Por Sierra
Em novembro de 2005, falando
para um pequeno grupo de estudantes em Brasília, entre os quais eu me incluía,
Ana Maria Araújo Freire, segunda esposa do educador-mor do Brasil, Paulo
Freire, disse que lamentava que a obra Pedagogia
da autonomia, uma das várias escritas pelo seu marido, não figurasse nas
listas dos mais vendidos neste país que são divulgadas semanalmente por alguns
veículos da imprensa, apesar de vender muito. Ouvindo-a dizer isso eu me
perguntei: “Será que essa omissão em tais listas é proposital e se trata de um
ato de proscrição?”.
Numa dessas tristes e
lamentáveis coincidências que por vezes marcam datas festivas, no ano em que
comemoramos o centenário do nascimento de um dos maiores orgulhos de minha terra,
que é Paulo Freire, estamos imersos num desgoverno de viés antidemocrático que,
apesar de não ter até agora revelado algo de bom e/ou relevante no Ministério da
Educação, um ministério pelo qual, até o presente momento, já passaram três
nulidades de chefes, cada um pior do que o outro, não perca tempo em fazer de
Freire uma espécie de Judas ao qual se deve malhar e malhar e malhar. E por
quê? Porque, segundo os asseclas do bolsonarianismo,
Paulo Freire era um comunista de carteirinha; e, sendo assim, a obra que ele
deixou, reconhecida em grande parte do mundo letrado e entendedor do tema
educação, não vale nada e deve figurar numa espécie de index librorum prohibitorum.
Certa feita o poeta e
escritor Cassiano Nunes escreveu que não gostava “da crítica apologética, essa
crítica que só tem olhos para os aspectos ‘nobres’ de uma personalidade ou de
uma obra” (Cassiano Nunes [org.]. Monteiro
Lobato vivo. Rio de Janeiro: MPM Propaganda: Record, 1986, p. 13).
Compartilho inteiramente desse modo de enxergar o universo intelectual. Dito
isso, e considerando os fundamentos do Movimento de Cultura Popular que começou
a germinar em maio de 1960, no Recife, não há como não negar, a meu ver, que o
viés do movimento era de caráter comunista/socialista. Para mim é inegável que
o que o governo de Miguel Arraes almejava era conseguir disseminar pelo país,
tomando como epicentro a capital pernambucana, um governo nacional baseado nas
cartilhas marxistas. De modo que a atuação de Paulo Freire e o estabelecimento
do seu método de alfabetização por mais relevante e eficiente que se revelasse,
não poderia deixar de ser visto como produto de um intelectual que, a despeito
do “aspecto nobre” de sua, digamos, campanha de alfabetização do povo numa
nação na qual viviam 15,9 milhões de jovens e adultos analfabetos, continuava
por assim dizer acreditando e apostando numa ideia de sociedade baseada na
ideologia comunista/socialista – ou marxista cultural, se assim o queiram -,
parecendo até que ele não sabia o que regimes dessa natureza infligiram a
milhões de indivíduos nas repúblicas soviéticas e na China de Mao Tsé-tung.
Sim, eu concordo plenamente
que educar é um ato político; e que educar para o alcance do esclarecimento por
parte do indivíduo pode também ter um direcionamento de entendimento e/ou
compreensão de uma dada realidade na qual se esteja inserido. Paulo Freire
visava um processo de alfabetização num cenário no qual o analfabeto não tinha
status de cidadão comum; e não podia votar nas eleições. Contudo, essa ação
alfabetizadora, por mais que fosse apresentada como uma proposta de libertação
das “massas oprimidas pelo sistema” através do alcance das competências de ler
e escrever, carregava consigo outro propósito. Era como se a proposta de
alfabetização não tivesse de fato um cunho libertário/libertador, porque, se,
por um lado, pretendia que os alfabetizados alcançassem autonomia para ler não
somente o que era escrito, mas também para “ler o mundo” e, assim, compreender
os mecanismos geradores de desigualdades sociais que vigiam no regime
capitalista, no demonizado regime capitalista, por outro lado, como que fazia
uma doutrinação desses “libertos” para que eles engrossassem as fileiras de uma
pretendida “revolução do proletariado/campesinato”.
Concordo integralmente com
Carlos Rodrigues Brandão, um dos discípulos de Paulo Freire, quando ele diz que
toda educação tem, em si, uma intenção política. Num pequeno livro que publicou
sobre o método de alfabetização do seu mestre ele destacou que “A educação que
Paulo Freire vislumbra não é apenas politicamente utilitária. Ela não objetiva
somente criar novos quadros para um novo tipo de sociedade” (Carlos Rodrigues
Brandão. O que é método Paulo Freire.
São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 87). Por que não se diz qual é o fundamento
político-ideológico desse “novo tipo de sociedade”? Não se trata aqui de
reposicionar Paulo Freire e a sua obra dentro de um esquema de um revisionismo
histórico, como os discursos apologéticos escritos a seu respeito costumam
rebater as explicações e/ou interpretações do seu legado; trata-se, isso sim,
pelo menos de minha parte, olhar para as bases desse legado ligando-o ao
contexto em que o processo foi desenvolvido; e eu reconheço que o critério do
revisionismo histórico também é válido, porque o passado é imutável, mas as
interpretações a seu respeito não.
Em que pese o seu fundamento
doutrinador, digamos assim, o Método Paulo Freire de Alfabetização de Adultos
foi por si mesmo uma revolução no panorama educacional brasileiro. E uma
revolução tão significativa que avançou para além das fronteiras do Brasil, pôs
Paulo Freire na galeria dos maiores educadores do mundo e continua de alguma
maneira em voga até os dias de hoje. Com tal método, como se dizia, era
possível alfabetizar um grande número de indivíduos em um mês e meio. Era
verdadeiramente, como eu disse, uma revolução por si só. E isso é um feito
admirável que nenhuma crítica e/ou ataque a Paulo Freire jamais conseguirá demolir.
O que a dita direita faz com Paulo Freire ao atacar a sua obra sem reconhecer
nela o valor que ela possui, porque ela foi elaborada e/ou inspirada em ideais
do marxismo cultural, a igualmente irascível esquerda faz com outro luminar
pernambucano, que é Gilberto Freyre, repetidamente atacado por ter supostamente
dito que no Brasil sempre esteve em vigência uma “democracia racial”.
Fora do espectro político-ideológico,
admiro em Paulo Freire e na obra que ele deixou o que eu considero serem as suas
partes essenciais, que é o método de alfabetização por ele criado, bem como o
seu entendimento do papel da educação como elemento fundamental que vise à
transformação do indivíduo e, por extensão, de toda uma sociedade. Num livro
que eu avalio como fundamental para que se compreenda a dimensão e o alcance do
pensamento paulofreireano, ele destacou que a educação das massas se constitui
algo absolutamente necessário: uma “Educação que, desvestida da roupagem
alienada e alienante, seja uma força de mudança e de libertação” (Paulo Freire.
Educação como prática da liberdade.
28ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, p. 44). Isso para mim soa como uma
verdadeira profissão de fé. E nós não podemos nos esquecer de que, nestes dias
que correm, o Brasil ainda abriga mais de 11 milhões de analfabetos.
Valendo-me de alguns versos
do poema “Canção para os fonemas da alegria”, que Thiago de Mello dedicou ao
ilustre educador, eu “Peço licença para soletrar,/no alfabeto do sol
pernambucano/a palavra ti-jo-lo, por exemplo”, porque tijolo é construção (Thiago
de Mello. Faz escuro mas eu canto. 5ª
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 29).
Há cem anos nascia Paulo
Freire num Recife já pontuado por mocambos e outras misérias. O sonho de uma
sociedade comunista/socialista que ele almejou não foi alcançado – ainda bem -,
mas o seu legado se tornou perene. Através do seu método de alfabetização, com
suas “palavras geradoras”, Paulo Freire ensinou uma multidão a decifrar e a
interpretar o mundo ao seu redor e, assim, a alcançar de algum modo sua autonomia
vencendo a condição de oprimido.
Muitos, muitos vivas para
Paulo Freire.
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