5 de dezembro de 2021

Edson Nery da Fonseca centenário

 Por Sierra

 

Foto: Jean Robert
Edson Nery da Fonseca flagrado durante as filmagens do documentário Casa-grande & senzala, de Nelson Pereira dos Santos, no Bairro do Recife, em fevereiro de 2000



Havia naquela casa uma luz permanentemente acesa; algo que percebi à medida que eu fui me deixando envolver inteiramente por ela. Entrar naquela casa e me deparar com luz tão radiante e poderosa era de algum modo adentrar num lugar aonde se vai em busca de respostas e lenitivos. A luz que naquele recinto tão fortemente brilhava era a luz da razão; luz essa antropomorfizada na figura de um homem imenso que me mirava com seus olhos repletos de ternura e de inquietação.

Quando eu conheci pessoalmente Edson Nery da Fonseca eu já tinha, por assim dizer, um esboço do que era aquele verdadeiro colosso intelectual. Mas esboços são apenas linhas gerais de algo e acabam por não dizer muito dele. Então, quando eu entrei na vida de Edson Nery da Fonseca, eu senti que a minha adquirira outro peso e dimensão, porque ele foi pouco a pouco iluminando escuridões que em mim existiam e me incentivando a seguir no meu itinerário, dizendo que cada um de nós tem o seu próprio caminho para percorrer.

Não foram poucas as vezes em que ele me admoestou. Também não foram raras as ocasiões em que trocamos confidências e nos divertimos e rimos de coisas miúdas de nossas vidas, porque, ele na sua velhice e eu na minha juventude, de alguma maneira nos reconhecíamos em certos aspectos que nos constituíram e nos moldaram ao longo de nossas existências.

Ao ir me familiarizando com a obra intelectual que Edson Nery da Fonseca foi elaborando no decorrer de décadas e vendo os reflexos dessa obra na sua vida e nas de outrem, ficou absolutamente clara para mim a ideia do compromisso de uma intelectualidade para com a produção e a disseminação de conhecimentos. Nos diversos campos pelos quais enveredou – os fundamentos da Biblioteconomia, a fortuna crítica e a biografia de Gilberto Freyre e o apreço pela poesia, principalmente a de Manuel Bandeira -, ele foi como que construindo pontes para que o seu conhecimento chegasse ao maior número possível de pessoas, sendo os livros apenas uma delas; ele também exerceu a crítica literária e publicou artigos de opinião – aqui e ali ferindo sensibilidades e despertando ressentimentos, quando não declaradas inimizades -, deu aulas, proferiu palestras, gravou discos, ministrou cursos e se empenhou em ações de organização de acervos e de abertura de bibliotecas.

Quando eu mergulho em minhas reminiscências, vejo os poucos, mas intensos anos que eu passei em companhia de Edson Nery da Fonseca como uma das mais ricas experiências que até hoje vivenciei num sentido muito lato, que extrapola o campo intelectual, ainda que este seja o dominante. Naquela casa da Rua de São Bento, em Olinda, para além dos retratos e pinturas dispostos nas paredes, para além dos muitos livros, imagens sacras, bibelôs e gatos que ali se encontravam, repousava uma farta e significativa porção da memória intelectual pernambucana e nacional em par com a grandeza de um homem adepto do humanismo que, em que pese os inesperados rompantes de fúria, era habitualmente de uma delicadeza, de uma generosidade, de uma sensibilidade e, sobretudo, de uma amorosidade que só os que o conheceram de muito perto podem atestar o que eu estou a dizer.

Existe uma espécie de intelectual que é muito aferrada aos seus propósitos; e que compreende a dimensão intrínseca de tudo aquilo que ele verbaliza, tanto do que propriamente fala como do que escreve, porque sabe que, de algum modo, o seu pensamento e a sua maneira de interpretar e enxergar o mundo influenciam quem o ouve ou quem o lê. Penso que este era o exato perfil de Edson Nery da Fonseca, um intelectual que mantinha uma permanente vontade de saber em comunhão com o compromisso – ou com a missão, como diria Nicolau Sevcenko – de espalhar, disseminar e semear conhecimentos.

Amanhã, exatamente amanhã, dia 6 de dezembro, Edson Nery da Fonseca completaria cem anos de vida; completaria não, completará, porque é só a existência física, palpável, corpórea e carnal dele que não está mais perto de nós. Edson Nery da Fonseca permanece vivo entre todos que o conheceram, entre todos que continuam lendo o que ele escreveu e ouvindo os poemas que ele gravou, entre todos que aprenderam algo com ele, entre, enfim, todos que se emocionaram com ele e que o amaram e foram amados incondicionalmente por sua pessoa tão generosa.

Edson Nery da Fonseca está inteiro, vivo e presente em mim, porque, eu tenho certeza, ele entrou na minha vida para dela não mais sair.

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