Por Sierra
Negar as evidências é um dos
exercícios mais inglórios ao qual alguém se dedica. É como enxugar gelo, tapar
o sol com a peneira e fazer de conta que algo não existe embora se saiba que
ele continua ali.
O atual ocupante do Palácio
do Planalto nunca conseguiu esconder de quem quer que fosse a sua sanha
autoritária e o seu principal – e eu diria até que único – projeto de nação
para o Brasil, que é a instituição de uma ditadura militar. Ainda que vez e
outra ele negue esse seu propósito e se apresente como defensor da democracia,
os seus gestos, as suas falas, os seus comportamentos, a sua retórica e as suas
articulações deixam a todo tempo isso em evidência. Ou seja, ele nega o que
está mais do que evidente aos olhos de quem queira ver.
Oriundo do meio militar, de
onde teve de sair por ter um comportamento incompatível e inadequado para com a
disciplina e a ordem existentes nas Forças Armadas, o senhor Jair Bolsonaro, em
razão de várias circunstâncias e não por mérito próprio, que ele não tem
nenhum, chegou à presidência da República; e uma vez alojado nela, tratou logo
de alicerçar o seu “projeto de nação” cooptando centenas, milhares de militares
para o seu governo que não demoraria a se revelar um verdadeiro desgoverno. Com
ministérios e outros cargos bem remunerados existentes na máquina pública ele
conseguiu atrair facilmente uma massa bastante significativa de militares tanto
da ativa como da reserva. E, para reforçar a cooptação dessa gente, fez o que
pôde para deixá-la cada dia mais alinhada com as diretrizes do desgoverno,
sendo os privilégios garantidos na reforma da previdência e os gordos orçamentos
das Forças Armadas os mais evidentes.
Se ainda – repita-se, ainda –
ele não conseguiu restabelecer e reinstaurar uma ditadura militar neste país, a
oferta de cargos e ministérios e um demagógico e algo canhestro discurso patriótico
conseguiram ao menos, até agora, provocar um clima de constante animosidade e
estranhamento entre as Forças Armadas e os poderes Legislativo e Judiciário
como não se via há muitos anos. Outra evidência do cunho autoritário que move a
superfície e as entranhas desse desgoverno vil e infame que salta aos olhos é a
recorrente utilização da retrógrada Lei de Segurança Nacional para enquadrar os
indivíduos que, vejam só, ofendem a honra do presidente da República; desde a
redemocratização, ocorrida em 1985, não se fez tanto uso dessa lei como nestes
tempos sombrios que estamos a atravessar.
Nesta semana uma declaração
de Omar Aziz, presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ora em
curso no Senado, provocou reação da parte do Ministério da Defesa numa nota
assinada pelo ministro da pasta e pelos comandantes das Forças Armadas. Não acredito,
como avaliou o general Santos Cruz, que seja somente – e somente aqui, diga-se,
é muita coisa – por um deslumbramento com o poder que tantos militares aderiram
a essa verdadeira distopia que é o desgoverno do senhor Jair Bolsonaro. Poder e
vantagens pecuniárias são, de fato, elementos aliciantes para, talvez, a
maioria das pessoas. Mas eu penso que para além de tais itens pesa e muito uma
vontade latente de estar no comando de tudo, como numa ditadura.
Há quem enxergue um enorme
paradoxo na postura dos militares que aderiram ao desgoverno, mas, ao mesmo
tempo, não querem ser cobrados por essa adesão. Não existe paradoxo algum nessa
atitude. Desde pelo menos 1889, quando promoveram a proclamação de uma
República que já nasceu velha, eles protagonizaram várias quarteladas e episódios
de intromissão na esfera política da nação que culminaram na decretação de uma
ditadura, em 1964, que se prolongou por duas décadas.
A CPI presidida pelo senador
Omar Aziz vem semanalmente revelando quão desastrosa, para dizer o mínimo, foi
a ocupação militar do Ministério da Saúde. Pelo rumo que os depoimentos e as
investigações estão tomando, provavelmente ficará comprovado que o desastre
ocorrido durante o período mais negro da pandemia teve realmente como
protagonistas inúmeros homens oriundos das Forças Armadas, como o general Eduardo
Pazuello, então chefe da inoperância naquele que foi convertido em Ministério
da Morte.
Chegou a ser ofensivo, para parte
da opinião pública, o modo com que o Ministério da Defesa rebateu a fala do
senador Omar Aziz; mas a postura do general Braga Netto foi condizente com o
que as Forças Armadas pensam sobre si mesmas e sobre os “outros”, sendo esses “outros”,
tudo o mais que sobra da sociedade. Em tom desproporcional e belicista, para
não dizer intimidador, a nota que o ministro e os comandantes assinaram está
eivada por um sentimento de poder supremo, de casta e de intocabilidade que as Forças
Armadas se julgam detentoras. Elas agem como que querendo a todo tempo
estabelecer e impor suas vontades e visões de mundo como se estivessem acima do
bem e do mal e constituíssem um Estado dentro do Estado que, em hipótese alguma,
deve receber sequer uma crítica negativa e/ou ser contestado; partam essas
observações de onde partirem elas são de pronto rebatidas como sendo “ataques
levianos” e desrespeitosos à instituição militar como um todo.
Sob qualquer ângulo que
sejam analisadas, as recorrentes trocas de farpas que vêm ocorrendo, desde a campanha
eleitoral de 2018, entre membros dos poderes Legislativo, Judiciário e das
Forças Armadas revelam que o senhor Jair Bolsonaro é um prodigioso elemento
semeador de discórdia e de ruptura. Mas, verdade seja dita, os militares
tomaram lugar nessa barca furada que é o atual do desgoverno do Brasil porque
quiseram e porque se viram representados nele. Os militares, que se posicionam
como os únicos defensores e garantidores da soberania nacional para exigir toda
sorte de privilégios, como as “pensões hereditárias”, ao mesmo tempo que se
pronunciam em tom belicoso contra falas e comportamentos dos ditos “inimigos’
do desgoverno que eles integram, espalhados por ministérios e secretarias e
estatais, por outro lado, silenciam e/ou fingem ignorar os inúmeros ataques à
democracia e à ordem social protagonizados pelo próprio presidente da República
e por seus seguidores contando, algumas vezes, inclusive, com a participação do
alto oficialato das próprias Forças Armadas. Dito isso, como compreender que o
Ministério da Defesa e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica
repudiem veementemente, como se fosse a coisa mais ofensiva que alguém neste
país já dirigiu às inatacáveis e impolutas e infalíveis Forças Armadas, um
indivíduo dizer que existe um “lado podre” nelas? E por que, além de não punir
o general Eduardo Pazuello por ele ter participado de um ato político ao lado
do senhor Jair Bolsonaro, o Exército ainda impôs um sigilo de cem anos para o
caso? E o que dizer do discurso ameaçador empregado pelo general Mattos em
recente entrevista à revista Veja? Quer
dizer que são os civis que estão a “esticar a corda”?
Ao assumirem o papel de
fiadoras de um desgoverno que tem à sua frente um mentecapto apático que é a
vanguarda do atraso, as Forças Armadas e/ou parte delas conscientemente
assumiram igualmente um papel desabonador de coadjuvantes e de cúmplices nesse
clima de desagregação, desunião e de terror que se estabeleceu neste país. Acusar
e apontar males praticados pela “esquerda” aplicando veneno em vez de remédios
é uma demonstração mais do que clara que essa “direita” que está aí é tão ou
mais nociva do que os males que ela diz estar empenhada em combater.
Diariamente o senhor Jair
Bolsonaro vai aumentando a sua coleção de presepadas, infâmias, descaso para com
as medidas sanitárias e ataques aos ideais democráticos e as Forças Armadas
como que endossam tal postura. Apresentando-se como defensor da moral e dos
bons costumes, da “família tradicional”, da “religião brasileira” e da “nova
política” e de outros itens de marketing
eleitoral, o atual ocupante do Palácio do Planalto aliciou milhões e milhões de
empedernidos falsos moralistas, de preconceituosos de toda espécie e de
inimigos da democracia, um verdadeiro rebanho de um retrocesso dito cristão.
Ainda nesta semana o senhor Jair
Bolsonaro veio a público dizer que cagara para a CPI que está investigando as
ingerências que o desgoverno dele praticou ao longo do desenrolar da pandemia
do coronavírus que até o dia de hoje ceifou 532.949 vidas neste país. Prepare-se
com bastante papel higiênico, senhor presidente, porque, pelo que se tem
comentado nos recantos obscuros e tenebrosos da ensolarada Brasília, mais
merdas feitas por Vossa Excelência e por seus cupinchas serão jogadas no
ventilador nos próximos dias.
É lamentável, bastante lamentável
e também preocupante, que as Forças Armadas, que se destinam à defesa da pátria
e à garantia dos poderes constitucionais, conforme vai dito na Constituição de
1988, ainda em vigor, formem fileira e caiam nas armadilhas de um celerado como
o senhor Jair Bolsonaro que, não bastasse estar denegrindo e desmoralizado o
seu papel de chefe da nação, dia a dia trata igualmente de aviltá-las.
Atentem para o toque de uma
nova alvorada, senhores generais, pois o verdadeiro inimigo das Forças Armadas
está dentro do Palácio do Planalto e não fora dele.
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