Por Sierra
Repetidas vezes, sempre que
eu me encontro naquele cenário de tumulto e desordem, eu me pergunto: “O que
será que as pessoas que cruzam o centro comercial de Abreu e Lima, em seus
veículos automotivos, pensam no que a cidade tem a oferecer além do caos
urbano?”. Faço-me tal questionamento e reflito, com pesar, com grande pesar, no
tipo daninho de urbanismo que sucessivas administrações municipais escolheram
para aquele lugar.
Sabe-se que, depois de
muitos anos de protelação, a feira livre que durante décadas ocupava a Praça
Antônio Vitalino, e que se constituía como, talvez, o principal e mais vibrante
acontecimento social da população local, foi transferida para o bairro de Timbó,
em 2012, ocupando uma área ampla e com espaço de sobra para estacionamento, é
bem verdade, mas inteiramente desprovida da aura de pertencimento à cidade que
aquela possuía durante o longo tempo em que a feira acontecia naquela praça.
É inquestionável que o
adensamento das atividades econômicas e o aumento significativo de circulação
de veículos no centro comercial causaram um enorme transtorno aos feirantes e
às pessoas que buscavam a feira, que era tida como uma das maiores de toda a
Região Metropolitana do Recife. Também é indiscutível que, ainda na década de
1990, a imponente feira livre que, pelo menos até uma década antes enchia a
Praça Antônio Vitalino e várias ruas adjacentes com um movimento muito grande
de pessoas, perdera espaço para comerciantes que passaram a querer se
estabelecer de modo fixo na área. Eu não tenho dúvidas de que foi essa busca
pela fixação que marcou o começo do declínio e do desarranjo da feira. E por
quê?
Entre os absurdos mais absurdos que atualmente podem ser vistos na Praça Antônio Vitalino estão estas tendas que pertencem a proprietários das lojas. Será que a Municipalidade não vê isso?!
Ora, histórica e
tradicionalmente as feiras livres nordestinas eram – e em alguns lugares,
felizmente, continuam sendo assim, como em Itabaiana (SE) e em São Luís (MA) –
marcadas pelo que eu chamo de um verdadeiro espetáculo: o monta e desmonta dos
bancos dos feirantes. Quando a feira acontecia dessa forma, a Praça Antônio
Vitalino ficava com seu amplo espaço liberado para outros usos; e com seu
entorno pulsante, comercialmente falando, porque, embora a feira livre
ocorresse uma vez por semana, havia – como ainda hoje há ali – armarinhos,
açougues, bares, lojas de tecidos, etc., e, principalmente, um mercado público
que, a exemplo do que representa em outras cidades que os possuem ligados a
feiras livres, era um estabelecimento complementar a ela, mantendo um comércio
de secos e molhados e servindo também como ponto de comes e bebes nos pequenos
bares e lanchonetes que outrora o contornava pelo lado de fora.
A ocupação desordenada é visível em parte da rodovia |
Pelo que eu apurei na época
em que se propunha a retirada da feira livre da Praça Antônio Vitalino, a
principal justificativa levantada pela Prefeitura Municipal era que o trânsito
ficava infernal aos sábados, dia de maior movimento da feira. Outra justificativa
era que o centro comercial como um todo, e não apenas os feirantes, precisava
de um amplo estacionamento. Ou seja, mais uma vez o fator crucial a direcionar
o urbanismo de Abreu e Lima foi a submissão ao tráfego de veículos. Por essa
época, a feira livre há muito deixara de ser o que fora pelo menos até os anos
80, tantos eram os feirantes que ocupavam de modo fixo, de segunda-feira a
segunda-feira, uma enorme porção da praça; e o mercado público, que viria a ser
posto abaixo, há tempos fora descaracterizado e tomado por puxadinhos que eram
eles mesmos outro retrato da falta de competência da Municipalidade para bem
gerir e administrar um dos espaços que eu considero ser vital para a cidade.
Considerando que, como eu
disse, a principal justificativa para a transferência da feira livre foi o
pesado tráfego de veículos na BR 101, que cruza o centro comercial da cidade de
ponta a ponta, o que dizer do caos que anda imperando ao longo da Avenida Duque
de Caxias, com comerciantes de frutas, legumes e verduras e de outros produtos
ocupando a beira da pista e até parte das calçadas, dificultando, inclusive, a
passagem de pedestres e tirando a visibilidade das lojas e dos supermercados
estabelecidos naquele logradouro que é a própria BR 101? O que dizer de
feirantes que se fixaram permanentemente em vários pontos da Praça Antônio
Vitalino? O que dizer dos infernais pontos de kombis e de mototáxis que se
estabeleceram na entrada da praça? E, finalmente, o que dizer do absurdo dos
absurdos que reinam ali que é o fato de comerciantes de lojas fazerem uma
espécie de prolongamento e de puxadinho colocando mercadorias à venda em tendas
armadas defronte aos seus estabelecimentos? Então quer dizer que a Prefeitura
Municipal passou anos e anos planejando a demolição do mercado público, a
transferência da feira livre e o soterramento de grande parte da memória
comercial de Abreu e Lima para deixar a Praça Antônio Vitalino, a icônica Praça
Antônio Vitalino tão ligada e entranhada na memória urbana abreulimense, entregue
à própria sorte? Pelo que se observa no centro comercial de Abreu e Lima, a
Municipalidade finge não vê ou desconhece o que seja ordenamento urbano e que
ela não se deu conta de que a tão propalada, defendida e planejada
requalificação da Praça Antônio Vitalino resultou nisso que nós estamos vendo
hoje.
Na entrada da Praça Antônio Vitalino foram estabelecidos pontos de kombis e de mototáxis |
Na última terça-feira eu me
encontrava numa barbearia que fica a poucos metros da Praça Antônio Vitalino,
quando o rapaz que estava tendo os cabelos cortados comentou que soube que a
Municipalidade iria, ainda neste mês – ele disse exatamente que seria no dia 12
-, remover todos os comerciantes que estão ocupando indevidamente o espaço
público na Avenida Duque de Caxias e na própria praça. Já um outro, que estava
sentado ao meu lado, foi, a meu ver, certeiro no seu comentário: “Enquanto
aquele pessoal tiver vendendo ali, ninguém vai pr’aquela feira de Timbó, não. Quem
é que vai deixar de vir pra cá, perto de banco, de supermercado, de loja, de
tudo, pra ir pr’aquele fim de mundo?!”. Poucas vezes eu vi uma avaliação do
caso ser expressa de maneira tão clara e precisa.
Costumo dizer que o grande
mal presente em cidades como Abreu e Lima, que têm seus núcleos centrais
cortados por rodovias, é a manutenção de um urbanismo que, submisso completa e
inteiramente ao tráfego de veículos, não se dão conta de que, à maneira de uma
câncer que corrói pouco a pouco partes do corpo humano, ele vai deformando
quando não destruindo o corpo citadino, mudando, muitas vezes para pior, as
feições das cidades e apagando as suas memórias urbanas. O que Abreu e Lima
perdeu de espaços de sua memória urbana com as obras de duplicação da BR 101,
até onde eu sei, não foi sequer documentado em fotografias. E, destaque-se
isso, essa ideia de progresso e esse urbanismo submisso ao tráfego de veículos
não conferiram à cidade uma forma nem de longe exemplar de urbanização. Abreu e
Lima é uma cidade que foi dilacerada por obras viárias; e custa-me crer que os
seus administradores não atentaram para isso ao longo dos anos.
Nesta imagem podemos ver que algumas pessoas, devido a ocupação das calçadas, se arriscam caminhando pelas beiradas da rodovia |
Guardo por inteira em mim a feição que tinha a antiga feira livre que uma vez por semana tomava toda a Praça Antônio Vitalino e, como num passe de mágica, sumia dali para só retornar sete dias depois. Sim, é verdade que os supermercados tiraram das feiras livres um bom número de frequentadores, mas elas possuem um público fiel, como eu tenho visto por este Nordeste afora.
Estou entre os que defendem
que a feira livre de Abreu e Lima retorne para a Praça Antônio Vitalino, porque
isso seria como que o resgate de um pedaço da história social e econômica da
cidade que sucessivas administrações municipais trataram de sepultar. Parte substancial
da memória afetiva que eu conservo da minha cidade natal, a feira livre da
Praça Antônio Vitalino é um tesouro socioeconômico que merece ser resgatado e
devidamente cuidado.
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