Por Sierra
Desde muito criança eu
comecei a assumir o papel de leva-e-traz, de moleque de mando para uns e outros
muitas vezes para ganhar alguns trocados. Assim, era raro o dia em que alguém
da vizinhança ou gente da minha própria família não me encarregava de ir à
venda da esquina, à mercearia, ao mercadinho, ao supermercado e à feira livre.
Muito cedo eu principiei a frequentar
esses espaços comerciais e, não raro, pulando de um para outro em busca dos
menores preços. E, dada a escassez e o pouco dinheiro, andar de lá para cá e de
cá para lá era, por assim dizer, ao mesmo tempo que um aprendizado sobre as
coisas práticas da vida, um real e às vezes dolorido exercício de
sobrevivência, principalmente quando a grana não dava para comprar o que se
queria e/ou do que se necessitava.
Morador desde sempre dos
subúrbios da Região Metropolitana do Recife, eu sou do tempo em que as chamadas
vendas e barracas e mesmo as mercearias vendiam também a retalho: se o sujeito
não podia comprar uma lata de óleo de soja – sim, no meu tempo de infante óleo
de soja era vendido em latas arredondadas e compridas -, levava a metade ou a
medida de um copo americano; se não dava para pagar por um quilo de feijão ou
de farinha ou de açúcar, levava a quantidade que o dinheiro desse.
A vida de quem vive com
dinheiro escasso sempre foi e sempre será difícil; e, ainda mais, quando os
preços correm a galope e nós fazemos de tudo para que ele renda o máximo que
puder. Criança que adorava correr chão – deve ser por isso que até hoje, aos 47
anos, eu continue muito dado a andanças -, frequentemente eu saía comprando uma
coisa aqui e outra ali tentando de todas as formas conseguir fazer com que o
dinheiro desse para comprar o que estava faltando em casa. Se alguém dizia:
“Olha, a bolacha tá mais em conta lá em Seu Doge”, eu ia até lá. E se um outro
dissesse: “Sierra, no Mercadinho Silva tá vendendo arroz num preço bom danado”,
eu ia até lá também, mesmo que as distâncias entre os estabelecimentos fossem
enormes e eu fosse levar um grande tempo para percorrê-las. Não havia outro
modo de sobreviver. Mainha, mãe solteira, tinha de dar conta de aluguel, de
comida, de tudo, enfim; e eu logo cedo comecei a compreender isso e as
dificuldades da vida a cada vez que preparava o fogareiro com lascas de madeira
e papel para acender o carvão ou então quando usava uma espécie de fogãozinho
apropriado para receber álcool, meios aos quais recorríamos quando não tinha
dinheiro para comprar um botijão de gás.
Tempos difíceis. Amargos.
Ruins. Perversos. Tempos de desamparo social e de ausência de rede de proteção
governamental que engrossavam as filas da pobreza e da miséria dos números do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sou um dos filhos
desses tempos de desamparo governamental. Sou um entre os milhões de
brasileiros que, à época do maldito desgoverno do presidente José Sarney, ia
com seus caraminguás ao supermercado e se deparava com grandes espaços vazios
nas gôndolas e prateleiras. Inconformados com o tabelamento de preços,
produtores de alimentos simplesmente não produziam – e, se produziam, preferiam
vender no mercado clandestino com preços nas alturas. Foi um terror aquele
tempo.
Resgatei essas lembranças
ruins por esses dias, temendo que, dada a alta dos preços de vários itens da
cesta básica, a inflação volte a sair em desabalada carreira e, assim, consuma
a maior parte dos nossos ganhos e lance na pobreza e na miséria absoluta mais
uma considerável porcentagem da população, gerando, por sua vez, uma série de
outras degradações como o aumento da violência e das práticas criminosas,
porque, como dizem os estudiosos, na esteira do desemprego, da pobreza e da
miséria proliferam outros males sociais.
Os efeitos da inflação,
sobretudo nos preços dos alimentos, podem ser vistos não só na alta dos preços
em si dos produtos, como também nas artimanhas – artimanhas previstas em lei,
diga-se - que algumas indústrias fazem para não encarecer ainda mais o que elas
vendem, que é recorrer ao expediente de diminuir o peso do produto na
embalagem; ou seja, pagamos mais caro para consumirmos cada vez menos. Gente
vasculhando lixeiras e depósitos de descartes em busca de restos de comida é,
talvez, a expressão máxima do desamparo social e governamental.
Há quem prefira sempre fazer de tudo para não se lembrar das privações e dos horrores que vivenciou. De minha parte eu faço de tudo para não esquecê-los.
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