11 de dezembro de 2021

É gigantesca a nossa insignificância

 Por Sierra

 

Foto: Reprodução
A impunidade é a mãe da maioria dos males que assolam este país. E a impunidade diz muito da nossa gigantesca insignificância enquanto sociedade. Punir com brandura delitos graves é quase o mesmo que não punir



Acredito que quem tem alguma ideia, por mínima que seja, de compromisso social a ponto de compreender que nós, que vivemos em sociedade, estamos sujeitos a regras e normas e penalidades, acompanhou, mesmo que parcialmente, o julgamento dos acusados pela tragédia ocorrida em 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, que vitimou 242 pessoas e deixou feridas e sequeladas dezenas de outros indivíduos. O julgamento dos quatro homens apontados pelo Ministério Público como responsáveis pelo incêndio havido na boate Kiss durou dez dias. E, ontem, o país e o mundo tomaram conhecimento das sentenças que foram aplicadas aos réus.

No Brasil, infelizmente, a célula mater da Justiça continua e permanece sendo a injustiça, quando não a impunidade pura e simples. O arcabouço jurídico sobre o qual está assentada a sociedade brasileira não consegue de forma alguma andar de mãos dadas com aquilo que se convencionou chamar de processo civilizatório; os fazedores de leis deste país continuam desdenhando do bom juízo e das leis realmente punitivas que vigoram em nações, como os Estados Unidos, onde criminosos de fato pagam pelas infrações, delitos, assassinatos e barbaridades que cometem. Como em outros aspectos, também neste, o Brasil quer continuar figurando entre as nações nas quais os instrumentos legais existem como mera formalidade, existem por existir ou existem para ser duramente aplicadas tão somente contra aqueles que, coitados, não têm como pagar a bons advogados para os defender.

Alguns costumam dizer que punições devem servir como exemplo, ao modo das fábulas que apresentam uma moral da estória no final. Considerando o que habitualmente se verifica nos julgamentos dos crimes tipificados como graves e hediondos neste país, a moral que fica é esta: não tenha medo, arranje um bom advogado que você vai escapar disso ou, se muito, cumprir uma penazinha de nada.

O caso dos réus da tragédia da boate Kiss está aí para manter e confirmar a realidade de um país que faz de tudo para não punir com rigor delinquentes, infratores e criminosos que grassam por aí como vírus pandêmicos.

Não sou arauto da Lei de Talião; e nem defensor da pena capital, sobretudo num país onde não é incomum magistrados venderem  sentenças como se estivessem ofertando produtos numa feira livre. Por outro lado, não consigo deixar de me indignar e de protestar quando eu me deparo com sentenças que a meu ver são absurdas e vergonhosas e que tripudiam de todos aqueles que clamam por justiça e reparações de danos. Nas sentenças proferidas ontem pelo juiz contra os acusados de responsabilidade pelo que ocorreu na boate Kiss, a maior pena aplicada foi de apenas vinte e dois anos e seis meses - as demais foram: uma de dezenove anos e seis meses e duas de dezoito anos. E isso lá é punir com rigor e exemplaridade, gente? Como é que indivíduos responsabilizados pela morte de 242 pessoas e por dezenas de sequelados física e psicologicamente recebem uma punição como essa? Para aumentar o grau de absurdo de um julgamento que demorou quase oito anos para acontecer, os réus não seguiram para a prisão, beneficiados que foram por um habeas corpus. Podem apostar que com as chicanas, as recorrências às instâncias superiores, os regimes de progressão de penas e outros benefícios e estimulantes destinados a criminosos neste país, os quatro condenados pela tragédia de Santa Maria ficarão um curtíssimo tempo atrás das grades, se é que ficarão.

Por favor, não cobrem de mim complacência, humanismo e solidariedade para com tiradores de vidas e praticantes de crimes hediondos. Eu não entendo disso e nem sou desses. Eu entendo e sei o que é dor, o que é revolta, o que é omissão, o que é falta de empatia, o que é descaso, o que é abandono, o que é injustiça e o que é impunidade. A impunidade é a mãe de muitos, a bem dizer, da maioria dos males que assolam este país e que faz com que ele não consiga nunca alcançar os passos e andar emparelhado com o processo civilizatório que marca as nações mais desenvolvidas. É por conta da impunidade e/ou da Justiça injusta que políticos se locupletam passando a mão no dinheiro público. É por conta da impunidade e/ou da Justiça injusta que indivíduos assassinos, como Guilherme de Pádua, que deveriam terminar os seus dias numa cadeia, estão por aí gozando de plena liberdade. É por conta da impunidade e/ou da Justiça injusta que criaturas abomináveis e monstros como João de Deus ganham o privilégio de ficarem "presos" em suas residências. É por conta da impunidade e/ou da Justiça injusta, enfim, que a delinquência e a criminalidade se mantêm em escala sempre ascendente neste país.

A pena branda e sobretudo o habeas corpus que a Justiça concedeu aos réus da tragédia da boate Kiss tanto quanto uma nota lamentável a beirar a impunidade é um escárnio para com a memória das 242 vidas perdidas e para com a dor e a inconformidade dos parentes delas. Mais uma vez o julgamento de um caso de enorme repercussão e que provocou enorme comoção deixou ver que, a depender da Justiça em vigor neste país, continuaremos a assistir ao predomínio da injustiça. 

Vou repetir: a impunidade é a mãe da maioria dos males que assolam este país. E a impunidade diz muito da nossa gigantesca insignificância enquanto sociedade. Punir com brandura delitos graves é quase o mesmo que não punir.

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