31 de dezembro de 2020

Eu sobrevivi

 Por Clênio Sierra de Alcântara

Foto: Arquivo do Autor
 Eu, eu mesmo, a máscara e os dedos fazendo um V tanto de vitória como de vacina: num ano tão improvável como este que hoje termina, o verbo sobreviver foi muitíssimo conjugado. Vamos resistindo, porque a vida só termina quando acaba


 

Diz-se que a morte é o nosso destino comum, quer sejamos ricos ou pobres, pretos ou brancos, crentes ou incrédulos, bons ou maus, amados ou desprezados, tolos ou espertos e inteligentes demais. A morte é a única certeza da vida, dizem também. E ainda tem um adágio que é de uma crueza tamanha: quem não quer padecer nasce morto.

Este 2020, que hoje termina, foi o ano em que eu mais ouvi falar em morte em toda a minha vida. A ameaça de um vírus letal pôs a humanidade – ou grande parte dela – em alerta e em busca de uma cura para esse mal ao qual foi dado o nome de coronavírus.

Num mundo que sempre foi e será ocupado e tomado por forças contrárias que se digladiam e se enfrentam o tempo todo, 2020 foi um ano de combate acirrado principalmente entre a luz da ciência e o obscurantismo perverso e irresponsável dos negacionistas.

Tem gente que desmata; mas também tem gente que planta. Tem gente que abandona; mas também tem gente que abriga. Tem gente que maltrata; mas também tem gente que acaricia. Tem gente que deixa morrer de fome; mas também tem gente que alimenta. Tem gente que polui; mas também tem gente que limpa; tem gente que faz maldade; mas também tem gente que faz o bem. Tem gente que só acumula riqueza; mas também tem gente que reparte e compartilha. Tem gente que destrói; mas também tem gente que constrói. Tem gente que mente; mas também tem gente que diz a verdade. Tem gente que mata; mas também tem gente que salva. Tem gente que infesta; mas também tem gente que cura. Tem gente que obscurece; mas também tem gente que ilumina. Tem gente que odeia; mas também tem gente que ama.

Já passei por muitos períodos ruins em minha existência, sobretudo e principalmente por viver numa sociedade que efetivamente não evoluiu a contento no trato com as mulheres. Mulher sem posses e ainda por cima sem muita instrução e geradora de filhos sendo solteira, minha mãe, eu sei muitíssimo bem disso, sofreu horrores num cenário de muita perversidade e exclusão social. O nosso nível de evolução enquanto civilização que manda seres humanos para fora da órbita da Terra e que fabrica componentes com a mais avançada das mais avançadas tecnologias ainda é, ainda continua sendo primitiva e covarde no trato e no respeito para com as mulheres. Em grande medida minha mãe comeu o pão que o diabo amassou para criar os dois filhos; e eu vi, durante o tempo do meu crescimento e do meu entendimento da realidade em que estávamos inseridos, o quanto pesavam sobre nós os verbos resistir e sobreviver.

Tanto quanto de morte neste ano de 2020 se falou em sobrevivência. Era e foi preciso envidar esforços e conhecimentos em busca de pelo menos uma vacina que nos protegesse do mal que se disseminava e que permanece se disseminando em escala planetária, fazendo com que obrigatória e por vezes compulsoriamente mudássemos temporariamente hábitos e conduzíssemos as nossas vidas atentos contra a vigência e a letalidade do vírus. Usar máscaras era e ainda é um exercício de precaução e de resistência.

Num ano tão perturbador e desafiador nós vimos também o grau de bestialidade ao qual seres humanos podem chegar. Na esteira dos que negavam e negam a existência e/ou a gravidade da doença, como fez e faz o presidente da República deste país, estiveram os que se recusaram a usar máscara, os que promoveram festas clandestinas, os que saíram às ruas defendendo torturadores e ditadores, os que surrupiaram recursos públicos destinados à saúde da população, os que propagaram notícias falsas nas redes sociais, os que queimaram as florestas e os que assassinaram mulheres aos magotes, mantendo o feminicídio na ordem do dia.

A ideia de que a virada da folha do calendário pode nos fazer recomeçar a vida só é menos velha do que a nossa estupidez, o nosso egoísmo, a nossa prepotência, a nossa ganância, o nosso apego a futilidades e a nossa desumanidade.

Ano de 2020, covid-19, intolerância, indiferença, covardia, obscurantismo,  negricídio e deslealdade, eu tenho um recado para todos vocês: eu sobrevivi, tá? E já estou com o braço à espera da vacina.

Viver é perigoso demais.

Um comentário:

  1. E ainda tem muito ignorante por aí quer pisar nos outros , como na história da minha cidade que tinha uma senhora rica, destemida chamada Ana jansen e que pisam nos escravos como tapetes. Esse nem a terra os quer de volta.

    ResponderExcluir