3 de abril de 2021

Longe, muito longe vão, interesses servis

 Por Clênio Sierra de Alcântara


Há de chegar o dia em que tamparemos a lata de lixo da História da qual o senhor Jair Bolsonaro e os seus cúmplices nunca sairão

 

Nos registros históricos comumente nos deparamos com as narrativas elaboradas pelos vencedores. Sob essa ótica os eventos refletem não somente a unicidade de versão dos fatos e o discurso da dominação, mas também a tendência para superdimensionar ações por eles protagonizadas, elencar justificativas e mais justificativas para os malfeitos por eles realizados e escamotear acontecimentos e desprezar quando não somente demonizar os vencidos. Aos vencedores, as batatas; aos vencidos, a desqualificação total e completa.

Pegue-se qualquer manual de História do Brasil. Lendo-o com atenção o leitor observará que foram inúmeras as vezes em que, sob o argumento de defesa da tão glorificada “soberania nacional” militares das Forças Armadas tomaram a frente e promoveram mudanças bruscas na vida política e organizacional do país desde a chamada Proclamação da República, em 1889, até 1964, ano em que, sob a alegação de que havia – e havia mesmo - uma séria ameaça de “cubanização” do país, a soldadesca implantou uma ditadura à sua maneira. Ora, se era para ter uma ditadura, melhor que fosse uma ditadura controlada e determinada por eles. E ponto. E, com o escudo da “soberania nacional”, lá foram eles tratar de prender, torturar, matar e dar fim a corpos de rebeldes comunistas. Os confrontos deixaram mortos e feridos de ambos os lados, muitíssimo mais do lado dos “subversivos”, é verdade; e, entre vencedores e vencidos, se encontrava a massa ignara que levava a vida como se uma ditadura não existisse.

Na última quarta-feira, dia 31 de março, as tropas saudosas dos seus grandes feitos para o país, comemorou o acontecimento da decretação da ditadura de 1964, por elas chamada de revolução. Não foi lá, digamos, um festão. Em parte pelo momento lutuoso que desde o ano passado estamos enfrentando com o morticínio provocado pela pandemia do coronavírus, em parte porque o presidente da República Jair Bolsonaro resolveu dar uma rasteira em seus mais tarimbados e garantidores apoiadores, tirando o general Fernando Azevedo do Ministério da Defesa e demitindo também os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, deixando bem claro quem é que está realmente no comando.

Recordo claramente que, neste meu humílimo espaço, eu celebrei, no ano passado, uma declaração bem ajuizada do então comandante do Exército, Edson Pujol. Coerente, sensato e convicto do verdadeiro papel que lhe cabia, ele declarou enfaticamente que, diante da catástrofe da pandemia, o Exército brasileiro talvez estivesse lidando com “a missão mais importante da nossa geração”. Era fins de um março também. O então comandante disse ainda que o enfrentamento exigia “a união de todos os brasileiros”. Foi, a meu ver, não só uma séria tomada de posição diante do que vinha acontecendo em termos sanitários, como também, a seu modo, um tapa na cara de um irresponsável, estúpido, perverso e inconsequente Jair Bolsonaro que, desde a sua campanha, em 2018, estava absolutamente seguro e certo de que todos os integrantes das Forças Armadas seguiriam e aceitariam cegamente tudo o que ele propusesse e/ou defendesse para o país.

Sim, eu vibrei naquela ocasião, porque compreendi que existia gente de bem nas Forças Armadas; gente que não estava disposta a ser mais um elemento na manada cega e algo covarde que dava apoio incondicional a Seu Jair. Mas eu também tive compreensão e disse a mim mesmo que o senhor Edson Pujol era trigo no meio do joio; e que não se poderia confiar por completo nas Forças Armadas, vide o aparelhamento que o presidente Jair Bolsonaro foi promovendo desde o início do seu desgoverno, colocando militares em todo canto que fosse possível, contemplando-os com altos salários, prestígio e poder. Mas, muito mais do que isso, minha descrença e desconfiança com relação às Forças Armadas se deram – e se dão – porque elas foram a principal fiadora do então candidato ao pleito presidencial tendo pleno conhecimento que ele é uma pessoa desajustada e maligna, tanto que o Exército o expulsou de suas fileiras muitos anos atrás. E tolo é o que pensa que elas o apoiaram e defenderam com uma lealdade quase canina porque os mais estrelados oficiais estavam preocupados com a defesa da tal – lá vem ela de novo – “soberania nacional”. Não, eu não acredito nisso. Eu acredito piamente que o que realmente levou os caras a fazerem esse verdadeiro pacto com o diabo, foi a defesa dos seus próprios interesses. Imagino o sem-número de promessas que o tresloucado do Seu Jair fez a eles; e, pelo que veio a ocorrer, cumpriu todas elas: ele colocou militares no comandando de  ministérios e em outros cargos vistosos; livrou o alto escalão da reforma da previdência; e garantiu-lhes gordo orçamento para as Forças Armadas. Bem, se, como dizem por aí, dinheiro compra até amor verdadeiro...

Ficou feio para as Forças Armadas as demissões que o senhor presidente da República fez nesta semana, justamente nesta semana, em que elas comemoraram a suprema glória da instituição, que foi a implantação da ditadura militar em 1964. Por que a tropa exalta 1964 como um acontecimento havido em defesa só e somente só da garantia dos ideais democráticos apoia, continua a apoiar uma figura como Jair Bolsonaro que é um declarado inimigo dos fundamentos da democracia? O Presidente da República humilhou os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, como nenhum outro fez, e militares continuam entranhados no governo porque não querem largar o osso. Nenhum deles deu meia volta, volver.

De minha parte eu continuo acreditando que não se pode confiar que as Forças Armadas sejam, de fato, por ora, defensoras unicamente da – lá vem ela mais uma vez – “soberania nacional”, a não ser que “soberania nacional” seja sinônimo de “próprios interesses”.

Há de chegar o dia em que tamparemos a lata de lixo da História da qual o senhor Jair Bolsonaro e os seus cúmplices nunca sairão.

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