Por Sierra
As imagens lembravam as do
chamado cinema-catástrofe: pessoas desesperadas tentando de alguma forma
escapar dos homens barbudos do grupo extremista talibã que, após anos fora de
cena, devido a ocupação norte-americana que foi levada a cabo depois dos
ataques terroristas ocorridos há vinte anos nos Estados Unidos - ocupação essa motivada pelo fato de o líder dos ataques, Osama bin Laden, à frente do grupo Al-Qaeda, ter se escondido no país -, se restabeleceram no Afeganistão em posição de comando tão logo as tropas de ocupação começaram a sair de lá
deixando a população afegã nas mãos de quem ela mais temia.
O desespero estampado nas
faces de homens e mulheres era o retrato de um medo generalizado, a certeza de
que o pior estava por vir e que o futuro tornara-se algo ainda mais desafiador.
As cenas mais impressionantes e inquietantes mostravam multidões se agarrando a
aviões querendo de todas as formas sair dali. E o que dizer da sequência de
imagens nas quais podemos ver um indivíduo caindo de uma aeronave em pleno voo?
Nossa, que coisa impactante. Que horror! Que horror!
Aos fundamentos da
democracia os talibãs oferecem uma ditadura. Aos ideais do processo
civilizatório oferecem a barbárie. À luz do saber e do conhecimento oferecem o
obscurantismo. À preservação da memória oferecem a destruição do patrimônio histórico,
artístico e cultural – não nos esqueçamos de que eles destruíram os Budas de
Bamiyam e artefatos do Museu Nacional de Cabul. À laicidade do Estado oferecem
o fundamentalismo religioso. E aos anseios femininos de conquista de educação,
de respeito e de espaços na sociedade eles oferecem a coisificação e a
submissão total das mulheres.
Num mundo onde vicejam ditaduras
e onde discursos de intolerância, de perseguição e de ódio compõem plataformas
de grupos políticos, a situação do povo afegão ou pelo menos de parte dele, que
não reza pela cartilha dos talibãs, é algo até certo ponto sem importância para
muita gente; e que não nos diz respeito; e que devemos deixar para lá, porque, de
acordo com essa linha de pensamento, nós já temos problemas demais no nosso
quintal.
Parto sempre do pressuposto
de que, quem defende ditaduras, tenham elas os vieses que tiverem – direitistas,
esquerdistas, teocráticas, etc. – acredita plenamente que em tais regimes
gozará de boa situação; e o que é pior ainda, aceita e crê que a liberdade é
algo muitíssimo abstrato e ao mesmo tempo um bem negociável como outro
qualquer. Note-se que sempre ou quase sempre quem defende o estabelecimento de
um regime ditatorial diz que o faz para derrubar a ditadura vigente. É vendendo
essa ideia algo aterradora e absurda que em diversos países – no Brasil,
inclusive – as sanhas autoritárias, as vontades ditatoriais e as vozes inimigas
da democracia conseguem arregimentar tantos seguidores.
A barbarização, o, digamos,
talibanismo que germina e cresce pelo mundo afora, muitas vezes tomando crenças
religiosas como elemento basilar, trata de ir minando as estruturas
democráticas evocando a defesa da pátria e da família enquanto vai promovendo a
xenofobia, a perseguição a etnias, a minorias, a discursos discordantes e até a
religiosidades que eles demonizam e não reconhecem como tais. Como nos ensinou
o bardo William Shakespeare, “o diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe
convém”.
Atingimos um grau tal de
adesão ao absurdo e à estupidez que muitos de nós acreditamos piamente que
existem ditaduras defensáveis, ditaduras que devemos apoiar e ditaduras boas. E
por quê? Caso eu seja de esquerda eu tenho de apoiar as ditaduras da Venezuela
e de Cuba porque elas enfrentam o poderio dos Estados Unidos. Se eu for um
partidário da direita, tenho de defender o que faz Aleksandr Lukashenko em
Belarus, que não admite oposição política e aplica pena de morte em julgamentos
sem transparência, e engrossar o coro de um Jair Bolsonaro que quer porque quer
implantar uma ditadura militar no Brasil exaltando a misoginia e a homofobia
enquanto, simultaneamente, recorre a um patriotismo de araque e a um
cristianismo cruel e muito dado ao morticínio para arregimentar seguidores
visando combater um suposto regime comunista que está à nossa espreita. O medo e
a intimidação são incontestes elementos de persuasão aos quais recorrem os
ditadores de plantão.
Animais políticos que somos,
ao que parece, carregamos dentro de nós uma propensão natural para o
autoritarismo. Será que é um DNA autoritário e ditador que nos incita a querer
de todas as formas fazer a nossa própria revolução dos bichos?
Tem gente que olha e não vê que, aqui e ali, há inúmeros “talibãs” planejando ter pleno domínio de nossas vidas. Neste mundo sem conserto cada um segue defendo a ditadura que lhe convém.
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