8 de maio de 2021

Paulo Gustavo: artífice do riso e ativista da liberdade

Por Sierra

 

Foto: Divulgação
 Banalizaram tanto a palavra gênio que uns e outros até classificaram Paulo Gustavo como genial. Não era para tanto. Mas, indiscutivelmente, ele era um colosso de talento dentro da estatura artística que tinha. Como diria Dona Hermínia: “Que merda, que grande merda é essa tal de covid-19!!”


A tristeza não foi pouca nesta semana. No mesmo dia em que, perplexos e horrorizados, tomamos conhecimento de que um adolescente de 18 anos invadiu uma creche e tirou a vida de professoras e de criancinhas numa cidade do interior catarinense que tem o poético e para este instante tão apropriado nome de Saudades, recebemos a notícia do falecimento do ator, humorista e artífice do riso Paulo Gustavo. Dois dias depois, a Polícia Civil do Rio de Janeiro entrou em combate com traficantes na favela do Jacarezinho, contando uma baixa em suas fileiras e quase trinta no lado dos criminosos. E, ontem, faleceu, vencido pela covid-19, o cantor Cassiano, autor de coisas lindas como “Coleção” e “Postal”, que eu adoro. Que semana trágica esta que hoje se encerra!

Desde o primeiro dia do internamento do Paulo, eu fui tomado por certa angústia, porque temia que o pior acontecesse com ele, que possuía uma luz própria de muito mais de 220 volts; e com a sua alegria e com o seu sorriso e com o seu escracho e com a sua greia iluminava estes tempos tão cheios de trevas que estamos a atravessar, de alguma forma oprimidos e amedrontados por uma pandemia que parece não ter fim. Paulo era alguém que eu gostaria de ter conhecido pessoalmente; ele era solar, irreverente, talentoso e aliciante ainda que por vezes, para mim, soasse um tanto quanto arrogante.

Confesso que eu chorei um pouco a cada dia desde terça-feira, dia da ocorrência daquelas duas tragédias. Sinto calafrios só de imaginar a dor que as vítimas atacadas na creche sofreram. Não sou hipócrita; não lamento morte de bandidos, principalmente dos que tocam o terror nas comunidades onde atuam; não sei se todos os que foram abatidos em Jacarezinho eram criminosos; o que eu lamento, o que me entristece em operações de combate, como a que ocorreu no Rio de Janeiro, é a dimensão do medo que, acredito, se instala no seio de inocentes pegos no meio do fogo cruzado e que não têm outro lugar onde morar, porque, desamparados por políticas públicas e abandonados pelo Estado, veem que, nestes casos, o Estado resolve se fazer, enfim, presente, promovendo confrontos armados que resultam em carnificinas. Eu não concordo com isso; eu não compactuo com uma ação de Estado que toma o abate de criminosos como panaceia para pôr fim à criminalidade, porque o Estado deve ser o baluarte da civilização e não da barbárie.

Eu me recuso terminantemente a acreditar e a aceitar que Paulo Gustavo foi também ele abatido pela covid-19, aumentando uma estatística medonha de mais de 420.000 mortos.

Eu era, melhor dizendo, eu sou um apaixonado por Dona Hermínia, o personagem feminino que o Paulo criou a partir de sua mãe. Considero uma coisa maravilhosa que ele tenha conseguido angariar tanta simpatia com públicos os mais variados representando um papel feminino e, ainda por cima, o de uma mãe. Isso não é pouco. Isso é com certeza algo grandioso na carreira de um ator que, na vida cotidiana, era assumidamente senhor da sua sexualidade; de uma sexualidade que não dava chance às maldades dos preconceitos, que demarcava território e que estabelecia o império dos seus desejos e das suas vontades, como o de se casar com um igual e ainda querer ser pai, como ele foi. A isso eu chamo de ativismo pela liberdade de ser o que se é.

Banalizaram tanto a palavra gênio que uns e outros até classificaram Paulo Gustavo como genial. Não era para tanto. Mas, indiscutivelmente, ele era um colosso de talento dentro da estatura artística que tinha.

Aos meus olhos Dona Hermínia exala um misto de frescor e de prepotência que me encantam. Ela é ao mesmo tempo mandona e acolhedora; durona e supersensível. E eu sei exatamente por que eu a adoro: é que eu também enxergo nela a figura da minha própria mãe. De certo modo Dona Hermínia é uma mãezona que retrata tantas outras mãezonas que há por aí. E mãe boa é a melhor coisa que existe.

Não faz muito tempo Paulo Gustavo gravou um vídeo no qual disse que o riso é um ato de resistência. O riso, Paulo, não é só resistência, sobretudo contra tempos e seres sombrios; o riso é necessidade da vida; o riso é força vital; o riso é combustível que mantém nossas engrenagens ligadas para que não sucumbamos às dores e às tristezas provocadas pelas tragédias, pelos dissabores e pelos desencantos; o riso é a nossa vingança e o nosso deboche contra a finitude da vida, porque o riso sempre e sempre nos renova e nos restabelece enquanto o fim não chega.

Difícil acreditar que eu perdi você, Paulo Gustavo. Difícil aceitar que, na véspera do Dia das Mães, você, que durante muitos anos encarnou no teatro e no cinema uma mãe tão querida, não esteja aqui. Como diria Dona Hermínia: “Que merda, que grande merda é essa tal de covid-19!!”.

Agora eu estou mais uma vez ouvindo o Cassiano cantando a sua linda “Postal”: “Bye, bye, quem tanto amei...”.

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