Por Sierra
As evidências quase sempre
cuidam de desmascarar os desmentidos. Por mais que uns e outros queiram negar,
para onde quer que se olhe no âmbito da arte e da cultura que cabe ao governo
federal cuidar e gerir ocorreu significativo retrocesso em várias frentes. E por
que isso ocorreu e está ocorrendo? Sou levado a acreditar, pelo que eu venho
acompanhando desde a posse do senhor Jair Bolsonaro, que a polarização política
tratou de considerar arte e cultura como “coisas de esquerda” e, como tais,
devem ser reprimidas, ignoradas, deixadas de lado ou suprimidas, porque,
seguindo esse raciocínio, se são “coisas de esquerda” evidentemente que não
prestam, não têm valor e muito menos serventia. Ocorre que a preservação da
memória é um direito do cidadão. As dimensões múltiplas da cultura, o
patrimônio histórico, compreendem “imagens de um passado vivo”, como sentenciou
Maria Célia Paoli; deve ser assim ou deveria ser assim, porque acontecimentos e
coisas que merecem ser preservadas “são coletivamente significativas em sua
diversidade” (Maria Célia Paoli. “Memória, história e cidadania: o direito ao
passado. In O direito à memória:
patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DHP, 1992, p. 25).
O desprezo do atual governo
pela arte e pela cultura teve como maior indicativo o fim do Ministério da
Cultura. Sob a pedagogia da beligerância, digamos assim, pela qual,
diferentemente do que propunha Monteiro Lobato com sua máxima de que “um país
se faz com homens e livros”, o presidente Jair Bolsonaro e os por ele
recrutados defendem que uma nação se constrói com homens e armas, tratou-se a
cultura e arte como algo de pouca ou nenhuma importância que, ainda por cima,
consome muitos recursos públicos.
Antes que o leitor me acuse
de desonestidade intelectual apontando para as obras de restauração e de
requalificação de sítios e de monumentos históricos que estão sento entregues
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), é bom que
se diga que praticamente todas as obras que foram entregues nos últimos anos
são resultados de projetos orçados e planejados ainda antes da assunção do
presidente Jair Bolsonaro. Ainda no que diz respeito ao Iphan, que é o
principal órgão responsável por salvaguardar, fiscalizar, restaurar e promover
o patrimônio histórico, artístico e cultural do país, nunca antes teve em sua
presidência alguém com tão medíocre preparo acadêmico como agora. Não sem
razão, os críticos que apontam o dedo para um emasculado Iphan também fazem
duras avaliações pelo que anda se passando na Fundação Palmares onde, a mim me
parece, a gana e a fúria antiesquerdista estão se processando de modo mais
contundente. E o que dizer da atuação da Secretaria Especial da Cultura? Bem,
estão aí as Reginas Duartes e os Mários Frias dizendo a que vieram.
Alguém em sã consciência
apostaria um real que fosse que, dado o desprezo que tal desgoverno demonstra
para com o universo cultural e artístico – na mesma toada, diga-se, vai o
Ministério da Educação, que caminha para um fim de mandato com o terceiro
ocupante, e que, até agora, não formulou nem sequer uma proposta relevante para
a área – iria se importar e cuidar da preservação da Cinemateca Brasileira
localizada, ainda mais, logo onde, em São Paulo, estado governado por um
opositor do presidente da República? Anteontem o mesmo anexo da Cinemateca que,
em fevereiro, sofreu com uma grande inundação, foi tomado por um incêndio que
converteu em cinzas parte da memória cinematográfica nacional. E, verdade seja
dita, a precariedade que por ora toma a Cinemateca vem se avolumando desde
governos anteriores.
Quem viu as chamas consumindo
o galpão da Cinemateca deve ter recordado do incêndio que destruiu uma parte
significativa do acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, ocorrido em setembro
de 2018, e também do que, três anos antes, consumiu o Museu da Língua
Portuguesa, todos eles reveladores de algum grau de debilidade dos mecanismos
de preservação e de prevenção contra incêndios que marcam, em âmbito quase que
absoluto, os equipamentos culturais do país. O mais recente foi o quinto incêndio que atingiu a Cinemateca Brasileira ao longo de sua história.
Muito pelo empenho da
Fundação Roberto Marinho, do Grupo Globo, e de parceiros privados, o Museu da
Língua Portuguesa, instalado no imponente prédio da antiga Estação da Luz, em
São Paulo, reabriu as suas portas na manhã deste sábado; tal reabertura que,
como não poderia ser diferente, não contou com a presença de nenhum
representante do governo federal na cerimônia, foi um desses acontecimentos que
fazem com que os que acreditam no poder transformador da cultura e da arte se
agarrem a um fio de esperança de que nem tudo está perdido neste país. A memória
rediviva de um restaurado e revigorado Museu da Língua Portuguesa é um alento
nestes dias tão sombrios e marcados por manifestações de ódio, intolerância e
obscurantismo.
Mesmo depois da criação e do
início da atuação do Iphan, ocorrida em 1937, muito do patrimônio histórico,
artístico e cultural deste país foi destruído por incêndios criminosos ou não,
pelo abandono, pela indiferença, pela falta de educação patrimonial, pela
ganância, pela especulação imobiliária e pela maldade pura e simples. Considero
muito pertinente e válida discussão sobre a questão daquilo que eu chamo de “representatividade
da diversidade nas políticas de preservação patrimonial”, uma discussão antiga, que põe em pauta o fundamento de uma
política preservacionista que privilegia mais a história dos dominadores e
menos a dos dominados; mas, daí a destruir e/ou incendiar edificações,
monumentos e estátuas, como foi o caso visto, também em São Paulo, dias atrás,
da estátua do bandeirante Borba Gato, vai uma distância enorme.
Como eu disse, a questão da “representatividade
da diversidade nas políticas de preservação patrimonial” é uma discussão antiga. Ainda na década de 1980, Eunice Ribeiro
Durham observou que as grandes obras arquitetônicas, por exemplo, são/foram produzidas
pelos pedreiros, pelos azulejistas, pelos encanadores, “mas é uma camada
dominante que se apropria dela, que a utiliza, que a investe de significados e
que a usa para enriquecer a sua existência cultural” (Eunice Ribeiro Durham. “Texto
II”. In Antonio Augusto Arantes [org.]. Produzindo
o passado – Estratégias de construção do patrimônio cultural. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1984, p. 33). O debate permanece na ordem do dia porque,
de alguma forma, as manifestações em praça pública e as discussões que tomam
corpo nas chamadas redes sociais tocam em pontos nevrálgicos deste assunto que
não podem ser deixados de lado, uma vez que a questão do patrimonial, como bem
disse Cláudio Ribeiro, “possui um caráter tão importante para a (trans)formação
nacional que deve adquirir um grau primário na formação social” (Cláudio
Ribeiro. “Patrimônio e cidadania: contradições conceituais do espaço cordial”
In Paulo Ormindo David de Azevedo e Elyane Lins Corrêa [orgs.]. Estado e sociedade na preservação do
patrimônio. Salvador: EDUFBA: IAB, 2013, p. 89). Patrimônio histórico,
artístico e cultural não é coisa sem importância e não pertence à esquerda e
nem à direita: é patrimônio de toda a sociedade e de todo o país.
Representatividade e diversidade são, aliás, as palavras símbolo deste nosso tempo; palavras essas utilizadas para reivindicar o que quer que seja, inclusive, a preservação da
memória dos “excluídos da História”, porque pensar em representatividade é estabelecer fundamentalmente uma concepção preservacionista para além dos extremos vencedores e vencidos, dominadores e dominados, abrindo espaço para a diversidade.
Dito isso, sejamos sempre defensores da preservação da memória e não arautos da barbárie, do obscurantismo, do descaso e do esquecimento.
Foi com grande emoção que recebi como versos, poesia e respeito a literatura a reabertura e restauração do museu da língua portuguesa , um legado para o Brasil e para mundo.
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