo de todo o século XIX
no que foi escrito por viajantes que caminharam por Igaraçu e deixaram
apontamentos de suas impressões sobre ela. O inglês Henry Koster, que passou
por ali em outubro de 1810, registrou que: “O lugar demonstra claramente ter
usufruído maior prosperidade que a presentemente possuída. Muitas casas têm
dois pavimentos, mas estão deterioradas e algumas com aspecto de decadência e
ruína. As ruas são de calçadas, mas carecem de reparos e a erva cobre vários
lugares” (Henry Koster. Viagens ao
Nordeste do Brasil. 12ª ed. Trad. Luís da Câmara Cascudo. Rio de Janeiro –
São Pulo – Fortaleza: ABC Editora, 2003, p. 87).
Outro observador do sítio
urbano igaraçuense foi o metodista norte-americano Daniel Parish Kidder, que
conheceu a vila no final da década de 1830 – possivelmente no primeiro semestre
de 1840 - e descreveu assim a heroica e resistente Igaraçu oitocentista: Tem um
aspecto de grande antiguidade e está em franca decadência, sendo pequeno o seu
movimento comercial. Vimos uma igreja com o telhado caído” (Daniel Parish
Kidder. Reminiscências de viagens e
permanências nas províncias do Norte do Brasil: compreendendo notícias
históricas e geográficas do Império e das diversas províncias. Belo Horizonte:
Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1980, p.
146).
No ano de 1859, precisamente
no dia 22 de novembro, o imperador Dom Pedro II, que estava em viagem pelas
províncias do Norte, desembarcou no Recife para uma estada de vários dias. Certamente
sabedor – é o que eu presumo – dos interesses que tinha o muito erudito monarca
pela história e outros aspectos dos lugares que visitava, o ex-juiz municipal
de Igaraçu, Adelino Antonio de Luna Freire, fez um manuscrito a pena ligeira
narrando fatos e descrevendo alguns prédios que existiam por lá, e o ofereceu
ao imperador, que chegou à parte de ocupação mais antiga da vila às 6 horas da manhã do
dia 5 de dezembro, vindo do Engenho Monjope, onde permanecera por várias horas.
Em seu manuscrito, Adelino
Antonio de Luna Freire, entre muitas outras informações, registrou o seguinte: “Há
dez anos, pouco mais ou menos que Iguaraçú envergonha-se sem duvida de si mesmo
parou na ladeira, que a levava á ruína, e como que tomou de forças para lutar
contra o fatal destino, que a aflige; pode oferecer um progresso muito moderado”.
Confiante num futuro de prosperidade para a vila que no seu dizer “parou na
carreira”, Adelino apostava que, “assim como alguns Imperios, semelhantes á
maravilhosa fenix si reerguem das ruínas, é de se esperar, que Iguaraçú ainda
ocupará um lugar importante no mapa do Brasil” (Adelino Antonio de Luna Freire.
“Apontamentos sobre Iguarassú”. In Revista
do Arquivo Público. 1º e 2º semestres – Anos V e VI - Números VII e VII. Recife:
Secretaria do Interior e Justiça, 1950-1951, p. 490 e 489).
Mas e o imperador Dom Pedro
II, quais foram as impressões que ele teve de Igaraçu? Segundo os registros do
seu diário de viagem o monarca não se entusiasmou com o que viu. Ele reparou
que a antiga Casa da Câmara e Cadeia estava em ruínas – como, aliás, escrevera
Adelino Antonio de Luna Freire -, visitou as aulas das meninas e avaliou que
elas não estavam adiantadas; e que a professora não parecia boa. E tendo andado
por lá sentenciou: “A vila não tem futuro e só a estrada de Goiana lhe dará
alguma vida” (Dom Pedro II. “Viagem a Pernambuco e 1859”. Cópia, introdução e
notas de Guilherme Auler. In Revista do
Arquivo Público. 1º e 2º semestres – Anos V e VI - Números VII e VIII. Recife:
Secretaria do Interior e Justiça, 1950-1951, p.420).
É de se notar que Igaraçu
atravessará pelo menos a primeira metade do século XX ainda sendo vista com
certo desânimo e lamento por alguns argutos observadores que a visitaram e/ou
escreveram sobre ela nesse período.
Em outubro de 1934,
portanto, às vésperas de Igaraçu completar 400 anos de sua fundação, o sempre
diligente e incansável Mário Melo disse aos seus companheiros do Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano que a Igreja dos Santos Cosme
e Damião estava ameaçada de desabar e que os quatro painéis históricos nela
existentes – estes painéis são, na verdade, ex-votos; e se encontram atualmente
em exposição no museu existente no Convento Franciscano, próximo à igreja – “se
acham estragadissimos”. Ele disse ainda que, atendendo ao seu apelo, o Governo
estadual tomara medidas imediatas para assegurar a integridade do templo; e o
Rotary Clube do Recife acenou que poderia se encarregar da restauração dos tais
quatro painéis. Já sobre a cidade, ele disse assim: “A vila, hoje cidade de
Igarassú, com uma parte alta e outra baixa, está aquela em franca decadência
[...] A parte baixa está á margem da rodovia Recife-Fortaleza e apresenta
sintomas de reação [ era o vaticínio do imperador Dom Pedro II, lembram?], enquanto
a outra está em franco declínio”. E foi nessas condições que, no ano seguinte,
quando foi comemorado também o Quarto Centenário de Colonização de Pernambuco –
toma-se como marco o dia 9 de março de 1535, data da chegada do donatário Duarte
Coelho; já o dia de fundação da vila de Igaraçu é 27 de setembro do mesmo ano –
que Igaraçu foi reconhecida como Monumento Público Estadual “A cidade de
Igarassú – Monumento Estadual”. In Revista
do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Vol. XXIII –
Números 155 e 158. Recife: Oficinas Gráficas da Imprensa Oficial, 1933-1935, p.
349).
No seu estudo – já citado
aqui -, publicado em 1956, Aroldo de Azevedo descreveu Igaraçu como um “pequeno
aglomerado urbano de Pernambuco, que conseguiu arrastar-se obscuramente através
dos séculos e ainda hoje existe como simples relíquia histórica” (Aroldo de
Azevedo. Op. cit. p. 11).
No domingo passado, dia 27
de setembro, Igaraçu, o povoado, a vila, a freguesia, o município, a cidade de
Igaraçu completou 485 anos de uma existência que conheceu sim, altos e baixos,
como vimos, mas foram altos e baixos que não tiraram dela, do seu núcleo
primitivo, que é muito mais do que uma “simples relíquia histórica”, a beleza e
o esplendor de um dos conjuntos arquitetônicos mais representativos da colonização
portuguesa nas Américas. Para além do sítio histórico que, no geral, está bem
conservado – a lamentar o caso do imóvel de nº 66 existente no entorno da Praça
da Bandeira que está há mais de uma década à espera de uma solução da Justiça
para que possa ser restaurado pelo seu proprietário, embora eu acredite que ele
não tenha nenhum interesse em fazer isso -, a cidade, que não possui mais a
dimensão territorial de séculos atrás, cresceu bastante socioeconomicamente nos
últimos vinte anos, apresentando um comércio e um parque industrial pujantes.
Apesar de todas as
dificuldades de ordem financeira que historicamente marcaram a existência do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), criado em 1937,
Igaraçu, com o seu belo e admirável conjunto arquitetônico e o seu conservado
traçado urbano primitivo, é uma prova de que políticas públicas que visam à
proteção do patrimônio edificado do país de alguma forma conseguem salvaguardar
tais acervos da ruína pura e simples, do descaso dos seus proprietários e do
avanço da especulação imobiliária, que tudo destroem porque são completamente
avessos aos ditames da necessidade de preservação da memória.
Todas as vezes que atravesso
o sítio histórico de Igaraçu eu reconheço nele a persistência e a valorização de
nossa memória e de nossa história. Compartilho com Antonio Augusto Arantes o
entendimento de que a preservação dos bens culturais é uma prática social com
múltiplas implicações e dimensões de valor que se inter-relacionam: “de valor
econômico que pode ser aumentado ou diminuído dependendo do tratamento que se dê
aos bens preservados; de valor simbólico, constitutivo da memória, da
territorialidade e da identidade nacional, além de outras identidades mais
específicas e locais; e de valor político, levando ao aspecto da hegemonia e ao
dos direitos dos cidadãos” (Antonio Augusto Arantes. “A preservação de bens
culturais como prática social”. In Revista
de Museologia. Vol. 1 – Nº 1. São Paulo: Instituto de Museologia de São
Paulo/Fundação Escola de Sociologia e Política, 1989, p. 16).
Defendo a tese de que,
enquanto mantivermos e conservarmos social e coletivamente uma consciência e
uma ação com vistas a preservar nossos patrimônios materiais e imateriais,
seguramente estaremos não apenas garantindo que esses valores sejam conhecidos
pelas futuras gerações, como também confirmando que foram acertadas as
engrenagens do nosso processo civilizatório, porque é a barbárie que destrói
tudo aquilo que repele e ignora.
O poeta Mauro Mota, um dos grandes valores pernambucanos, certa feita escreveu a respeito de Igaraçu que em “Nenhum outro dos núcleos onde primeiro chegaram os colonizadores a ultrapassa no amor à cultura de sua formação e nos intentos de preservá-la” (Mauro Mota. “Igarassu é outra civilização”. In Revista do Arquivo Público. Vol. 33-34 – Anos XVI-XVII – Números 35-36. Recife: Secretaria de Turismo, Cultura e Esportes, 1979 – 1980, p. 78). E que assim continue a ser para todo o sempre.
Cara muito legau seu trabalhor parabéns
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