6 de fevereiro de 2021

O menino e o barril

 Por Clênio Sierra de Alcântara

 

Imagem: Zev Hoover 
Ninguém, ninguém mesmo está inteiramente a salvo da brutalidade, da animalidade e da crueldade que em nós habita; mas as crianças e os idosos são certamente os grupos mais vulneráveis e indefesos da sociedade, porque eles são incapazes de reagir e lutar contra as ações de seus algozes


Não muito longe de completar cinquenta anos de idade eu continuo mantendo firme e inabalável a convicção de que nem todo macho e nem toda fêmea tem maturidade e condições emocionais e psicológicas de criar e/ou lidar com um filho ou um enteado.

Viver em sociedade, como todos nós sabemos, significa obedecer a uma série de leis e determinações jurídicas e a regras de todo tipo exigidas para o que se convencionou chamar de bom convívio social.

Ocorre que, além das leis, das determinações e das regras, existe aquilo que atende pelo nome de convenções sociais que, infeliz e lamentavelmente, grosso modo, a imensa maioria das pessoas acredita cegamente que tem de seguir e elas não pudessem dizer não a tais convenções. Eu sei que existem indivíduos que não têm liberdade de escolha e nem de negação; e que são forçados a se submeter às convenções a contragosto; basta que citemos como exemplo, a condição das mulheres que são obrigadas a usarem burca em alguns países.

Penso que a inteira sujeição às convenções sociais engendra uma série de perturbações na cabeça das pessoas que se veem obrigadas a segui-las. Ou seja, assumindo papéis e/ou atitudes nos quais eles não se encaixam e/ou não se sentem confortáveis, um sem-número de indivíduos quando não são infelizes pelo resto de suas vidas, cometem ações extravagantes e mesmo faltas graves e até crimes que, compreendo, é esse o modo que eles encontram para dizer “eu não aguento mais isso, “eu não gosto disso”, “eu não sou assim”, etc.

Acredito piamente que carregamos dentro de nós, às vezes em estado latente, muita crueldade. Eu sei que posso agir com bastante crueldade, porque eu já agi assim; e isso de alguma forma me apavora, porque eu desconheço os meus limites. Porque não é só cruel quem mata alguém por prazer ou que maltrata animais, por exemplo. Age com crueldade quem tortura psicológica e/ou fisicamente. Age com crueldade quem difama alguém. Age com crueldade quem dissemina discursos de superioridade racial e/ou de identidade de gênero. Age com crueldade quem abandona alguém que lhe cabe cuidar. Age com crueldade quem estupra. Age com crueldade quem engana. Age com crueldade quem se aproveita da bondade alheia. Age com crueldade quem desvia o dinheiro da merenda escolar, etc. A crueldade existe e se manifesta em múltiplas formas. A crueldade é uma das características dos seres humanos. Nós somos cruéis por natureza.

Chorei copiosamente enquanto lia uma reportagem sobre o caso do menino de Campinas, interior de São Paulo, que foi resgatado por policiais militares de um cárcere privado, onde há dias fora, segundo o que foi apurado, posto acorrentado dentro de um barril pelo pai e pela madrasta contando com a cumplicidade de uma filha adulta desta. Uma pessoa que tem o sangue frio para fazer isso com uma criança que, ainda por cima, é o seu próprio filho, é capaz de cometer barbaridades inimagináveis contra quem quer que seja.

Enquanto lia a narrativa e chorava pensando no sofrimento do garoto, eu refleti acerca da impotência e da submissão às quais a maioria ou a totalidade de nós pode ficar sujeita num mundo que é ele mesmo tão hostil. A frequência com que crianças são abusadas sexualmente e sofrem castigos físicos severos da parte de adultos, talvez só seja menor do que as maldades que se costumam cometer contra os idosos que já não têm autonomia para quase nada e vivem à mercê da ruindade daqueles que deveriam cuidar deles. Maltratamos crianças e idosos com tanta regularidade que é como se nós fôssemos inteiramente desprovidos de consciência, de escrúpulos e de humanidade; e como se nós mesmos não tivéssemos sido crianças e não estivéssemos a caminho da velhice.

Os relatos dos maus-tratos sofridos pelo garoto de onze anos foi uma das narrativas mais apavorantes, medonhas, tristes, repugnantes, aterrorizantes e vergonhosas que eu já li em toda a minha vida. E quando nós pensamos que uma rede de proteção criada pelo Estado existe para proteger esses pequenos cidadãos – Estatuto da Criança e do Adolescente, Conselho Tutelar e Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente – foi omissa e/ou falha no caso ocorrido em Campinas, imaginamos quantas outras crianças, quantas outras pessoas, quantos outros indivíduos das idades as mais variadas podem estar, neste exato momento em que você se encontra lendo este texto, entregues a torturas, a humilhações, a privações de suas liberdades e a sofrimentos indescritíveis.

Ninguém, ninguém mesmo está inteiramente a salvo da brutalidade, da animalidade e da crueldade que em nós habita; mas as crianças e os idosos são certamente os grupos mais vulneráveis e indefesos da sociedade, porque eles são incapazes de reagir e lutar contra as ações de seus algozes.

Agora mesmo, que estão vindo à minha lembrança as imagens do menino acorrentado dentro daquele barril, eu estou novamente me desmanchando em lágrimas.

Subjacente a todos os disfarces e a todas as encenações às quais, talvez, a maioria absoluta de nós recorre para atender as convenções sociais está a essência bruta e inalterável do que realmente cada um de nós é; e nisso não convenção social que dê jeito, porque do que se é ninguém, definitivamente ninguém, escapa.

Os seres humanos somos cruéis demais.

2 comentários:

  1. A humanidade a todo momento caminha em uma velocidade fugaz rumo a barbárie. O ser humano que eu não descrevo como animal para não ofender os animais, se enquadra na maldade daquele que se diz pai,cadastra e enteada deveriam se enquadrar na justiça das próprias mãos, ou da justiça olho por olho dente por dente, merecendo se acorrentado em um túnel. Quanto a omissão do Conselho tutelar merecia a mesma pena ou se possível os conselheiros ou diretores ser dizimados da face da terra diante de tanta hostilidade e crueldade administrativa. Eis a minha indignação.

    ResponderExcluir