Por Sierra
Aconteceu de novo. Infeliz e
terrivelmente aconteceu de novo. Chuvas fortes atingiram Petrópolis e
provocaram dezenas de mortes. Aconteceu de novo. Triste e lamentavelmente
aconteceu de novo. Impetuosa e pavorosamente aconteceu de novo. Petrópolis, a
cidade imperial, voltou a contar mortos vitimados por temporais e a revirar
escombros em busca de desaparecidos. Aconteceu de novo e há de acontecer de
novo. E como me entristece e me revolta ter de escrever isso.
Não há empatia que consiga
fazer com que sintamos a dor e o sentimento de impotência que toma por inteiro
o outro. Quando eu era adolescente vi parte da casa de taipa onde eu morava, em
Abreu e Lima, desabar em decorrência das chuvas. Mais forte do que as imagens do
desmoronamento foi para mim o desespero que minha Mãe demonstrou na ocasião. Jamais
eu irei esquecerei isso. Atualmente eu moro num lugar que em outros tempos era
ocupado por vargens e terrenos alagados e pelo qual até hoje correm águas de uma
nascente. Na primeira vez que entrou água em nossa casa eu senti uma das
maiores angústias de toda a minha vida. A sensação de impotência é muito
grande; o drama se avoluma de um jeito que eu não sei dizer; e eu senti um medo
danado de que tudo aqui se perdesse, inclusive e principalmente, as nossas
vidas.
Faz alguns anos que eu
visitei Petrópolis. Como eu já disse noutras ocasiões, eu não visito cidades
com olhos de turista e sim de viajante; e viajantes costumam mirar cenários
para além das chamadas “atrações turísticas”. Dito isso, eu fiquei
impressionado ao ver tantas construções erguidas nos morros, tantas casas se
equilibrando em encostas e compreendi a dimensão dos riscos, recordei a
tragédia havida ali em 2011 e fiquei a imaginar que outras certamente
ocorreriam naquele lugar, porque, para mim, que moro na Região Metropolitana do
Recife, onde o inverno é chuvoso e repetidas vezes as chuvas provocam
deslizamentos de barreiras e mortes, aquele é um típico cenário para crônicas
de desgraças anunciadas. Não se pode pensar que será diferente no próximo temporal
rigoroso que vier se as circunstâncias, se as áreas muito inclinadas das serras permanecerem sendo irregularmente ocupadas.
Sempre que ocorrem
deslizamentos e destruição e perdas de vidas ocasionadas pelas chuvas, eu me
recordo da colaboração que o engenheiro e então secretário de Planejamento e
Coordenação da Prefeitura e presidente da Comissão Consultiva de Planejamento
Urbano de Petrópolis, Fernando Júdice da Motta Teixeira, fez ao seminário “O caminho
da preservação dos bens naturais e culturais – O estudo do caso Petrópolis”,
realizado entre os dias 19 e 23 de março de 1985 naquela cidade. Depois de
recuar no tempo e mencionar os inícios da cidade e o Plano Júlio Koeler para a Fazenda do Córrego Seco, por volta de
1843, que pretendia estabelecer uma colônia agrícola, e de dizer que o projeto
não prosperou voltado para a agricultura, porque a terra não se mostrou em
condições para que a colônia prosperasse, tendo dado lugar ao aparecimento das
primeiras indústrias caseiras, quando houve, então, pela primeira vez a
necessidade de preservação, porque se iniciava o desmatamento com vistas a
mandar madeira para a indústria de transformação, no Rio de Janeiro, Fernando
Júdice disse que o primeiro Código de Posturas da cidade surgiu em 1900,
objetivando exatamente preservar o plano inicial entrosando, portanto, a terra
com o homem e o planejamento com a preservação, algo que acabou desandando
porque, segundo ele, a expansão da então vila com vocação para centro
industrial e a proximidade com o Rio de Janeiro fizeram com que os
petropolitanos começassem a querer para Petrópolis parâmetros de cidade grande,
o que causou desajustes entre as coisas construídas e as coisas naturais, promovendo-se
mudanças nos códigos de Posturas e nos códigos de Obras. Dito isso, ele relatou
o seguinte:
O
processo continuou. A economia sempre desejável entre a locomoção da moradia ao
local de trabalho trouxe o homem ao centro da cidade, que se foi condensando e
expandindo para áreas inadequadas. Mais uma vez o planejamento urbano interveio
para preservar. Decreto do prefeito Paulo Rattes, assinado em 22 de junho de
1976, proibiu, no 1º Distrito, a execução de loteamentos. Nossas encostas
poderiam ser preservadas, já que todas aquelas de inclinação mais suaves já
haviam sido ocupadas, restando exatamente as de inclinação mais violenta, onde
os gastos, as obras e a interferência na natureza seriam maiores. Estava,
assim, sustada, no 1º Distrito a possibilidade de expansão, com a proteção de
nossas matas, de nossos mananciais e de nossas áreas verdes, diminuindo a
condução mais violenta e mais rápida das águas pluviais para o centro da
cidade, cujos efeitos todos nós presenciamos a cada verão, a cada temporal. Esse
decreto se fazia absolutamente indispensável porque era insustentável, já na
época, a ampliação dos loteamentos e das áreas destinadas à colocação da
população.
Nesse particular, gostaria de contar a vocês um fato vivenciado em época que trabalhávamos na Secretaria de Obras. Determinado engenheiro fora me contar que uma pessoa insistia muito em fazer sua residência num local em que, devido à declividade da encosta, a obra não seria permitida. Após vários encontros, em que o engenheiro sempre negava a possibilidade da construção, a pessoa sumiu. Exatamente num temporal daqueles, se não engano ocorrido em 1978, na área de Pedro do Rio e Itaipava, o engenheiro, fazendo as vistorias e o atendimento solicitados, encontrou aquela pessoa, que, no meio de um lamaçal e de escombros, procurava sua aliança, perdida com o escorregamento da encosta e a destruição de sua residência. E a pessoa disse: “Doutor, antes eu tivesse atendido a sua orientação”. O fato aconteceu exatamente em Pedro do Rio, numa área chamada Buracada, hoje em parte coberta pela estrada Rio-Juiz de Fora. Fatos como esse levaram a Secretaria de Obras, na época, a tentar mais uma vez preservar. Foi feito, através de decreto, um trabalho sobre a ocupação de encostas que, acredito, está até hoje sendo obedecido (Fernando Júdice da Motta Teixeira. “Planejamento e preservação”. In O caminho da preservação dos bens naturais e culturais – O estudo do caso Petrópolis. Petrópolis: Prefeitura Municipal de Petrópolis/Clube de Diretores Lojistas/Secretaria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, s. d., p. 52). Como claramente demonstraram as tragédias que ocorreram desde então, o planejamento não foi obedecido coisíssima nenhuma.
As tragédias sucessivamente
ocorrem e continuamos batendo na tecla da postergação e do depois damos um
jeito. A verdade é que não se dá jeito nisso. Não disponho de dados a esse respeito,
mas fico imaginando quantos imóveis foram construídos em áreas de risco nas
cidades serranas do Rio de Janeiro desde a catástrofe ocorrida por lá em 2011. Também
fico pensando no tamanho da demagogia de políticos que cerram os olhos para
ocupações desordenadas para não perder votos ao mesmo tempo em que nem ao menos
tratam de promover obras que possam minimizar os impactos e a dimensão das
tragédias que estão por vir.
Petrópolis, Recife,
Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Olinda, Ouro Preto... Não é difícil
encontrar nessas cidades – e elas são apenas uma pequeníssima porção de um todo
gigantesco – a permanência da degradação urbana que contribui para a ocorrência
de tragédias como a que mergulhou Petrópolis num mar de lama e de escombros
nesta semana. E a degradação urbana não se dá apenas na ocupação de morros e
serras; a degradação avança sobre rios e riachos, áreas de preservação, mangues
e planícies costeiras, como ocorre há tempos na Ilha de Itamaracá, onde eu
moro, e o poder público pouco ou nada faz para coibir o abuso e as invasões de
terra e promover o ordenamento ou o reordenamento urbano. E, todos nós sabemos que, nesses casos,
onde imperam o descaso e o pisoteamento da lei, tudo tende a descambar para a
degradação progressiva do meio ambiente.
Nós precisamos parar de vez
com a corrosiva e inadequada política do coitadismo. É preciso cruzar dados; é
preciso acompanhar as coisas de perto; é preciso fiscalizar. Nem todas as
pessoas que constroem moradias em áreas de risco estão no grupo de pobres e
miseráveis da população; há pessoas que fazem verdadeiros empreendimentos
imobiliários – vide o caso da Muzema, no Rio de Janeiro – para alugar nessas em
áreas, contando com a ausência e a inoperância do poder público; aqui e ali são
erguidas construções, às vezes com materiais de qualidade inferior, e mal
arquitetadas e estruturadas, sem que os agentes da Municipalidade passem nem
por perto.
Segundo o meu entendimento
não existe efetivamente uma área 100% segura onde possamos morar e dizer: “Olha,
aqui eu estou completamente protegido dos fenômenos naturais”; mas é fato que, ao
ocupar determinados espaços, como as áreas muito inclinadas dos morros e
regiões ribeirinhas, os riscos de que algo de ruim aconteça conosco em
decorrência de tempestades, por exemplo, é muito maior, muitíssimo maior do que
com quem mora em terrenos afastados de locais como esses.
Quem nada sabe de “estratégia
de sobrevivência” não consegue compreender o que leva um pobre coitado a erguer
sua morada em áreas de risco, contrariando não só o bom senso, mas também as
normas técnicas e as determinações para que os espaços não sejam ocupados. A lógica
dessa ocupação, apesar dos sérios riscos de desabamento em decorrência de
temporais, obedece ao entendimento de que as pessoas que as enfrentam não
querem morar em fins de mundo longe de seus locais de trabalho, dos serviços
públicos como escolas e hospitais e nem de comodidades como supermercados,
bancos, comércio em geral e divertimentos. Todo mundo quer bem viver, eis uma
verdade universal. Todos nós queremos ter facilidade para tocar as coisas da
vida prática.
Não enxergo um horizonte
benfazejo no futuro de nossas médias e grandes cidades. Com o crescimento
exponencial da população e o aumento considerável da quantidade de indivíduos
que não dispõem de recursos financeiros para obter uma moradia em local que não
seja tão vulnerável aos eventos naturais, tragédias como a que vimos nesta semana
em Petrópolis e, semanas atrás, em várias cidades da Bahia e de Minas Gerais,
ocorrerão cada vez com mais frequência. Aos que continuam a desdenhar do
aquecimento global e das mudanças climáticas que ele vem acarretando, a
natureza tem demonstrado que continuamos muitíssimo vulneráveis à sua força. E o elemento complicador dessa realidade é a constatação de que parece faltar, à maioria das Prefeituras Municipais deste país, o entendimento do que seja planejamento urbano. E a falta de um planejamento urbano bem estruturado e conduzido revela mazelas como a ocupação desordenada que dá ensejo a acontecimentos trágicos como o ocorrido em Petrópolis recentemente e em anos atrás.
Até o dia de hoje Petrópolis
contabilizou quase 150 mortos. Não há empatia que nos permita sentir a dor de
quem perdeu o seu lar e entes queridos nos deslizamentos e nas enxurradas e
que, além disso, não conseguiu ainda encontrar os corpos de tais pessoas. Muito,
muito triste e lamentável o que se tem visto na cidade imperial nos últimos
dias. Às comoções sazonais se somam os descasos permanentes do poder público. As
tragédias ocorrem, os mortos são recolhidos, os desaparecidos são esquecidos e
a vida segue frágil e vulnerável temendo a vinda do próximo temporal.
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