19 de setembro de 2021

V-i-vi, v-a-va: viva Paulo Freire!

 Por Sierra


Foto: Nova Escola/Reprodução
 Valendo-me de alguns versos do poema “Canção para os fonemas da alegria”, que Thiago de Mello dedicou ao ilustre educador, eu “Peço licença para soletrar,/no alfabeto do sol pernambucano/a palavra ti-jo-lo, por exemplo”, porque tijolo é construção 


 

Em novembro de 2005, falando para um pequeno grupo de estudantes em Brasília, entre os quais eu me incluía, Ana Maria Araújo Freire, segunda esposa do educador-mor do Brasil, Paulo Freire, disse que lamentava que a obra Pedagogia da autonomia, uma das várias escritas pelo seu marido, não figurasse nas listas dos mais vendidos neste país que são divulgadas semanalmente por alguns veículos da imprensa, apesar de vender muito. Ouvindo-a dizer isso eu me perguntei: “Será que essa omissão em tais listas é proposital e se trata de um ato de proscrição?”.

Numa dessas tristes e lamentáveis coincidências que por vezes marcam datas festivas, no ano em que comemoramos o centenário do nascimento de um dos maiores orgulhos de minha terra, que é Paulo Freire, estamos imersos num desgoverno de viés antidemocrático que, apesar de não ter até agora revelado algo de bom e/ou relevante no Ministério da Educação, um ministério pelo qual, até o presente momento, já passaram três nulidades de chefes, cada um pior do que o outro, não perca tempo em fazer de Freire uma espécie de Judas ao qual se deve malhar e malhar e malhar. E por quê? Porque, segundo os asseclas do bolsonarianismo, Paulo Freire era um comunista de carteirinha; e, sendo assim, a obra que ele deixou, reconhecida em grande parte do mundo letrado e entendedor do tema educação, não vale nada e deve figurar numa espécie de index librorum prohibitorum.

Certa feita o poeta e escritor Cassiano Nunes escreveu que não gostava “da crítica apologética, essa crítica que só tem olhos para os aspectos ‘nobres’ de uma personalidade ou de uma obra” (Cassiano Nunes [org.]. Monteiro Lobato vivo. Rio de Janeiro: MPM Propaganda: Record, 1986, p. 13). Compartilho inteiramente desse modo de enxergar o universo intelectual. Dito isso, e considerando os fundamentos do Movimento de Cultura Popular que começou a germinar em maio de 1960, no Recife, não há como não negar, a meu ver, que o viés do movimento era de caráter comunista/socialista. Para mim é inegável que o que o governo de Miguel Arraes almejava era conseguir disseminar pelo país, tomando como epicentro a capital pernambucana, um governo nacional baseado nas cartilhas marxistas. De modo que a atuação de Paulo Freire e o estabelecimento do seu método de alfabetização por mais relevante e eficiente que se revelasse, não poderia deixar de ser visto como produto de um intelectual que, a despeito do “aspecto nobre” de sua, digamos, campanha de alfabetização do povo numa nação na qual viviam 15,9 milhões de jovens e adultos analfabetos, continuava por assim dizer acreditando e apostando numa ideia de sociedade baseada na ideologia comunista/socialista – ou marxista cultural, se assim o queiram -, parecendo até que ele não sabia o que regimes dessa natureza infligiram a milhões de indivíduos nas repúblicas soviéticas e na China de Mao Tsé-tung.

Sim, eu concordo plenamente que educar é um ato político; e que educar para o alcance do esclarecimento por parte do indivíduo pode também ter um direcionamento de entendimento e/ou compreensão de uma dada realidade na qual se esteja inserido. Paulo Freire visava um processo de alfabetização num cenário no qual o analfabeto não tinha status de cidadão comum; e não podia votar nas eleições. Contudo, essa ação alfabetizadora, por mais que fosse apresentada como uma proposta de libertação das “massas oprimidas pelo sistema” através do alcance das competências de ler e escrever, carregava consigo outro propósito. Era como se a proposta de alfabetização não tivesse de fato um cunho libertário/libertador, porque, se, por um lado, pretendia que os alfabetizados alcançassem autonomia para ler não somente o que era escrito, mas também para “ler o mundo” e, assim, compreender os mecanismos geradores de desigualdades sociais que vigiam no regime capitalista, no demonizado regime capitalista, por outro lado, como que fazia uma doutrinação desses “libertos” para que eles engrossassem as fileiras de uma pretendida “revolução do proletariado/campesinato”.

Concordo integralmente com Carlos Rodrigues Brandão, um dos discípulos de Paulo Freire, quando ele diz que toda educação tem, em si, uma intenção política. Num pequeno livro que publicou sobre o método de alfabetização do seu mestre ele destacou que “A educação que Paulo Freire vislumbra não é apenas politicamente utilitária. Ela não objetiva somente criar novos quadros para um novo tipo de sociedade” (Carlos Rodrigues Brandão. O que é método Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 87). Por que não se diz qual é o fundamento político-ideológico desse “novo tipo de sociedade”? Não se trata aqui de reposicionar Paulo Freire e a sua obra dentro de um esquema de um revisionismo histórico, como os discursos apologéticos escritos a seu respeito costumam rebater as explicações e/ou interpretações do seu legado; trata-se, isso sim, pelo menos de minha parte, olhar para as bases desse legado ligando-o ao contexto em que o processo foi desenvolvido; e eu reconheço que o critério do revisionismo histórico também é válido, porque o passado é imutável, mas as interpretações a seu respeito não.

Em que pese o seu fundamento doutrinador, digamos assim, o Método Paulo Freire de Alfabetização de Adultos foi por si mesmo uma revolução no panorama educacional brasileiro. E uma revolução tão significativa que avançou para além das fronteiras do Brasil, pôs Paulo Freire na galeria dos maiores educadores do mundo e continua de alguma maneira em voga até os dias de hoje. Com tal método, como se dizia, era possível alfabetizar um grande número de indivíduos em um mês e meio. Era verdadeiramente, como eu disse, uma revolução por si só. E isso é um feito admirável que nenhuma crítica e/ou ataque a Paulo Freire jamais conseguirá demolir. O que a dita direita faz com Paulo Freire ao atacar a sua obra sem reconhecer nela o valor que ela possui, porque ela foi elaborada e/ou inspirada em ideais do marxismo cultural, a igualmente irascível esquerda faz com outro luminar pernambucano, que é Gilberto Freyre, repetidamente atacado por ter supostamente dito que no Brasil sempre esteve em vigência uma “democracia racial”.

Fora do espectro político-ideológico, admiro em Paulo Freire e na obra que ele deixou o que eu considero serem as suas partes essenciais, que é o método de alfabetização por ele criado, bem como o seu entendimento do papel da educação como elemento fundamental que vise à transformação do indivíduo e, por extensão, de toda uma sociedade. Num livro que eu avalio como fundamental para que se compreenda a dimensão e o alcance do pensamento paulofreireano, ele destacou que a educação das massas se constitui algo absolutamente necessário: uma “Educação que, desvestida da roupagem alienada e alienante, seja uma força de mudança e de libertação” (Paulo Freire. Educação como prática da liberdade. 28ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, p. 44). Isso para mim soa como uma verdadeira profissão de fé. E nós não podemos nos esquecer de que, nestes dias que correm, o Brasil ainda abriga mais de 11 milhões de analfabetos.

Valendo-me de alguns versos do poema “Canção para os fonemas da alegria”, que Thiago de Mello dedicou ao ilustre educador, eu “Peço licença para soletrar,/no alfabeto do sol pernambucano/a palavra ti-jo-lo, por exemplo”, porque tijolo é construção (Thiago de Mello. Faz escuro mas eu canto. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 29).

Há cem anos nascia Paulo Freire num Recife já pontuado por mocambos e outras misérias. O sonho de uma sociedade comunista/socialista que ele almejou não foi alcançado – ainda bem -, mas o seu legado se tornou perene. Através do seu método de alfabetização, com suas “palavras geradoras”, Paulo Freire ensinou uma multidão a decifrar e a interpretar o mundo ao seu redor e, assim, a alcançar de algum modo sua autonomia vencendo a condição de oprimido.

Muitos, muitos vivas para Paulo Freire.

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