19 de fevereiro de 2022

Petrópolis: comoções sazonais e descasos permanentes

 Por Sierra

 

Foto: Marcos Serra Lima/G1
Até o dia de hoje Petrópolis contabilizou quase 150 mortos. Não há empatia que nos permita sentir a dor de quem perdeu o seu lar e entes queridos nos deslizamentos e nas enxurradas e que, além disso, não conseguiu ainda encontrar os corpos de tais pessoas. Muito, muito triste e lamentável o que se tem visto na cidade imperial nos últimos dias. Às comoções sazonais se somam os descasos permanentes do poder público. As tragédias ocorrem, os mortos são recolhidos, os desaparecidos são esquecidos e a vida segue frágil e vulnerável temendo a vinda do próximo temporal



Aconteceu de novo. Infeliz e terrivelmente aconteceu de novo. Chuvas fortes atingiram Petrópolis e provocaram dezenas de mortes. Aconteceu de novo. Triste e lamentavelmente aconteceu de novo. Impetuosa e pavorosamente aconteceu de novo. Petrópolis, a cidade imperial, voltou a contar mortos vitimados por temporais e a revirar escombros em busca de desaparecidos. Aconteceu de novo e há de acontecer de novo. E como me entristece e me revolta ter de escrever isso.

Não há empatia que consiga fazer com que sintamos a dor e o sentimento de impotência que toma por inteiro o outro. Quando eu era adolescente vi parte da casa de taipa onde eu morava, em Abreu e Lima, desabar em decorrência das chuvas. Mais forte do que as imagens do desmoronamento foi para mim o desespero que minha Mãe demonstrou na ocasião. Jamais eu irei esquecerei isso. Atualmente eu moro num lugar que em outros tempos era ocupado por vargens e terrenos alagados e pelo qual até hoje correm águas de uma nascente. Na primeira vez que entrou água em nossa casa eu senti uma das maiores angústias de toda a minha vida. A sensação de impotência é muito grande; o drama se avoluma de um jeito que eu não sei dizer; e eu senti um medo danado de que tudo aqui se perdesse, inclusive e principalmente, as nossas vidas.

Faz alguns anos que eu visitei Petrópolis. Como eu já disse noutras ocasiões, eu não visito cidades com olhos de turista e sim de viajante; e viajantes costumam mirar cenários para além das chamadas “atrações turísticas”. Dito isso, eu fiquei impressionado ao ver tantas construções erguidas nos morros, tantas casas se equilibrando em encostas e compreendi a dimensão dos riscos, recordei a tragédia havida ali em 2011 e fiquei a imaginar que outras certamente ocorreriam naquele lugar, porque, para mim, que moro na Região Metropolitana do Recife, onde o inverno é chuvoso e repetidas vezes as chuvas provocam deslizamentos de barreiras e mortes, aquele é um típico cenário para crônicas de desgraças anunciadas. Não se pode pensar que será diferente no próximo temporal rigoroso que vier se as circunstâncias, se as áreas muito inclinadas das serras permanecerem sendo irregularmente ocupadas.

Sempre que ocorrem deslizamentos e destruição e perdas de vidas ocasionadas pelas chuvas, eu me recordo da colaboração que o engenheiro e então secretário de Planejamento e Coordenação da Prefeitura e presidente da Comissão Consultiva de Planejamento Urbano de Petrópolis, Fernando Júdice da Motta Teixeira, fez ao seminário “O caminho da preservação dos bens naturais e culturais – O estudo do caso Petrópolis”, realizado entre os dias 19 e 23 de março de 1985 naquela cidade. Depois de recuar no tempo e mencionar os inícios da cidade e o Plano Júlio Koeler para a Fazenda do Córrego Seco, por volta de 1843, que pretendia estabelecer uma colônia agrícola, e de dizer que o projeto não prosperou voltado para a agricultura, porque a terra não se mostrou em condições para que a colônia prosperasse, tendo dado lugar ao aparecimento das primeiras indústrias caseiras, quando houve, então, pela primeira vez a necessidade de preservação, porque se iniciava o desmatamento com vistas a mandar madeira para a indústria de transformação, no Rio de Janeiro, Fernando Júdice disse que o primeiro Código de Posturas da cidade surgiu em 1900, objetivando exatamente preservar o plano inicial entrosando, portanto, a terra com o homem e o planejamento com a preservação, algo que acabou desandando porque, segundo ele, a expansão da então vila com vocação para centro industrial e a proximidade com o Rio de Janeiro fizeram com que os petropolitanos começassem a querer para Petrópolis parâmetros de cidade grande, o que causou desajustes entre as coisas construídas e as coisas naturais, promovendo-se mudanças nos códigos de Posturas e nos códigos de Obras. Dito isso, ele relatou o seguinte:

O processo continuou. A economia sempre desejável entre a locomoção da moradia ao local de trabalho trouxe o homem ao centro da cidade, que se foi condensando e expandindo para áreas inadequadas. Mais uma vez o planejamento urbano interveio para preservar. Decreto do prefeito Paulo Rattes, assinado em 22 de junho de 1976, proibiu, no 1º Distrito, a execução de loteamentos. Nossas encostas poderiam ser preservadas, já que todas aquelas de inclinação mais suaves já haviam sido ocupadas, restando exatamente as de inclinação mais violenta, onde os gastos, as obras e a interferência na natureza seriam maiores. Estava, assim, sustada, no 1º Distrito a possibilidade de expansão, com a proteção de nossas matas, de nossos mananciais e de nossas áreas verdes, diminuindo a condução mais violenta e mais rápida das águas pluviais para o centro da cidade, cujos efeitos todos nós presenciamos a cada verão, a cada temporal. Esse decreto se fazia absolutamente indispensável porque era insustentável, já na época, a ampliação dos loteamentos e das áreas destinadas à colocação da população.

Nesse particular, gostaria de contar a vocês um fato vivenciado em época que trabalhávamos na Secretaria de Obras. Determinado engenheiro fora me contar que uma pessoa insistia muito em fazer sua residência num local em que, devido à declividade da encosta, a obra não seria permitida. Após vários encontros, em que o engenheiro sempre negava a possibilidade da construção, a pessoa sumiu. Exatamente num temporal daqueles, se não engano ocorrido em 1978, na área de Pedro do Rio e Itaipava, o engenheiro, fazendo as vistorias e o atendimento solicitados, encontrou aquela pessoa, que, no meio de um lamaçal e de escombros, procurava sua aliança, perdida com o escorregamento da encosta e a destruição de sua residência. E a pessoa disse: “Doutor, antes eu tivesse atendido a sua orientação”. O fato aconteceu exatamente em Pedro do Rio, numa área chamada Buracada, hoje em parte coberta pela estrada Rio-Juiz de Fora. Fatos como esse levaram a Secretaria de Obras, na época, a tentar mais uma vez preservar. Foi feito, através de decreto, um trabalho sobre a ocupação de encostas que, acredito, está até hoje sendo obedecido (Fernando Júdice da Motta Teixeira. “Planejamento e preservação”. In O caminho da preservação dos bens naturais e culturais – O estudo do caso Petrópolis. Petrópolis: Prefeitura Municipal de Petrópolis/Clube de Diretores Lojistas/Secretaria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, s. d., p. 52). Como claramente demonstraram as tragédias que ocorreram desde então, o planejamento não foi obedecido coisíssima nenhuma.

As tragédias sucessivamente ocorrem e continuamos batendo na tecla da postergação e do depois damos um jeito. A verdade é que não se dá jeito nisso. Não disponho de dados a esse respeito, mas fico imaginando quantos imóveis foram construídos em áreas de risco nas cidades serranas do Rio de Janeiro desde a catástrofe ocorrida por lá em 2011. Também fico pensando no tamanho da demagogia de políticos que cerram os olhos para ocupações desordenadas para não perder votos ao mesmo tempo em que nem ao menos tratam de promover obras que possam minimizar os impactos e a dimensão das tragédias que estão por vir.

Petrópolis, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Olinda, Ouro Preto... Não é difícil encontrar nessas cidades – e elas são apenas uma pequeníssima porção de um todo gigantesco – a permanência da degradação urbana que contribui para a ocorrência de tragédias como a que mergulhou Petrópolis num mar de lama e de escombros nesta semana. E a degradação urbana não se dá apenas na ocupação de morros e serras; a degradação avança sobre rios e riachos, áreas de preservação, mangues e planícies costeiras, como ocorre há tempos na Ilha de Itamaracá, onde eu moro, e o poder público pouco ou nada faz para coibir o abuso e as invasões de terra e promover o ordenamento ou o reordenamento urbano. E, todos nós sabemos que, nesses casos, onde imperam o descaso e o pisoteamento da lei, tudo tende a descambar para a degradação progressiva do meio ambiente.

Nós precisamos parar de vez com a corrosiva e inadequada política do coitadismo. É preciso cruzar dados; é preciso acompanhar as coisas de perto; é preciso fiscalizar. Nem todas as pessoas que constroem moradias em áreas de risco estão no grupo de pobres e miseráveis da população; há pessoas que fazem verdadeiros empreendimentos imobiliários – vide o caso da Muzema, no Rio de Janeiro – para alugar nessas em áreas, contando com a ausência e a inoperância do poder público; aqui e ali são erguidas construções, às vezes com materiais de qualidade inferior, e mal arquitetadas e estruturadas, sem que os agentes da Municipalidade passem nem por perto.

Segundo o meu entendimento não existe efetivamente uma área 100% segura onde possamos morar e dizer: “Olha, aqui eu estou completamente protegido dos fenômenos naturais”; mas é fato que, ao ocupar determinados espaços, como as áreas muito inclinadas dos morros e regiões ribeirinhas, os riscos de que algo de ruim aconteça conosco em decorrência de tempestades, por exemplo, é muito maior, muitíssimo maior do que com quem mora em terrenos afastados de locais como esses.

Quem nada sabe de “estratégia de sobrevivência” não consegue compreender o que leva um pobre coitado a erguer sua morada em áreas de risco, contrariando não só o bom senso, mas também as normas técnicas e as determinações para que os espaços não sejam ocupados. A lógica dessa ocupação, apesar dos sérios riscos de desabamento em decorrência de temporais, obedece ao entendimento de que as pessoas que as enfrentam não querem morar em fins de mundo longe de seus locais de trabalho, dos serviços públicos como escolas e hospitais e nem de comodidades como supermercados, bancos, comércio em geral e divertimentos. Todo mundo quer bem viver, eis uma verdade universal. Todos nós queremos ter facilidade para tocar as coisas da vida prática.

Não enxergo um horizonte benfazejo no futuro de nossas médias e grandes cidades. Com o crescimento exponencial da população e o aumento considerável da quantidade de indivíduos que não dispõem de recursos financeiros para obter uma moradia em local que não seja tão vulnerável aos eventos naturais, tragédias como a que vimos nesta semana em Petrópolis e, semanas atrás, em várias cidades da Bahia e de Minas Gerais, ocorrerão cada vez com mais frequência. Aos que continuam a desdenhar do aquecimento global e das mudanças climáticas que ele vem acarretando, a natureza tem demonstrado que continuamos muitíssimo vulneráveis à sua força. E o elemento complicador dessa realidade é a constatação de que parece faltar, à maioria das Prefeituras Municipais deste país, o entendimento do que seja planejamento urbano. E a falta de um planejamento urbano bem estruturado e conduzido revela mazelas como a ocupação desordenada que dá ensejo a acontecimentos trágicos como o ocorrido em Petrópolis recentemente e em anos atrás.

Até o dia de hoje Petrópolis contabilizou quase 150 mortos. Não há empatia que nos permita sentir a dor de quem perdeu o seu lar e entes queridos nos deslizamentos e nas enxurradas e que, além disso, não conseguiu ainda encontrar os corpos de tais pessoas. Muito, muito triste e lamentável o que se tem visto na cidade imperial nos últimos dias. Às comoções sazonais se somam os descasos permanentes do poder público. As tragédias ocorrem, os mortos são recolhidos, os desaparecidos são esquecidos e a vida segue frágil e vulnerável temendo a vinda do próximo temporal.

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