14 de agosto de 2021

Crônicas de ônibus (VIII)

Por Sierra


Foto: Arquivo do Autor
Viagem de ônibus em tempos de pandemia: desconectados da realidade das medidas sanitárias que diariamente são recomendadas pelos governantes, passageiros de ônibus das Região Metropolitana do Recife continuaram enfrentando um cotidiano de coletivos lotados em horários de pico

 

A pandemia do coronavírus pôs o mundo em polvorosa. É inegável que tudo ou quase tudo do nosso cotidiano foi transformado, de uma hora para outra, por imposição das chamadas medidas sanitárias destinadas a conter a propagação da doença e os seus efeitos danosos.

Quem ficou acompanhando o noticiário tomou conhecimento de que em várias cidades brasileiras houve diminuição da frota e mesmo a não circulação de ônibus, em determinados dias e horários, como meio de fazer com que as pessoas só os buscassem em caso de necessidade, como ir trabalhar, comprar comida e remédios e por aí vai.

Por mais que as autoridades fizessem inúmeras recomendações para que não nos aglomerássemos a fim de mantermos a distância mínima de 1,5 m entre um indivíduo e outro, como cumprir isso dentro de ônibus em linhas muito concorridas? Muito embora o contingente de desempregados estivesse nas alturas antes mesmo da crise pandêmica e muita gente tenha deixado de pegar ônibus porque escolas, igrejas, comércio dito não essencial e uma infinidade de estabelecimentos tiveram de ser temporariamente fechados, ainda assim, várias foram as linhas que continuaram circulando lotadas enquanto o coronavírus abatia vidas a rodo.

Foram várias as vezes em que eu, indo e voltando do trabalho, tendo de embarcar em quatro conduções, como diz aquela canção, “duas pra ir, duas pra voltar”, tive de amargar o imprensado em coletivos lotados nos quais não se podia levantar um pé para não correr o risco de perder o espaço onde pisar. Quem pega os ônibus das linhas Ilha de Itamaracá/Igaraçu e Igaraçu/Macaxeira nos horários de pico sabe muito bem do que eu estou falando. A realidade dos coletivos lotados com gente espremida bate de frente com as recomendações sanitárias e as autoridades pouco ou nada fazem para tentar contornar essa situação.

Como eu ia dizendo a pandemia provocou transformações em muitos aspectos do nosso cotidiano. Ainda que a taxa de desemprego tenha continuado em escala ascendente, o que eu verifiquei nas linhas em que costumo embarcar, foi que houve uma diminuição do número de vendedores ambulantes no período; e, mesmo no terminal de Igaraçu, a quantidade deles também diminuiu. Das duas uma: ou a massa de ambulantes está sem grana para comprar mercadorias; ou, dado o número de pessoas sem emprego e os preços dos produtos nas alturas, eles intuíram que não é um bom negócio enfrentar o vuco-vuco dos ônibus para oferecer coisas a uma gente que está tendo dificuldade até para comprar arroz e feijão. Pobres e assalariados podem não compreender bem o economês e os mecanismos de elevação dos índices inflacionários, mas sabem como ninguém o que é carestia, porque logo percebe e vê que o dinheiro que antes dava para comprar três quilos de arroz, agora só dá para trazer um quilo do supermercado. Economês para pobre e assalariado é privação, é falta do necessário à vida.

Se de algumas linhas a pandemia fez diminuir e/ou desaparecer os vendedores ambulantes, por outro lado ela fez surgir um tipo novo: o limpador de apoiadores de mão. Normalmente eles atuam da seguinte maneira: entram no coletivo e, munidos de um pano e de um borrifador, vão passando álcool nos lugares nos quais habitualmente os passageiros seguram durante as viagens. Alguns desses, digamos, limpadores ambulantes, às vezes, perguntam se alguém quer receber uma borrifada nas mãos para higienizá-las; e todos eles, ao final da rápida limpeza, fazem um discurso dizendo que estão agindo com o propósito de utilidade pública – já ouvi um deles dizer que a tarefa deveria caber ao governo: “Mas o governo não quer saber da gente, né, pessoal?!”, ele completou.

Como sempre ocorre ou quase sempre ocorre quando da atuação dos vendedores, há quem ignore completamente os limpadores e outros que os apóiam dando-lhes algumas moedinhas, ainda que, como certa vez me disse um rapaz que estava sentado ao meu lado, uns e outros acreditem que o borrifador contenha mesmo é “álgua”, uma mistura de álcool com água. Bem, considerando que há quem nem acredite que o coronavírus seja isso tudo que andam dizendo por aí, duvidar da “álgua” é coisinha de nada.

De repente o ônibus dá um solavanco e alguém de pronto afirma em voz alta: “Tás pensando que tás carregando tua mãe é, motorista?!”. E a viagem segue. Como diz o adágio dos buseiros – buseiro vem de bus, tá? – “nesta vida tudo é passageiro, menos o cobrador e o motorista”. Sossego? Que sossego? “Ei, motorista, vai descer!”. O motorista rebate: “Você não deu sinal”. E o passageiro: “Eu puxei sim [a cordinha que aciona a campainha]. Tás surdo é?”. E a viagem segue com o coronavírus e tudo o mais que couber dentro do ônibus.

 

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