10 de julho de 2021

Toque de uma nova alvorada contra tempos sombrios

 Por Sierra


Foto: Marcos Corrêa
Sob qualquer ângulo que sejam analisadas, as recorrentes trocas de farpas que vêm ocorrendo, desde a campanha eleitoral de 2018, entre membros dos poderes Legislativo, Judiciário e das Forças Armadas revelam que o senhor Jair Bolsonaro é um prodigioso elemento semeador de discórdia e de ruptura. Atentem para o toque de uma nova alvorada, senhores generais, pois o verdadeiro inimigo das Forças Armadas está dentro do Palácio do Planalto e não fora dele.


 

Negar as evidências é um dos exercícios mais inglórios ao qual alguém se dedica. É como enxugar gelo, tapar o sol com a peneira e fazer de conta que algo não existe embora se saiba que ele continua ali.

O atual ocupante do Palácio do Planalto nunca conseguiu esconder de quem quer que fosse a sua sanha autoritária e o seu principal – e eu diria até que único – projeto de nação para o Brasil, que é a instituição de uma ditadura militar. Ainda que vez e outra ele negue esse seu propósito e se apresente como defensor da democracia, os seus gestos, as suas falas, os seus comportamentos, a sua retórica e as suas articulações deixam a todo tempo isso em evidência. Ou seja, ele nega o que está mais do que evidente aos olhos de quem queira ver.

Oriundo do meio militar, de onde teve de sair por ter um comportamento incompatível e inadequado para com a disciplina e a ordem existentes nas Forças Armadas, o senhor Jair Bolsonaro, em razão de várias circunstâncias e não por mérito próprio, que ele não tem nenhum, chegou à presidência da República; e uma vez alojado nela, tratou logo de alicerçar o seu “projeto de nação” cooptando centenas, milhares de militares para o seu governo que não demoraria a se revelar um verdadeiro desgoverno. Com ministérios e outros cargos bem remunerados existentes na máquina pública ele conseguiu atrair facilmente uma massa bastante significativa de militares tanto da ativa como da reserva. E, para reforçar a cooptação dessa gente, fez o que pôde para deixá-la cada dia mais alinhada com as diretrizes do desgoverno, sendo os privilégios garantidos na reforma da previdência e os gordos orçamentos das Forças Armadas os mais evidentes.

Se ainda – repita-se, ainda – ele não conseguiu restabelecer e reinstaurar uma ditadura militar neste país, a oferta de cargos e ministérios e um demagógico e algo canhestro discurso patriótico conseguiram ao menos, até agora, provocar um clima de constante animosidade e estranhamento entre as Forças Armadas e os poderes Legislativo e Judiciário como não se via há muitos anos. Outra evidência do cunho autoritário que move a superfície e as entranhas desse desgoverno vil e infame que salta aos olhos é a recorrente utilização da retrógrada Lei de Segurança Nacional para enquadrar os indivíduos que, vejam só, ofendem a honra do presidente da República; desde a redemocratização, ocorrida em 1985, não se fez tanto uso dessa lei como nestes tempos sombrios que estamos a atravessar.

Nesta semana uma declaração de Omar Aziz, presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ora em curso no Senado, provocou reação da parte do Ministério da Defesa numa nota assinada pelo ministro da pasta e pelos comandantes das Forças Armadas. Não acredito, como avaliou o general Santos Cruz, que seja somente – e somente aqui, diga-se, é muita coisa – por um deslumbramento com o poder que tantos militares aderiram a essa verdadeira distopia que é o desgoverno do senhor Jair Bolsonaro. Poder e vantagens pecuniárias são, de fato, elementos aliciantes para, talvez, a maioria das pessoas. Mas eu penso que para além de tais itens pesa e muito uma vontade latente de estar no comando de tudo, como numa ditadura.

Há quem enxergue um enorme paradoxo na postura dos militares que aderiram ao desgoverno, mas, ao mesmo tempo, não querem ser cobrados por essa adesão. Não existe paradoxo algum nessa atitude. Desde pelo menos 1889, quando promoveram a proclamação de uma República que já nasceu velha, eles protagonizaram várias quarteladas e episódios de intromissão na esfera política da nação que culminaram na decretação de uma ditadura, em 1964, que se prolongou por duas décadas.

A CPI presidida pelo senador Omar Aziz vem semanalmente revelando quão desastrosa, para dizer o mínimo, foi a ocupação militar do Ministério da Saúde. Pelo rumo que os depoimentos e as investigações estão tomando, provavelmente ficará comprovado que o desastre ocorrido durante o período mais negro da pandemia teve realmente como protagonistas inúmeros homens oriundos das Forças Armadas, como o general Eduardo Pazuello, então chefe da inoperância naquele que foi convertido em Ministério da Morte.

Chegou a ser ofensivo, para parte da opinião pública, o modo com que o Ministério da Defesa rebateu a fala do senador Omar Aziz; mas a postura do general Braga Netto foi condizente com o que as Forças Armadas pensam sobre si mesmas e sobre os “outros”, sendo esses “outros”, tudo o mais que sobra da sociedade. Em tom desproporcional e belicista, para não dizer intimidador, a nota que o ministro e os comandantes assinaram está eivada por um sentimento de poder supremo, de casta e de intocabilidade que as Forças Armadas se julgam detentoras. Elas agem como que querendo a todo tempo estabelecer e impor suas vontades e visões de mundo como se estivessem acima do bem e do mal e constituíssem um Estado dentro do Estado que, em hipótese alguma, deve receber sequer uma crítica negativa e/ou ser contestado; partam essas observações de onde partirem elas são de pronto rebatidas como sendo “ataques levianos” e desrespeitosos à instituição militar como um todo.

Sob qualquer ângulo que sejam analisadas, as recorrentes trocas de farpas que vêm ocorrendo, desde a campanha eleitoral de 2018, entre membros dos poderes Legislativo, Judiciário e das Forças Armadas revelam que o senhor Jair Bolsonaro é um prodigioso elemento semeador de discórdia e de ruptura. Mas, verdade seja dita, os militares tomaram lugar nessa barca furada que é o atual do desgoverno do Brasil porque quiseram e porque se viram representados nele. Os militares, que se posicionam como os únicos defensores e garantidores da soberania nacional para exigir toda sorte de privilégios, como as “pensões hereditárias”, ao mesmo tempo que se pronunciam em tom belicoso contra falas e comportamentos dos ditos “inimigos’ do desgoverno que eles integram, espalhados por ministérios e secretarias e estatais, por outro lado, silenciam e/ou fingem ignorar os inúmeros ataques à democracia e à ordem social protagonizados pelo próprio presidente da República e por seus seguidores contando, algumas vezes, inclusive, com a participação do alto oficialato das próprias Forças Armadas. Dito isso, como compreender que o Ministério da Defesa e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica repudiem veementemente, como se fosse a coisa mais ofensiva que alguém neste país já dirigiu às inatacáveis e impolutas e infalíveis Forças Armadas, um indivíduo dizer que existe um “lado podre” nelas? E por que, além de não punir o general Eduardo Pazuello por ele ter participado de um ato político ao lado do senhor Jair Bolsonaro, o Exército ainda impôs um sigilo de cem anos para o caso? E o que dizer do discurso ameaçador empregado pelo general Mattos em recente entrevista à revista Veja? Quer dizer que são os civis que estão a “esticar a corda”?

Ao assumirem o papel de fiadoras de um desgoverno que tem à sua frente um mentecapto apático que é a vanguarda do atraso, as Forças Armadas e/ou parte delas conscientemente assumiram igualmente um papel desabonador de coadjuvantes e de cúmplices nesse clima de desagregação, desunião e de terror que se estabeleceu neste país. Acusar e apontar males praticados pela “esquerda” aplicando veneno em vez de remédios é uma demonstração mais do que clara que essa “direita” que está aí é tão ou mais nociva do que os males que ela diz estar empenhada em combater.

Diariamente o senhor Jair Bolsonaro vai aumentando a sua coleção de presepadas, infâmias, descaso para com as medidas sanitárias e ataques aos ideais democráticos e as Forças Armadas como que endossam tal postura. Apresentando-se como defensor da moral e dos bons costumes, da “família tradicional”, da “religião brasileira” e da “nova política” e de outros itens de marketing eleitoral, o atual ocupante do Palácio do Planalto aliciou milhões e milhões de empedernidos falsos moralistas, de preconceituosos de toda espécie e de inimigos da democracia, um verdadeiro rebanho de um retrocesso dito cristão.

Ainda nesta semana o senhor Jair Bolsonaro veio a público dizer que cagara para a CPI que está investigando as ingerências que o desgoverno dele praticou ao longo do desenrolar da pandemia do coronavírus que até o dia de hoje ceifou 532.949 vidas neste país. Prepare-se com bastante papel higiênico, senhor presidente, porque, pelo que se tem comentado nos recantos obscuros e tenebrosos da ensolarada Brasília, mais merdas feitas por Vossa Excelência e por seus cupinchas serão jogadas no ventilador nos próximos dias.

É lamentável, bastante lamentável e também preocupante, que as Forças Armadas, que se destinam à defesa da pátria e à garantia dos poderes constitucionais, conforme vai dito na Constituição de 1988, ainda em vigor, formem fileira e caiam nas armadilhas de um celerado como o senhor Jair Bolsonaro que, não bastasse estar denegrindo e desmoralizado o seu papel de chefe da nação, dia a dia trata igualmente de aviltá-las.

Atentem para o toque de uma nova alvorada, senhores generais, pois o verdadeiro inimigo das Forças Armadas está dentro do Palácio do Planalto e não fora dele.

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