Por
Sierra
A
respeito de leis e de instituições
A
elaboração do chamado processo civilizatório, que buscou nos unir em uma grande
aldeia global, requereu a criação e a institucionalização de mecanismos e instrumentos
legais que pudessem alicerçar e/ou direcionar comportamentos, digamos,
exemplares e/ou condizentes com o pensamento que se crê seja o da maioria dos
indivíduos, de modo que, existindo uma espécie de modelo a ser seguido,
sabia-se como enquadrar e apontar todos aqueles que se desviassem dos tais parâmetros
definidos em leis.
Dentre
as diversas instituições criadas para corporificar, legitimar e representar o
Estado, no Brasil, as Polícias Militares (PM’s), talvez, sejam as que detenham
a maior carga de representatividade, ao menos para o cidadão comum, de qualquer
nível escolar e socioeconômico, do que se considera como estabelecimento da
lei, da ordem e mesmo da punibilidade, porque, a circulação de viaturas pelas
ruas e a presença de PM’s em vários pontos das cidades nos dão a impressão não
apenas de segurança, mas também nos dizem que o Estado está ali presente para
nos proteger contra a ação de quem porventura atente contra a lei e a ordem e
contra a nossa vida.
Analisando
particularmente cursos de formação de soldados da Polícia Militar de Pernambuco
(PMPE), o antropólogo Cristiano Galvão destacou que os homens e as mulheres que
ingressam em tais cursos “são treinados para aprender a representar posturas e
ações que demonstrem a presença física do Estado na defesa dos direitos do
cidadão”, dentre os quais podem ser citados “a segurança da vida, a liberdade
do indivíduo e a proteção do patrimônio público e privado” (Cristiano Galvão. A transformação do indivíduo em quase
Estado: um estudo etnográfico no curso de formação de soldados da Polícia
Militar de Pernambuco. Recife: Ed. do Autor, 2015, p. 157).
Devemos
ter em mente que o arcabouço legal, as leis, estabelecem tanto o papel do
Estado como agente defensor da ordem e do cumprimento das leis em si, como
tipifica crimes e delitos e as punições que a cada um deles é atribuída. E a
construção de todo esse aparato percorreu séculos, aqui e alhures, para ser
institucionalizado. Segundo o filósofo Michel Foucault, foi necessário controlar
e codificar o que se considera como “práticas ilícitas”; foi preciso que as
infrações fossem “bem definidas e punidas com segurança, que nessa massa de
irregularidades toleradas e sancionadas de maneira descontínua com ostentação
sem igual” fosse “determinado o que é infração intolerável” e que fosse “infligido
um castigo de que ela não poderá escapar” (Michel Foucault. Vigiar e punir: nascimento da prisão.
25ª ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 73).
A
dinâmica social, a transformação de entendimentos e o próprio ressignificado de
certos comportamentos e eu diria até que a descoberta e o conhecimento de novas
perspectivas e natureza de uma série de questões que nos rodeiam e mesmo
mudanças comportamentais vivenciadas ao longo do tempo, por vezes fazem com que
leis caduquem, sejam reelaboradas e até sejam criadas para atenderem e/ou se
adequarem a uma realidade que se impõe e que demanda outras avaliações legais.
Dito
isso, passemos para outro ponto deste artigo.
A
propósito de uma manifestação e da repressão a ela aplicada
No
último sábado, algumas ruas e avenidas da área central do Recife foram tomadas
por centenas de homens e mulheres que se organizaram em protesto contra o
governo do presidente da República Jair Bolsonaro. Manifestar-se contra ou a
favor de algo, sem infringir o que as leis estabelecem como legítimo e/ou reivindicar
alterações em leis com as quais não se concorda e/ou se considera absurdas e/ou
impróprias e/ou desnecessárias, é um direito garantido pela Constituição em
vigor neste país.
Considerando
tudo isso, não é sem razão que permanecem ecoando até hoje nos ouvidos de
muitos o barulho provocado pelos disparos de balas de borracha e de estouros de
bombas de gás lacrimogêneo que integrantes da PMPE lançaram contra aqueles manifestantes.
Mesmo
considerando, repito, mesmo considerando, como mostraram imagens nas quais
alguns manifestantes destruindo o tapume de um prédio localizado na Rua da Aurora
para construírem uma espécie de barricada contra a ação dos militares e ainda
que, repito, ainda que um e outro participante da manifestação tenha jogado uma
pedra ou outro objeto na direção dos PM’s, era o caso de a repressão aos
manifestantes ter tomado a dimensão que tomou? Era realmente necessário que os
militares disparassem balas de borracha a curta distância na cabeça de pelo
menos dois homens que acabaram perdendo a visão de um dos seus olhos? Não foi
um uso desproporcional de força, para dizer o mínimo?
Particularmente
eu, Clênio Sierra de Alcântara, não consigo deixar de interpretar o ocorrido
como algo que está inescapavelmente ligado a uma postura escancaradamente
legitimada pelo discurso maniqueísta do “nós contra eles”, que o senhor Jair
Bolsonaro disseminou neste país e que, infeliz e lamentavelmente, eu acredito,
se entranhou nas instituições militares e nas forças de segurança, em geral,
contaminando boa parte dos seus efetivos ao incutir neles um viés ideológico e
político-partidário incompatíveis com a caserna; e levando uns e outros a
agirem tomando suas convicções pessoais e suas visões de mundo como se elas
fossem parte e integrassem os regulamentos e os fundamentos das instituições às
quais eles pertencem; e, o que é com certeza ainda mais grave, querendo fazer
de tais convicções e visões de mundo política e ação de Estado.
Acredito
que, pelo menos por ora, nós continuaremos sem saber se a repressão à manifestação
ocorrida no Recife, no último sábado, foi uma ação de caráter institucional ou
se foi um movimento tomado por alguém que, seguindo a cartilha bolsonariana,
agiu para inflamar o discurso do “nós contra eles”. Ninguém tira da minha
cabeça que a segunda suposição é que é a verdadeira, dado o grau de fervura em
que o panorama político nacional se encontra, estando o próprio presidente da
República, com seus arroubos autoritários e com seu desprezo pela democracia,
aparece estimulando a insubordinação nos quartéis, vide o que aconteceu com o
general Eduardo Pazuello, que espezinhou o regulamento disciplinar do Exército
ao participar de um ato político ao lado do mandatário da nação e escapou de
ser punido, acredita-se, por conta de uma intervenção presidencial.
Guardadas
as devidas proporções, o que ocorreu no Recife, a meu ver, tem muito do que se
viu dias depois – precisamente na segunda-feira, 31 de maio – em Trindade, na
Região Metropolitana de Goiânia, no episódio em que um tenente da PM, apoiador
do presidente da República, deu ordem de prisão a um homem – por acaso ou não, o
cidadão pertence aos quadros do Partido dos Trabalhadores – e, com o apoio de
sua guarnição, o levou para uma unidade da Polícia Federal, dizendo que o
sujeito estava caluniando o presidente e infringindo a Lei de Segurança
Nacional ao circular com uma faixa em seu carro na qual se lia “Fora Bolsonaro
genocida”. O homem, claro, foi ouvido e liberado, porque não era bem como o
tenente gostaria que fosse.
Juntando
os dois episódios amplamente divulgados pela chamada “mídia golpista”, como
dizem os bolsonarianos, fica a singela pergunta: por que até agora PM’s não
agiram para reprimir ou dispersar, como eles dizem, manifestações
pró-Bolsonaro, que reúnem, no mais das vezes, um pessoal que, de acordo com as leis
e o entendimento do Supremo Tribunal Federal, pratica, além da livre
manifestação amparada pela Constituição, crimes como louvar a Ditadura Militar?
O
discurso e a base doutrinária do “nós contra eles” operam, eivados de ódio e de
intolerância, da seguinte maneira: eu, Clênio Sierra de Alcântara, por exemplo,
que sou ateu; que me relaciono sexualmente com homens e mulheres; que não como
carne vermelha e nem consumo bebida alcoólica; que torço pelo Sport Club do
Recife; que tenho em minha biblioteca livros de Gilberto Freyre e Fernando
Gabeira; que apoio a prática do aborto; que sou contra a adoção de uma política
armamentista; que defendo uma cultura de paz; que ouço frequentemente Maria
Bethania, Marina Lima e Zizi Possi; que uso os termos “todos” e “todas” e não “todes” e “todxs”;
e que não nutro a mínima simpatia pelos senhores Jair Bolsonaro e Luiz Inácio
Lula da Silva devo enxergar fulano, beltrano e sicrano, que são cristãos,
budistas e judeus; que são assexuados, heterossexuais ou binários; que são
vegetarianos, veganos ou gostam de churrasco de picanha e bebem tudo ou quase tudo que
contenha álcool; que torcem pelo Santa
Cruz, Náutico e Salgueiro; que leem Olavo de Carvalho, Edir Macedo e Alexandre
Garcia; que insistem em enquadrar o aborto como crime; que pregam que todo
mundo deve possuir uma arma de fogo; que defendem o confronto bélico
permanente; que ouvem Marília Mendonça e Gusttavo Lima; que dizem que quem fala
e escreve “todes” e “todxs” faz militância “gayzista”; e os que louvam e
aplaudem os senhores Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva não valem nada
e são meus inimigos mortais e vice-versa.
Tal
doutrina, que repudia o debate e a discordância, que sepulta o diálogo querendo
estabelecer o “é isso mesmo e acabou-se”, se já é corrosivamente prejudicial
quando vai surgindo quase que naturalmente nas relações interpessoais, imaginem
o que ela não pode provocar quando é incentivada e apoiada pelo mandatário de
um país e se entranha nas instituições.
Pouca
gente sabe que, em 1988, enquanto se desenrolava a Constituinte, o coronel
Sebastião Ferreira Chaves foi ao Congresso Nacional tentar convencer alguns
parlamentares a mudar o sistema policial dos estados. O coronel Chaves
pretendia que a nova Constituição que estava sendo gestada desse às unidades da
federação autonomia para organizar livremente suas polícias, mas extinguindo as
Polícias Militares. Ele era defensor de uma polícia civil, com um grupamento
fardado cujo mais alto posto da hierarquia fosse o de capitão, porque, segundo
seu entendimento, “Não podemos ter uma polícia com uma hierarquia semelhante à
do Exército, pois, assim, ela se torna uma organização paramilitar” (Apud.
Hélio Contreiras. In Militares:
confissões. Histórias secretas do Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p.
55).
Eu
trouxe o posicionamento do coronel Chaves à baila, que era tido como “um
oficial politicamente conservador”, para contrastá-lo com o do atual ocupante
do Palácio do Planalto, cuja doutrina do “nós contra eles”, alinhada com uma
política armamentista, fica a todo tempo buscando angariar a simpatia dos
militares, em geral, e do oficialato, em particular, aumentando seus salários e
distribuindo cargos e ministérios a eles, e que, segundo se sabe, anda
empenhado para que a organização das PM’s seja alterada de modo que o topo do
comando passe a contar com a figura de um “oficial general”.
Caso
eu fosse cristão diria que um dos pecados do desgoverno do senhor Jair
Bolsonaro é acreditar piamente que todos os militares, quer os das Forças Armadas,
quer os das Polícias Militares e os dos Corpos de Bombeiros, estão “fechados”
com ele, para usar uma expressão tão em voga por esses dias. Não estão, não,
senhor presidente; também neste quesito o senhor redondamente enganado.
Que
lições serão tiradas do episódio ocorrido no Recife?
Ainda
gerando desdobramentos, visto que pelo menos um inquérito foi instaurado para
apurar o que levou PM’s a atuarem como atuaram na manifestação de protesto
contra o desgoverno do presidente da República Jair Bolsonaro, ocorrida na
capital pernambucana no último sábado, o episódio já provocou a troca do
comandante-geral da corporação e o da Secretaria de Defesa Social.
A
Polícia Militar de Pernambuco existe para proteger a mim, a você, aos nossos
familiares e aos homens e às mulheres que a constituem, ou seja, à sociedade
por inteiro; de maneira que não pode faltar aos seus componentes o entendimento
de que, fundamentalmente e para além da defesa dos patrimônios público e
privado, da lei e da ordem, ela deve zelar pela vida de todo e qualquer cidadão.
A adoção de uma política do “tiro na cabecinha”, proposta pelo ex-governador do
Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e do “bandido bom é bandido morto” é
completamente danosa para o processo civilizatório como um todo; primeiro,
porque pratica crime alguém que cometeu um assalto seguido de morte, o
latrocínio, como também quem furtou um pote de margarina de um supermercado ou
desviou dinheiro da merenda escolar, por exemplo; segundo, porque, fosse para
estabelecer a prática da barbárie ou o suplício de uma “raiva sem lei”, para
usar outro pensamento de Michel Foucault, as instituições de defesa da lei, da
ordem, da civilidade e da vida, repito, da vida, não precisariam ser criadas; e
vagaríamos todos por aí como selvagens, matando uns aos outros, sem respeitar
nada e nem ninguém, e tentando, a ferro e fogo, impor as nossas crenças e
vontades.
O
episódio ocorrido no centro do Recife, no sábado 29 de maio, certamente ficará
marcado como um acontecimento trágico e infeliz numa página do livro da
história da Polícia Militar de Pernambuco. Mas as páginas trágicas e infelizes
de nossas histórias têm de ser viradas e nunca arrancadas, para que, olhando
para trás, possamos enxergar o que elas contêm de erros, acertos, vitórias,
derrotas, equívocos, frustrações, precipitações, irresponsabilidades, prepotências,
covardias e até maldades pura e simples. Acredito que duas das maiores lições que
tomamos ao longo de nossa existência sejam reconhecer os próprios erros e
extirpar atitudes e comportamentos que nos são ruinosos.
A mais do que centenária Polícia Militar de Pernambuco é uma instituição admirável sob muitos aspectos; e há de continuar sendo a guardiã da paz e da vida de todos, repito, de todos os pernambucanos.
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