4 de dezembro de 2021

Personas urbanas (28)

 Por Sierra

 

Me fiz em mil pedaços pra você juntar

e queria sempre achar explicação pro que eu sentia.

Como um anjo caído

fiz questão de esquecer

que mentir para si mesmo é sempre a pior mentira.

Quase sem querer. Dado Villa Lobos/Marcelo Bonfá/Renato Russo/Renato Rocha


 

O autoengano é a pior das prisões. Eu admito que, por mais que me esforce, eu não consigo aceitar de todo que alguém insista em querer tapar com uma peneira aspectos cruciais de sua vida e tratar isso com a maior naturalidade possível, como se a questão fosse algo menor e o indivíduo não compreendesse a real gravidade dos fatos por si só e do que eles podem desencadear e acarretar.

Entre os meus vários defeitos figura uma incorrigível impaciência – não, Sierra, é intolerância mesmo – para interagir com pessoas que dia após dia vão como que construindo uma espécie de universo paralelo para si sem se dar conta que nós outros, com as quais elas convivem, estamos com os pés bem fincados nesta realidade daqui. Para mim é extremamente difícil – por que é que eu vim ao mundo tão impaciente, minha gente?! – ouvir afirmações que vão na mão contrária das coisas da vida prática. Por que é que tantas e tantas pessoas que posam de desenroladas, sabichonas e prafrentex têm tamanha dificuldade para enfrentar a realidade de peito aberto e sem recorrer a constantes mentiras e dissimulações? Talvez a resposta mais apropriada para esse tipo de comportamento seja o autoengano.

De verdade, eu deixei de me espantar quando ouço alguém descrever aspectos de sua vida apoiados em um fio, ou melhor, em uma corda bamba. O espanto há tempos deu lugar a uma irritabilidade e a uma falta de empatia para com os adeptos da fuga da realidade. Tem gente que vai morrer mantendo um comportamento estúpido, mesquinho, egoísta e cruel de meter-se num faz de conta e num “assim é melhor, porque se eu disser a verdade ela jamais vai me aceitar”, sem se importar de fato com o enorme sofrimento que poderá causar no outro, caso a farsa seja descoberta.

Há quem se evada da realidade recorrendo a drogas. Há quem distorça a realidade contando mentiras a rodo. Há quem fuja da realidade criando uma espécie de universo paralelo. E há quem busque escapar da realidade vivendo prisioneiro do autoengano.

Eu preciso parar de querer encarnar o sujeito que só quer enxergar a sua própria vida e a vida alheia de modo prático, porque o comum é que pessoas assim sejam rejeitadas e malvistas. Não, eu não vou deixar de ser assim e nem vou parar de agir assim. Não é interessante que certos indivíduos sejam tão dados à praticidade, por exemplo, no que diz respeito a modernismos tecnológicos e em seus ambientes de trabalho e de estudos, mas, por outro lado, sejam nada objetivos nem práticos para lidar com seus sentimentos, com suas aflições, limitações e neuras e mesmo com sua sexualidade?

O típico prisioneiro do autoengano é aquele indivíduo que, em que pesem todas as evidências, todas as circunstâncias, todos os resultados de quem experienciou comportamentos iguais aos dele e todo o histórico de quem vivenciou atitudes como as suas, ele permanece acreditando e defendendo seu ponto de vista, seu modo de pensar e sua postura diante do que lhe salta aos olhos. E, por mais que insistamos para que ele enxergue o óbvio ululante, nada e nem ninguém consegue convencê-lo a mudar o seu conceito, a sua opinião e o seu comportamento e nem dissuadi-lo do que ele se propõe a manter e/ou a fazer.

Tento de alguma forma contornar situações como essas, mas no geral eu não consigo. Eu não sei lidar com gente assim. Eu sinto muito. Eu sinto muito mesmo. Eu não sei lidar com quem vive a dar murro em ponta de faca e que ver isso com a maior das naturalidades. Tanto me falta capacidade, jogo de cintura e desembaraço para tratar com gente assim que, não raro, quando eu canso de jogar água na cara dessa pessoa para ver se ela acorda e caia na real, sem hesitar eu me afasto do convívio com ela, porque duas coisas eu não quero absolutamente carregar em minha vida: pensamentos imobilizadores ou autodestrutivos e fardos desnecessários. Eu só quero carregar comigo o que for essencial e necessário para o meu bem viver.

Talvez seja uma tentativa e um exercício vão esse de querer libertar alguém das amarras do autoengano, porque, quando não se tem ou se tem pouco autoconhecimento, a autoaceitação e a compreensão de si exige um esforço que nem todos, ao que parece, são capazes de envidar. Pelo tudo que até hoje vivi, eu continuo a pensar que o autoengano é a pior das prisões . Viver bem, viver realmente bem, é poder viver a vida plenamente.

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