29 de janeiro de 2022

Um clamor

Por Sierra

 

Foto: Arquivo do Autor
Apesar da pose de bon vivant e de quem não está nem aí nem vai chegando, o esculturado Livardo Alves está dia após dias sendo mutilado


Quem é Livardo Alves? Ou melhor: quem foi Livardo Alves? Livardo Alves foi um cantor e compositor e jornalista paraibano que faleceu há quase vinte anos (em 16 de março de 2002). É de sua lavra, por exemplo, a muito conhecida marchinha de Carnaval “Marcha da Cueca” (“Eu mato, eu mato/Quem roubou minha cueca/Pra fazer pano de prato...”).

Quem caminha atento pelos espaços públicos de uma grande cidade costuma se deparar com monumentos, estátuas, bustos e outros meios pelos quais, geralmente partindo e/ou por incentivo da Municipalidade, busca-se dar destaque a alguma personalidade e/ou a um acontecimento marcante para a História do lugar ou mesmo para o país como um todo. Esses elementos evocativos de um passado que se quer manter vivo e ser dado a conhecer às pessoas do tempo presente, normalmente refletem um cuidado para com a memória no sentido de nos mostrar que houve tal acontecimento eu um determinado ano e/ou período ou, quando se trata de um personagem, mostrá-lo como figura importante dentro de um determinado campo de atuação, como a política, a administração pública, os esportes e as artes.

De uns anos para cá começamos a assistir, em várias cidades do mundo, a manifestações e a protestos questionadores de celebração de uns e outros personagens controversos do passado em espaços públicos. Vimos, por exemplo, nos Estados Unidos, que estátuas de antigos escravocratas passaram a ser vistas como inadequadas, afinal,  por que celebrar a figura de alguém que foi responsável pela manutenção de uma ordem socioeconômica que, em verdade, começou a ser repudiada ainda no século XIX? Este é um ponto. Outro ponto aberto pelos protestos é o pôr em discussão a própria questão da representatividade de determinados grupos sociais nos tais monumentos, estátuas, bustos ou o que for, nos espaços públicos, deixando de ver que, tão importante quanto a preservação da memória em si ou por si mesma, é o exercício da evocação e da preservação de uma memória que diga muito mais do todo social e não de um fragmento específico; ou seja, uma memória que celebre as coletividades e suas diferenças e não que permaneça apenas evocando e narrando os feitos dos grupos sociais dominantes e/ou dos vencedores.

Com o intuito de não apenas homenagear mas também manter a memória de Livardo Alves viva no Ponto de Cem Réis, que ele tanto frequentava, em 4 de agosto de 2009, a Prefeitura Municipal de João Pessoa inaugurou ali, bem defronte ao prédio onde funcionou o Paraíba Palace Hotel, uma escultura de autoria do artista plástico pernambucano J. Maciel, um admirável mestre do seu ofício. Esculturado, Livardo Alves aparece muito posudo e cheio de si sentado num banco de praça e parecendo estar mentalmente buscando motivo para mais uma canção ou burilando uma já quase pronta.

Deixando a poesia e a fantasia de lado, o fato é que há tempos o Livardo Alves que se encontra ali sentado, em meio ao bulício do Ponto de Cem Réis, está clamando para o poder público e para os cidadãos de bem que ele está sendo dilapidado dia após dia; e que certamente pedaços da escultura estão sendo arrancados para serem vendidos em algum ferro velho, porque quem a está mutilando continuamente não pensa na arte em si, mas tão somente no material de que ela foi feita.

A mutilação da escultura de Livardo Alves é quase que um retrato e/ou resumo do estado de degradação e abandono em que se encontra o Ponto de Cem Réis, um dos locais de passagem mais movimentado da área comercial da capital paraibana. A Municipalidade, ao que parece, fechou os olhos para o que atualmente se vê por ali. Vendedores ambulantes transformaram parte daquele espaço numa espécie de feira livre; e a desorganização tem imperado por lá.

Pelo que se tem visto, o clamor de Livardo Alves não tem sido ouvido por quem pode socorrê-lo. Talvez a Municipalidade só se dará conta da mutilação que a escultura vem sofrendo, quando a representação do talentoso Livardo Alves desaparecer completamente dali.                                                                                                                                                                 

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