21 de agosto de 2021

Cada um segue defendendo a ditadura que lhe convém

 Por Sierra


Foto: Divulgação
Imagem divulgada pelo Partido da Causa Operária (PCO) logo após os trágicos acontecimentos havidos no Afeganistão.
Tem gente que olha e não vê que, aqui e ali, há inúmeros “talibãs” planejando ter pleno domínio de nossas vidas. Neste mundo sem conserto cada um segue defendo a ditadura que lhe convém


As imagens lembravam as do chamado cinema-catástrofe: pessoas desesperadas tentando de alguma forma escapar dos homens barbudos do grupo extremista talibã que, após anos fora de cena, devido a ocupação norte-americana que foi levada a cabo depois dos ataques terroristas ocorridos há vinte anos nos Estados Unidos - ocupação essa motivada pelo fato de o líder dos ataques, Osama bin Laden, à frente do grupo Al-Qaeda, ter se escondido no país -, se restabeleceram no Afeganistão em posição de comando tão logo as tropas de ocupação começaram a sair de lá deixando a população afegã nas mãos de quem ela mais temia.

O desespero estampado nas faces de homens e mulheres era o retrato de um medo generalizado, a certeza de que o pior estava por vir e que o futuro tornara-se algo ainda mais desafiador. As cenas mais impressionantes e inquietantes mostravam multidões se agarrando a aviões querendo de todas as formas sair dali. E o que dizer da sequência de imagens nas quais podemos ver um indivíduo caindo de uma aeronave em pleno voo? Nossa, que coisa impactante. Que horror! Que horror!

Aos fundamentos da democracia os talibãs oferecem uma ditadura. Aos ideais do processo civilizatório oferecem a barbárie. À luz do saber e do conhecimento oferecem o obscurantismo. À preservação da memória oferecem a destruição do patrimônio histórico, artístico e cultural – não nos esqueçamos de que eles destruíram os Budas de Bamiyam e artefatos do Museu Nacional de Cabul. À laicidade do Estado oferecem o fundamentalismo religioso. E aos anseios femininos de conquista de educação, de respeito e de espaços na sociedade eles oferecem a coisificação e a submissão total das mulheres.

Num mundo onde vicejam ditaduras e onde discursos de intolerância, de perseguição e de ódio compõem plataformas de grupos políticos, a situação do povo afegão ou pelo menos de parte dele, que não reza pela cartilha dos talibãs, é algo até certo ponto sem importância para muita gente; e que não nos diz respeito; e que devemos deixar para lá, porque, de acordo com essa linha de pensamento, nós já temos problemas demais no nosso quintal.

Parto sempre do pressuposto de que, quem defende ditaduras, tenham elas os vieses que tiverem – direitistas, esquerdistas, teocráticas, etc. – acredita plenamente que em tais regimes gozará de boa situação; e o que é pior ainda, aceita e crê que a liberdade é algo muitíssimo abstrato e ao mesmo tempo um bem negociável como outro qualquer. Note-se que sempre ou quase sempre quem defende o estabelecimento de um regime ditatorial diz que o faz para derrubar a ditadura vigente. É vendendo essa ideia algo aterradora e absurda que em diversos países – no Brasil, inclusive – as sanhas autoritárias, as vontades ditatoriais e as vozes inimigas da democracia conseguem arregimentar tantos seguidores.

A barbarização, o, digamos, talibanismo que germina e cresce pelo mundo afora, muitas vezes tomando crenças religiosas como elemento basilar, trata de ir minando as estruturas democráticas evocando a defesa da pátria e da família enquanto vai promovendo a xenofobia, a perseguição a etnias, a minorias, a discursos discordantes e até a religiosidades que eles demonizam e não reconhecem como tais. Como nos ensinou o bardo William Shakespeare, “o diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém”.

Atingimos um grau tal de adesão ao absurdo e à estupidez que muitos de nós acreditamos piamente que existem ditaduras defensáveis, ditaduras que devemos apoiar e ditaduras boas. E por quê? Caso eu seja de esquerda eu tenho de apoiar as ditaduras da Venezuela e de Cuba porque elas enfrentam o poderio dos Estados Unidos. Se eu for um partidário da direita, tenho de defender o que faz Aleksandr Lukashenko em Belarus, que não admite oposição política e aplica pena de morte em julgamentos sem transparência, e engrossar o coro de um Jair Bolsonaro que quer porque quer implantar uma ditadura militar no Brasil exaltando a misoginia e a homofobia enquanto, simultaneamente, recorre a um patriotismo de araque e a um cristianismo cruel e muito dado ao morticínio para arregimentar seguidores visando combater um suposto regime comunista que está à nossa espreita. O medo e a intimidação são incontestes elementos de persuasão aos quais recorrem os ditadores de plantão.

Animais políticos que somos, ao que parece, carregamos dentro de nós uma propensão natural para o autoritarismo. Será que é um DNA autoritário e ditador que nos incita a querer de todas as formas fazer a nossa própria revolução dos bichos?

Tem gente que olha e não vê que, aqui e ali, há inúmeros “talibãs” planejando ter pleno domínio de nossas vidas. Neste mundo sem conserto cada um segue defendo a ditadura que lhe convém.

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