4 de setembro de 2021

Atividades comerciais versus caos urbano: o caso de Abreu e Lima

 Por Sierra

 

Fotos: Arquivo do Autor
A propagandeada requalificação da Praça Antônio Vitalino foi resumida, na verdade, somente à disponibilização do espaço, que abrigava a tradicional feira livre de Abreu e Lima, uma das maiores da Região Metropolitana, num amplo estacionamento. Tem gente que não compreende que uma cidade ordenada é benéfica para toda a população




Repetidas vezes, sempre que eu me encontro naquele cenário de tumulto e desordem, eu me pergunto: “O que será que as pessoas que cruzam o centro comercial de Abreu e Lima, em seus veículos automotivos, pensam no que a cidade tem a oferecer além do caos urbano?”. Faço-me tal questionamento e reflito, com pesar, com grande pesar, no tipo daninho de urbanismo que sucessivas administrações municipais escolheram para aquele lugar.

Sabe-se que, depois de muitos anos de protelação, a feira livre que durante décadas ocupava a Praça Antônio Vitalino, e que se constituía como, talvez, o principal e mais vibrante acontecimento social da população local, foi transferida para o bairro de Timbó, em 2012, ocupando uma área ampla e com espaço de sobra para estacionamento, é bem verdade, mas inteiramente desprovida da aura de pertencimento à cidade que aquela possuía durante o longo tempo em que a feira acontecia naquela praça.


Esta imagem, para mim, é o resumo de tudo o que de mais daninho a ocupação desordenada da área comercial de Abreu e Lima resultou: feirantes ocupando a beira da pista e a área destinada aos pedestres, causando transtorno aos comerciantes ali estabelecidos, que têm as entradas de seus estabelecimentos obstruídos; e, além disso, vemos que, a despeito do estacionamento em que foi transformada a Praça Antônio Vitalino, motoristas se aproveitam da falta de fiscalização para estacionar no indevidamente, aumentando ainda mais o caos no local



É inquestionável que o adensamento das atividades econômicas e o aumento significativo de circulação de veículos no centro comercial causaram um enorme transtorno aos feirantes e às pessoas que buscavam a feira, que era tida como uma das maiores de toda a Região Metropolitana do Recife. Também é indiscutível que, ainda na década de 1990, a imponente feira livre que, pelo menos até uma década antes enchia a Praça Antônio Vitalino e várias ruas adjacentes com um movimento muito grande de pessoas, perdera espaço para comerciantes que passaram a querer se estabelecer de modo fixo na área. Eu não tenho dúvidas de que foi essa busca pela fixação que marcou o começo do declínio e do desarranjo da feira. E por quê?


Entre os absurdos mais absurdos que atualmente podem ser vistos na Praça Antônio Vitalino estão estas tendas que pertencem a proprietários das lojas. Será que a Municipalidade não vê isso?! 


Ora, histórica e tradicionalmente as feiras livres nordestinas eram – e em alguns lugares, felizmente, continuam sendo assim, como em Itabaiana (SE) e em São Luís (MA) – marcadas pelo que eu chamo de um verdadeiro espetáculo: o monta e desmonta dos bancos dos feirantes. Quando a feira acontecia dessa forma, a Praça Antônio Vitalino ficava com seu amplo espaço liberado para outros usos; e com seu entorno pulsante, comercialmente falando, porque, embora a feira livre ocorresse uma vez por semana, havia – como ainda hoje há ali – armarinhos, açougues, bares, lojas de tecidos, etc., e, principalmente, um mercado público que, a exemplo do que representa em outras cidades que os possuem ligados a feiras livres, era um estabelecimento complementar a ela, mantendo um comércio de secos e molhados e servindo também como ponto de comes e bebes nos pequenos bares e lanchonetes que outrora o contornava pelo lado de fora.


A ocupação desordenada é visível em parte da rodovia


Pelo que eu apurei na época em que se propunha a retirada da feira livre da Praça Antônio Vitalino, a principal justificativa levantada pela Prefeitura Municipal era que o trânsito ficava infernal aos sábados, dia de maior movimento da feira. Outra justificativa era que o centro comercial como um todo, e não apenas os feirantes, precisava de um amplo estacionamento. Ou seja, mais uma vez o fator crucial a direcionar o urbanismo de Abreu e Lima foi a submissão ao tráfego de veículos. Por essa época, a feira livre há muito deixara de ser o que fora pelo menos até os anos 80, tantos eram os feirantes que ocupavam de modo fixo, de segunda-feira a segunda-feira, uma enorme porção da praça; e o mercado público, que viria a ser posto abaixo, há tempos fora descaracterizado e tomado por puxadinhos que eram eles mesmos outro retrato da falta de competência da Municipalidade para bem gerir e administrar um dos espaços que eu considero ser vital para a cidade.





Considerando que, como eu disse, a principal justificativa para a transferência da feira livre foi o pesado tráfego de veículos na BR 101, que cruza o centro comercial da cidade de ponta a ponta, o que dizer do caos que anda imperando ao longo da Avenida Duque de Caxias, com comerciantes de frutas, legumes e verduras e de outros produtos ocupando a beira da pista e até parte das calçadas, dificultando, inclusive, a passagem de pedestres e tirando a visibilidade das lojas e dos supermercados estabelecidos naquele logradouro que é a própria BR 101? O que dizer de feirantes que se fixaram permanentemente em vários pontos da Praça Antônio Vitalino? O que dizer dos infernais pontos de kombis e de mototáxis que se estabeleceram na entrada da praça? E, finalmente, o que dizer do absurdo dos absurdos que reinam ali que é o fato de comerciantes de lojas fazerem uma espécie de prolongamento e de puxadinho colocando mercadorias à venda em tendas armadas defronte aos seus estabelecimentos? Então quer dizer que a Prefeitura Municipal passou anos e anos planejando a demolição do mercado público, a transferência da feira livre e o soterramento de grande parte da memória comercial de Abreu e Lima para deixar a Praça Antônio Vitalino, a icônica Praça Antônio Vitalino tão ligada e entranhada na memória urbana abreulimense, entregue à própria sorte? Pelo que se observa no centro comercial de Abreu e Lima, a Municipalidade finge não vê ou desconhece o que seja ordenamento urbano e que ela não se deu conta de que a tão propalada, defendida e planejada requalificação da Praça Antônio Vitalino resultou nisso que nós estamos vendo hoje.


Na entrada da Praça Antônio Vitalino foram estabelecidos pontos de kombis e de mototáxis



Na última terça-feira eu me encontrava numa barbearia que fica a poucos metros da Praça Antônio Vitalino, quando o rapaz que estava tendo os cabelos cortados comentou que soube que a Municipalidade iria, ainda neste mês – ele disse exatamente que seria no dia 12 -, remover todos os comerciantes que estão ocupando indevidamente o espaço público na Avenida Duque de Caxias e na própria praça. Já um outro, que estava sentado ao meu lado, foi, a meu ver, certeiro no seu comentário: “Enquanto aquele pessoal tiver vendendo ali, ninguém vai pr’aquela feira de Timbó, não. Quem é que vai deixar de vir pra cá, perto de banco, de supermercado, de loja, de tudo, pra ir pr’aquele fim de mundo?!”. Poucas vezes eu vi uma avaliação do caso ser expressa de maneira tão clara e precisa.

Costumo dizer que o grande mal presente em cidades como Abreu e Lima, que têm seus núcleos centrais cortados por rodovias, é a manutenção de um urbanismo que, submisso completa e inteiramente ao tráfego de veículos, não se dão conta de que, à maneira de uma câncer que corrói pouco a pouco partes do corpo humano, ele vai deformando quando não destruindo o corpo citadino, mudando, muitas vezes para pior, as feições das cidades e apagando as suas memórias urbanas. O que Abreu e Lima perdeu de espaços de sua memória urbana com as obras de duplicação da BR 101, até onde eu sei, não foi sequer documentado em fotografias. E, destaque-se isso, essa ideia de progresso e esse urbanismo submisso ao tráfego de veículos não conferiram à cidade uma forma nem de longe exemplar de urbanização. Abreu e Lima é uma cidade que foi dilacerada por obras viárias; e custa-me crer que os seus administradores não atentaram para isso ao longo dos anos.


Nesta imagem podemos ver que algumas pessoas, devido a ocupação das calçadas, se arriscam caminhando pelas beiradas da rodovia

Guardo por inteira em mim a feição que tinha a antiga feira livre que uma vez por semana tomava toda a Praça Antônio Vitalino e, como num passe de mágica, sumia dali para só retornar sete dias depois. Sim, é verdade que os supermercados tiraram das feiras livres um bom número de frequentadores, mas elas possuem um público fiel, como eu tenho visto por este Nordeste afora.



Estou entre os que defendem que a feira livre de Abreu e Lima retorne para a Praça Antônio Vitalino, porque isso seria como que o resgate de um pedaço da história social e econômica da cidade que sucessivas administrações municipais trataram de sepultar. Parte substancial da memória afetiva que eu conservo da minha cidade natal, a feira livre da Praça Antônio Vitalino é um tesouro socioeconômico que merece ser resgatado e devidamente cuidado.

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