28 de agosto de 2021

A propósito de uma coleção de selos

 Por Sierra

 

Fotos: Arquivo do Autor
Eu muito bem a mim me fiz ao trazer para o meu acervo substitutos de parte da minha memória material que um dia eu reduzi a cinzas, como se o passado pudesse ser de todo incinerado, destruído e apagado



Eu ainda era uma criança quando, por influência de um garoto que era filho dos compadres dos meus padrinhos, comecei a colecionar selos postais. O ato de colecionar o que quer que seja é um exercício por vezes extenuante e doloroso na medida em que, aliado a gana de querer conseguir mais e mais objetos e exemplares para a coleção, amargamos a frustração por não possuir aquele item tão desejado e nem grana para adquiri-lo. Colecionar é, também, um exercício de paciência.

Por anos a fio eu fui, por assim dizer, um colecionador compulsivo: colecionei calendários, figurinhas que vinham envolvendo chicletes, tampas de margarina que traziam desenhos de super-heróis, caixas de fósforos, álbuns do chocolate Surpresa, cédulas e moedas, embalagens de cigarros, memorabilia de Madonna e de Michael Jackson e selos postais.

Durante vários anos eu me tornei um verdadeiro aficionado por selos. Pedia dinheiro a Mainha e juntava com o que Vovó Conceição eventualmente me dava e ainda com o que eu conseguia como garoto leva-e-traz, como moleque de mando, e lá ia eu, às vezes só, às vezes acompanhado, à Agência Filatélica da agência central dos Correios, na Av. Guararapes esquina com a Rua do Sol, no bairro de Santo Antônio, área central do Recife, comprar os mais recentes lançamentos e também para pegar a programação do que estava para ser lançado. Eu cheguei a participar, aos sábados, de um curso promovido pelo Clube Filatélico do Recife que ocorreu no Colégio Americano Batista, onde conheci a revista, a bonita revista Correio Filatélico. Tempos depois começou a chegar às bancas de revistas, em fascículos, uma coleção linda, que eu não pude comprar, chamada Selos do mundo inteiro.

Para ver a coleção ganhar volume eu recorria também a pedidos a pessoas; insistentemente eu pedia a um e a outro que procurasse ver suas correspondências para pegar os selos dos envelopes. Ganhei muitos assim, inclusive, uns de um Takeshi que conheci num restaurante que ficava ao lado da loja de aluguel de roupas masculinas onde eu trabalhei quando tinha 18 anos, na Rua do Riachuelo, no bairro da Boa Vista, também no centro da capital pernambucana; e outros que ganhei de um amigo chamado Saul, retratando o Papa João Paulo II. Nunca esqueci do dia em que, regressando da praia de Rio Doce em companhia do Saul, eu achei dinheiro dentro de uma carteira de cigarro vazia. Meu amigo não acreditou quando eu disse que usaria aquele dinheirinho para comprar selos; a sugestão dele, que eu não aceitei, era de que comprássemos alguma coisa para comer. Saudades do Saul, que há muito tempo eu não vejo.

Após anos de fascínio, de euforia e de busca para formar a coleção, ela adormeceu por um bom tempo num álbum no qual eu organizei os selos com todo o cuidado que os preceitos filatélicos recomendavam, qual seja, usando uma pinça para manuseá-los; isso mesmo, porque todo colecionador de selos que se preze deve possuir uma pinça e uma lupa. E eu tratava de fazer valer os ensinamentos que a mim foram ministrados. Era um zelo danado.

Certo dia, já adulto, eu, que andava mal de grana, resolvi procurar um filatelista que mantinha seu ponto comercial no Edifício Phoenix Pernambucana, na Rua Engenheiro Ubaldo Gomes de Matos, no Recife, ao qual eu fora algumas vezes quando a coleção estava nos seus inícios – certa feita eu enviei para ele uma carta, com dinheiro dentro, para que ele me respostasse com selos; foi o jeito que encontrei numa ocasião em que eu não podia ir à capital. Quando o filatelista avaliou os meus selos... Não, não, espere um pouco leitor: eu acabo de recordar que o tal filatelista já não se encontrava estabelecido naquele endereço e sim noutro, ainda no bairro de Santo Antônio; o nome da rua por ora eu não me lembro, mas sei que anotei isso nos meus apontamentos de ocasião.

Agora voltemos ao ponto onde eu parara: quando o filatelista avaliou os meus selos e por eles não se interessou, eu senti uma dessas frustrações desconcertantes que, se não tivermos forças para nos manter firmes e de pé, nos lançam ao chão. Além da frustração eu fui tomado por uma sensação de engano; eu saí daquele prédio convencido de que fora enganado e que me prendera a um autoengano durante muitos anos, porque ouvira, mais de uma vez, alguém me dizer que um dia aquilo iria valer muito.

Pouco tempo depois, num dia que eu intitulei, em minhas memórias, de o “Dia da grande fogueira”, dia esse em que toda sorte de dissabores e frustrações se juntou para me botar para baixo, eu reuni uma grande porção de objetos, papéis, livros e aquele álbum de selos e ateei fogo em tudo, formando uma grande, uma enorme fogueira num terreno ao lado da casa onde eu então morava. Enquanto as chamas tudo devoravam com uma fome insaciável, eu mirava aquelas coisas sumindo concretamente da minha vida ao mesmo tempo em que, intimamente, uma dor feroz me consumia. Não tinha mais volta, eu bem sabia. E tudo ali se acabou.

De quantas memórias é feita uma vida? Eu não sei. Quem há de saber? O que eu sei é que, passados alguns anos desde que aquelas chamas consumiram parte da minha história material, eu comecei a querer, digamos, reconstruir objetualmente um pedaço do meu passado que o fogo devorara. E consegui encontrar, em sebos, exemplares das mesmas edições de alguns dos livros que eu queimara – ainda falta encontrar outros. E essa tarefa de reposição da memória material de alguma forma preencheu um vazio que em mim era muito presente, digo melhor, se tornou muito presente à medida que eu fui me transformando em um entusiasta da preservação da memória na minha caminhada de formação como historiador, porque foi isso que verdadeiramente incutiu em mim o valor e a necessidade de salvaguarda das memórias pessoais, das memórias individuais e coletivas.

No começo deste mês, ao ver um álbum de selos no catálogo de um leilão virtual promovido pelo muito gente boa Otávio Marcelino no site www.leiloesbr.com.br, eu me vi tomado por um interesse de tentar arrematá-lo como forma de dar continuidade ao resgate material de parte de minha memória. No dia 7 de agosto, às 19h, eu comecei a acompanhar o leilão. Disputei o álbum com alguém que também estava interessado nele; e consegui arrematar o lote. Vibrei muito. E fiquei na expectativa de recebê-lo, o que ocorreu na última terça-feira. Quando abri a embalagem e comecei a folhear os muitos selos presentes no álbum, dentre os quais, exemplares de emissões que eu possuíra, eu senti como se aquele pedaço do meu passado estivesse de novo em minhas mãos e isso, de algum modo, me reconfortou.

Ainda ontem, à tardinha, eu encontrei no Sebo do Giva, na esquina das ruas do Riachuelo e do Hospício, no Recife, a 50ª edição do Catálogo de selos do Brasil (de 1843 a 1996), da Editora RHM; e tratei de comprá-lo. Isso foi como que um complemento àquele álbum, porque no catálogo estão estampados todos os selos nacionais que um dia eu possuí; e então eu me certifiquei, quando, já em casa, os pus lado a lado, que eu muito bem a mim me fizera ao trazer para o meu acervo substitutos de parte da minha memória material que um dia eu reduzi a cinzas, como se o passado pudesse ser de todo incinerado, destruído e apagado.




Nenhum comentário:

Postar um comentário