Por Sierra
Fotos: Arquivo do Autor A carrocinha em ação no Largo da Gameleira. Bicho não é ser humano, mas precisa de humanos cuidados |
Uma das lembranças mais
antigas de minha infância é uma canção que diz assim: “A carrocinha pegou três
cachorros de uma vez/A carrocinha pegou três cachorros de uma vez/ Tra-lá-lá
que gente é essa? Tra-lá-lá que gente má...”. Eu cantava à beça essa cantiga;
e, a não ser na televisão, em desenhos animados e em filmes, eu cresci sem
nunca ter visto uma carrocinha pegando cachorros nas ruas; a mim me parecia
que, na verdade, se tratava de mais uma lenda urbana, como a Mulher do Algodão,
que diziam aparecer no banheiro da Escola Mário Domingues, onde eu estudei
durante quatro anos, em Abreu e Lima, e o Homem do Saco que, segundo
alardeavam, andava por aí, empunhando um saco comprido para pegar crianças
desobedientes e traquinas; esse Homem do Saco era uma espécie ou parente ou sei
lá o quê do Papa-figo.
No último dia 11 de janeiro
estava eu sentado na calçada do Centro Turístico Tambaú, na capital paraibana,
quando de repente não mais que de repente apareceu, imaginem, uma carrocinha,
que estacionou defronte ao Largo da Gameleira e dela desceram dois homens para
capturar – sob protestos de um indivíduo que também estava sentado na comprida
calçada onde eu me encontrava; o homem dizia coisas do tipo “Deixa ele aí,
enviados de Bolsonaro”, “Se fosse Lula não ia ser assim, não” e “Essa gente de Bolsonaro
é ruim mesmo” – um cão de cor preta que se deitara por ali; eu não sei dizer se
o animal estava doente; deve ter sido pego por estar solto naquele lugar.
Passeio pelo calçadão |
Acompanhei de longe a
captura do cachorro; e fiz alguns registros fotográficos do para mim até então
inédito acontecimento. Foi tudo tão rápido e preciso, como se fosse algo que
tivera sido encenado para alguma filmagem. Os homens puseram o cachorro num
compartimento do veículo e partiram naquele começo de tarde.
Nunca me acostumei e
acredito que eu jamais me acostumarei a ver animais domésticos, especialmente
cachorros, soltos pelas ruas, porque, para mim, além da possibilidade de
ataques, das fezes espalhadas por tudo quanto é canto e da disseminação de
doenças, como a raiva, tem o fato de que, se o animal está solto por aí, quando
deveria estar em uma casa, cabe à Municipalidade manter um serviço de
recolhimento e de abrigo para esses bichos; e fazer parcerias com organizações
não-governamentais que promovem adoção e militam pelo bem-estar dos animais. O que
não pode é vermos bichos vagando a esmo pelas ruas muitas vezes amedrontando as
pessoas e sendo eles mesmos vítimas de maus tratos, sem falar do risco de serem
atropelados. Bicho não é ser humano, mas precisa de humanos cuidados.
Naquele dia em que eu
presenciei a ação da carrocinha – e em outros nos quais passeei pela orla de
João Pessoa -, outros cães perambulavam naquela área como velhos conhecidos das
pessoas que frequentam aquele pedaço da cidade. Tão logo a carrocinha foi
embora, eu flagrei mais dois cachorros soltos em contraste com os encoleirados
que posudamente passavam por ali a passeio com os seus donos.
Na coleira e bem cuidado: deveria ser assim com todos |
Quem frequenta a orla de
João Pessoa, no trecho que vai do Largo da Gameleira até pelo menos o Largo do
Almirante Tamandaré, certamente já verificou que vários indivíduos moradores de
rua e/ou em condição de rua, “residem”, por assim dizer, por ali em condições
as mais precárias. Quem vê aquelas pessoas entre os quiosques e o movimentado e
disputado calçadão ocupado, sobretudo, por turistas, nota que entre os homens, mulheres
e crianças não raro há um ou mais de um cão a completar a família dos
desafortunados, o que diz muito do fato de existirem inúmeros cachorros soltos
pelo calçadão e a atravessar constantemente a autopista.
A mim me pareceu que aquele
indivíduo que ficou a xingar os homens da carrocinha era, também ele, um
morador de rua. Mais de uma vez eu flagrei por ali gente, gente, gente,
revirando sacos de lixo à procura do que comer - como na imagem do poema do meu
conterrâneo Manuel Bandeira. Nas cercanias do movimentado e badalado calçadão
de João Pessoa não são apenas cachorros que estão vivendo a esmo e
desamparados. Oxalá a Municipalidade não resolva instituir uma espécie de
carrocinha para removê-los dali, porque aquelas pessoas, porque aquela gente
precisa é de outras coisas; e gente, como diz Caetano Veloso, é para brilhar e
não para viver como bichos sem dono e não para morrer de fome.
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