Por Sierra
Ao mesmo tempo em que deu
farto material para um segmento da mídia que se alimenta basicamente desse tipo
de conteúdo, sobretudo num tempo como este nosso, em que as imagens, em geral,
e as imagens em movimento, em particular, aparecem como verdadeiras pedras de
toque de comunicação entre as pessoas, a disseminação de instalação de câmeras de
segurança em tudo quanto é canto, por outro lado, passou a flagrar e revelar
aos que têm olhos para ver e ouvidos para ouvir, toda espécie de maldade, toda espécie
de crueldade e toda espécie de barbárie que os seres humanos são capazes de
cometer contra outros seres humanos – e também contra animais e tudo o mais que
estiver no ângulo de captação das câmeras -, auxiliando as polícias na
identificação dos autores de ações criminosas e, por conseguinte, na elucidação
de crimes.
Diariamente imagens de
flagrantes de câmeras circulam por aí dando testemunhos de nossa magnífica e
poderosa vontade de agir com os piores instintos e sentimentos que nos habitam;
e elas nos mostram maltratando, espancando, humilhando, abusando, ofendendo ou
matando alguém, como se ainda vivêssemos no tempo da selvageria absoluta e o
tal do processo civilizatório tenha conseguido tão somente nos tornar menos
animalescos e bestiais.
Durante dias a fio as
imagens que mostram três rapazes espancando o jovem congolês Moïse Kabagambe no
entorno de um quiosque de praia na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, um crime
brutal ocorrido no último dia 24 de janeiro, ficaram – e permanecem – rondando a
minha cabeça. As cenas de escancaradas covardia e brutalidade deixam a todo
instante ver quão nós seres humanos somos ainda movidos por uma selvageria que
é absurda e absolutamente assustadora; e que se agrava quando nos damos conta e
temos o claro entendimento de que isso poderia ter acontecido e pode acontecer
com qualquer um de nós e em qualquer lugar. A violência que se expressa por
meio do linchamento e do espancamento mortal, essa “violência gratuita” que
procura e não encontra justificativa de legítima defesa para ser deflagrada é
uma das infelizes marcas do nosso tempo.
As estatísticas da violência não mentem: os brasileiros somos um povo brutal, cruel e assassino. O antropólogo Darcy Ribeiro dizia que a sociedade brasileira era uma das mais violentas do mundo; e dava como explicação para essa "enfermidade social e cultural" o passado dominado pelo regime escravocrata: "A contingência de ter que tratar com um escravo convertido em bicho, em coisa, em propriedade, podendo exercer uma violência total, matando, torturando, castigando, isto deforma também o senhor. A classe dominante brasileira foi cevada nisto e todos nós estamos marcados por essa violência". "A entrevista do Pasquim. Por Ziraldo, Darcy Ribeiro, Milton Temer, Geraldo Mayrink e José Maria Belo, em 1978". In Fernando Gabeira. Sergio Cohn, Heyk Pimenta e Ingrid Duarte [orgs.]. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 33).
Há quem acredite piamente
que está de algum modo a salvo em meio a um cenário onde impera a “violência
gratuita”. E essa crença absoluta na autodefesa garantidora de proteção diz
muito da atual corrida armamentista que estamos a acompanhar neste país. Sepultando
qualquer ideia de uma cultura de paz e como que nos preparando para, ao nosso
modo e a qualquer momento, protagonizarmos nossos quinze segundos de fama ou
mais na espetacularização da selvageria e da barbárie, saímos para comprar um
revólver, um soco inglês, um fuzil, um spray
de pimenta ou mesmo um taco de beisebol, porque o mais prudente e sensato é
estar armado de alguma forma para enfrentar o mundo hostil em que vivemos.
O que foi que Moïse
Kabagambe fez para “merecer” e “justificar” o que lhe infligiram naquela noite?
Roubou? Matou? Estuprou? Desviou verba pública? Não tomou vacina contra a
covid-19? Atrasou o pagamento das contas de água e de luz? Foi enquadrado na
Lei de Segurança Nacional? Atravessou com o sinal vermelho? Desacatou uma
autoridade? Atropelou alguém? Disse que iria votar no Lula? Recusou-se a ouvir
o sermão de um pastor? Beijou um homem? Não contribuiu para ajudar os
desabrigados das chuvas? Caminhou nu pelo calçadão? Desmatou parte da Floresta
da Tijuca? Espancou a companheira? Derramou óleo na Baía da Guanabara? Pichou o
Cristo Redentor? Estava sob efeito de crack?
Afinal, o que foi que Moïse Kabagambe fez para “merecer” e “justificar” os ataques
brutais que lhe desferiram e que tiraram a sua vida, uma vida no vigor de seus apenas
24 anos de idade?
Num Rio de Janeiro onde, não
é de hoje, a “violência gratuita” mostra a sua face praticamente todos os dias,
não foram policiais mal preparados, não foram milicianos, não foram traficantes
de drogas e não foram skinheads quem
tirou a vida de Moïse Kabagambe. Naquela noite de 24 de janeiro de 2022 o jovem
congolês Moïse Kabagambe foi mortalmente espancado por três rapazes que se enquadram
naquela denominação genérica e moralizadora das crônicas policiais, que é o “cidadão
de bem”. Foram três “cidadãos de bem” que mataram Moïse Kabagambe, um jovem
negro, pobre e refugiado que veio tentar fazer a vida no Brasil.
Toda vez que a memória da
brutalidade, da crueldade, da selvageria e da barbárie é esquecida ou apagada, ela tende a
ser repetida como se nunca tivesse acontecido. Consideremos isso agora. Consideremos
isso agora e envidemos esforços, procuremos convencer o prefeito Eduardo Paes
a, além de manter o quiosque com a família do morto, mandar fazer uma estátua
do jovem congolês e instalá-la ali, no aprazível calçadão da Barra da Tijuca,
no exato local onde ocorreu o crime tão cruel e brutal; e que na placa, ao pé
da estátua, conste este necessário esclarecimento: “Moïse Kabagambe
(1998-2022). Neste lugar, na noite do dia 24 de janeiro de 2022, Moïse
Kabagambe, nascido na República Democrática do Congo e refugiado no Brasil, foi
morto por meio cruel e sem chance de defesa em ato de selvageria e barbárie praticado
por Fábio Pirineus da Silva, Aleson Cristiano de Oliveira e Brendon Alexander
Luiz da Silva”, os tais “cidadãos de bem”, que, segundo a Polícia Civil, são os
autores do assassinato do congolês.
Quem se conforma com a onipresença
da “violência gratuita” deve compreender que o conformismo é ele mesmo um ato
de não resistência. E, onde não há resistência, o mal se instala por inteiro e
não reconhece autoridade nenhuma.
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