15 de janeiro de 2022

Eternidade e fragilidade de Ouro Preto

 Por Sierra

 

Fotos: Redes Sociais/G1
 Íntegro em toda sua imponência, o Solar Baeta Neves desapareceu da paisagem da encantadora Ouro Preto vitimado pela chuva e também pela incompetência do poder público, que não promoveu obras de contenção do Morro da Forca, estando o solar interditado desde 2012


Dia chegará em que eu escreverei um alentado artigo sobre Ouro Preto, a cidade histórica de Minas gerais que eu visitei em duas ocasiões. Por ora, o que me levou a escrever a narrativa de hoje foram os muito tristes e lamentáveis acontecimentos provocados pelas chuvas naquela cidade no último dia 7 e, depois, no dia 13.

Quando, pela primeira vez, eu estive em Ouro Preto, fui de súbito tomado por um misto de deslumbramento e de lamento. Caminhar por aquelas ruas, visitar os monumentos e respirar aquela atmosfera me encheu de uma satisfação e de um prazer indescritíveis, além de reforçar em mim a paixão e o compromisso por continuar militando, ainda que solitariamente e sem vínculo com nenhuma instituição e/ou entidade, pela preservação e salvaguarda do patrimônio histórico, artístico e cultural do país. Já o lamento que quase se fez desencanto foi constatar que, mesmo em Ouro Preto, o símbolo maior das políticas de preservação em vigor neste país desde a criação do Serviço do Patrimônio Histórico – depois Diretoria e posteriormente Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) -, em 1937, mesmo na Ouro Preto tantas e tantas vezes evocada e descrita por poetas e estudiosos, nacionais e estrangeiros, e fotografada por admiradores e apaixonados como Eduardo Tropia, que mora lá e que eu tive o privilégio de conhecer, aqui e ali eu pude verificar que algo falhara, algo estava falhando no cuidado com o patrimônio histórico edificado; e a ocupação indevida e desordenada da maioria dos morros que circundam o núcleo de ocupação mais antiga da cidade me deram a certeza de que, apesar de todos os esforços, as políticas de preservação em duelo com a demagogia política não conseguiram salvaguardar de todo a paisagem, o cenário que completa o espaço citadino.

Muito mais do que na primeira vez, na minha segunda estada na antiga capital de Minas Gerais eu percorri espaços outros afastados do chamado centro histórico; e foi essa vivência de vários dias com o cotidiano da cidade que me levou a constatar, naqueles inesquecíveis dias de outubro de 2018, que as ocupações desordenadas eram um retrato de dupla face: de um lado expunham a ingerência de sucessivas administrações municipais que foram coniventes e taparam os olhos enquanto pessoas iam ocupando os morros, inclusive, áreas de risco; de outro, elas revelavam que, junto com uma evidente luta pela sobrevivência de quem queria erguer a sua morada, estava claro que as ocupações não se deram apenas pela chamada gente humilde e necessitada.

Confesso que eu chorei. Sim, eu chorei na quinta-feira passada, dia 13, quando vi as imagens do deslizamento de parte do Morro da Forca, que causou a demolição do belo – por dentro e por fora – Solar Baeta Neves e de um imóvel  que existia vizinho a ele. Nossa, que cena impressionante, triste e lamentável. Em questão de segundos a memória de trabalhadores negros escravizados, de artesão e artistas, de proprietários e restauradores, de marceneiros e pintores foi reduzida a um monte de entulho. Imagens por demais comoventes – ad perpetuam rei memoriam.


Imagem  que flagrou o instante em que o desmoronamento estava acontecendo: ad perpetuam rei memoriam


E pensar que houve a disponibilização de R$ 35 milhões, em 2012, ainda no governo da Presidente Dilma Rousseff, para obras de contenção de encostas e nem sequer um centavo foi usado e nada foi feito, porque não elaboraram estudos que viabilizassem a liberação dos recursos. E pensar que o prédio estava interditado para visitação pública havia dez anos, por causa do risco de deslizamento de parte do Morro da Forca. E pensar que no último dia 7 outro prédio do centro histórico, que fora abandonado pelos proprietários e deixado à própria sorte, desmoronou parcialmente. E pensar que o centro histórico de Ouro Preto é protegido por lei federal desde 1938, ou seja, é um patrimônio nacional e, também, mundial, porque reconhecido pela Unesco.


Esta foi a edificação abandonada que ruiu parcialmente no último dia 7 de janeiro: de quem é a responsabilidade por essas perdas?


Não duvido da competência do atual prefeito de Ouro Preto, Angelo Oswaldo que, aliás, já administrou a cidade em outros mandatos. Até onde eu sei, Angelo Oswalddo é alguém que entende do riscado, que conhece como poucos as deficiências da cidade como um todo e que é um administrador comprometido com a salvaguarda e proteção do patrimônio histórico edificado, das manifestações artísticas e culturais e mesmo daquilo que Gilberto Freyre denominou de mineiridade. Creio que, a depender de Angelo Oswaldo, Ouro Preto irá de alguma forma ser alvo de ações que promovam a contenção das encostas, trabalho esse nem um pouco fácil de ser executado, considerando que a cidade e o seu entorno são formados por morros.

As perdas recentes ocorridas em Ouro Preto – e, felizmente, nenhuma vida foi perdida nos desmoronamentos das edificações – evidenciaram, mais uma vez, que, em que pese a importância histórica, artística e cultural do conjunto urbanístico mais antigo da cidade, a sua aura de pretensa eternidade está alicerçada em bases muito frágeis.

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