Por Sierra
A tristeza não foi pouca
nesta semana. No mesmo dia em que, perplexos e horrorizados, tomamos
conhecimento de que um adolescente de 18 anos invadiu uma creche e tirou a vida
de professoras e de criancinhas numa cidade do interior catarinense que tem o
poético e para este instante tão apropriado nome de Saudades, recebemos a
notícia do falecimento do ator, humorista e artífice do riso Paulo Gustavo. Dois
dias depois, a Polícia Civil do Rio de Janeiro entrou em combate com
traficantes na favela do Jacarezinho, contando uma baixa em suas fileiras e
quase trinta no lado dos criminosos. E, ontem, faleceu, vencido pela covid-19,
o cantor Cassiano, autor de coisas lindas como “Coleção” e “Postal”, que eu
adoro. Que semana trágica esta que hoje se encerra!
Desde o primeiro dia do
internamento do Paulo, eu fui tomado por certa angústia, porque temia que o
pior acontecesse com ele, que possuía uma luz própria de muito mais de 220
volts; e com a sua alegria e com o seu sorriso e com o seu escracho e com a sua
greia iluminava estes tempos tão cheios de trevas que estamos a atravessar, de
alguma forma oprimidos e amedrontados por uma pandemia que parece não ter fim. Paulo
era alguém que eu gostaria de ter conhecido pessoalmente; ele era solar,
irreverente, talentoso e aliciante ainda que por vezes, para mim, soasse um
tanto quanto arrogante.
Confesso que eu chorei um
pouco a cada dia desde terça-feira, dia da ocorrência daquelas duas tragédias. Sinto
calafrios só de imaginar a dor que as vítimas atacadas na creche sofreram. Não sou
hipócrita; não lamento morte de bandidos, principalmente dos que tocam o terror
nas comunidades onde atuam; não sei se todos os que foram abatidos em
Jacarezinho eram criminosos; o que eu lamento, o que me entristece em operações
de combate, como a que ocorreu no Rio de Janeiro, é a dimensão do medo que,
acredito, se instala no seio de inocentes pegos no meio do fogo cruzado e que
não têm outro lugar onde morar, porque, desamparados por políticas públicas e
abandonados pelo Estado, veem que, nestes casos, o Estado resolve se fazer,
enfim, presente, promovendo confrontos armados que resultam em carnificinas. Eu
não concordo com isso; eu não compactuo com uma ação de Estado que toma o abate
de criminosos como panaceia para pôr fim à criminalidade, porque o Estado deve
ser o baluarte da civilização e não da barbárie.
Eu me recuso terminantemente
a acreditar e a aceitar que Paulo Gustavo foi também ele abatido pela covid-19,
aumentando uma estatística medonha de mais de 420.000 mortos.
Eu era, melhor dizendo, eu
sou um apaixonado por Dona Hermínia, o personagem feminino que o Paulo criou a partir
de sua mãe. Considero uma coisa maravilhosa que ele tenha conseguido angariar
tanta simpatia com públicos os mais variados representando um papel feminino e,
ainda por cima, o de uma mãe. Isso não é pouco. Isso é com certeza algo
grandioso na carreira de um ator que, na vida cotidiana, era assumidamente
senhor da sua sexualidade; de uma sexualidade que não dava chance às maldades
dos preconceitos, que demarcava território e que estabelecia o império dos seus
desejos e das suas vontades, como o de se casar com um igual e ainda querer ser
pai, como ele foi. A isso eu chamo de ativismo pela liberdade de ser o que se
é.
Banalizaram tanto a palavra
gênio que uns e outros até classificaram Paulo Gustavo como genial. Não era
para tanto. Mas, indiscutivelmente, ele era um colosso de talento dentro da
estatura artística que tinha.
Aos meus olhos Dona Hermínia
exala um misto de frescor e de prepotência que me encantam. Ela é ao mesmo
tempo mandona e acolhedora; durona e supersensível. E eu sei exatamente por que
eu a adoro: é que eu também enxergo nela a figura da minha própria mãe. De certo
modo Dona Hermínia é uma mãezona que retrata tantas outras mãezonas que há por
aí. E mãe boa é a melhor coisa que existe.
Não faz muito tempo Paulo Gustavo
gravou um vídeo no qual disse que o riso é um ato de resistência. O riso,
Paulo, não é só resistência, sobretudo contra tempos e seres sombrios; o riso é
necessidade da vida; o riso é força vital; o riso é combustível que mantém
nossas engrenagens ligadas para que não sucumbamos às dores e às tristezas
provocadas pelas tragédias, pelos dissabores e pelos desencantos; o riso é a
nossa vingança e o nosso deboche contra a finitude da vida, porque o riso
sempre e sempre nos renova e nos restabelece enquanto o fim não chega.
Difícil acreditar que eu
perdi você, Paulo Gustavo. Difícil aceitar que, na véspera do Dia das Mães,
você, que durante muitos anos encarnou no teatro e no cinema uma mãe tão
querida, não esteja aqui. Como diria Dona Hermínia: “Que merda, que grande
merda é essa tal de covid-19!!”.
Agora eu estou mais uma vez ouvindo o Cassiano cantando a sua linda “Postal”: “Bye, bye, quem tanto amei...”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário