19 de março de 2022

A carrocinha

 Por Sierra



Fotos: Arquivo do Autor
A carrocinha em ação no Largo da Gameleira. 
Bicho não é ser humano, mas precisa de humanos cuidados


Uma das lembranças mais antigas de minha infância é uma canção que diz assim: “A carrocinha pegou três cachorros de uma vez/A carrocinha pegou três cachorros de uma vez/ Tra-lá-lá que gente é essa? Tra-lá-lá que gente má...”. Eu cantava à beça essa cantiga; e, a não ser na televisão, em desenhos animados e em filmes, eu cresci sem nunca ter visto uma carrocinha pegando cachorros nas ruas; a mim me parecia que, na verdade, se tratava de mais uma lenda urbana, como a Mulher do Algodão, que diziam aparecer no banheiro da Escola Mário Domingues, onde eu estudei durante quatro anos, em Abreu e Lima, e o Homem do Saco que, segundo alardeavam, andava por aí, empunhando um saco comprido para pegar crianças desobedientes e traquinas; esse Homem do Saco era uma espécie ou parente ou sei lá o quê do Papa-figo.





No último dia 11 de janeiro estava eu sentado na calçada do Centro Turístico Tambaú, na capital paraibana, quando de repente não mais que de repente apareceu, imaginem, uma carrocinha, que estacionou defronte ao Largo da Gameleira e dela desceram dois homens para capturar – sob protestos de um indivíduo que também estava sentado na comprida calçada onde eu me encontrava; o homem dizia coisas do tipo “Deixa ele aí, enviados de Bolsonaro”, “Se fosse Lula não ia ser assim, não” e “Essa gente de Bolsonaro é ruim mesmo” – um cão de cor preta que se deitara por ali; eu não sei dizer se o animal estava doente; deve ter sido pego por estar solto naquele lugar.






Passeio pelo calçadão



Acompanhei de longe a captura do cachorro; e fiz alguns registros fotográficos do para mim até então inédito acontecimento. Foi tudo tão rápido e preciso, como se fosse algo que tivera sido encenado para alguma filmagem. Os homens puseram o cachorro num compartimento do veículo e partiram naquele começo de tarde.

Nunca me acostumei e acredito que eu jamais me acostumarei a ver animais domésticos, especialmente cachorros, soltos pelas ruas, porque, para mim, além da possibilidade de ataques, das fezes espalhadas por tudo quanto é canto e da disseminação de doenças, como a raiva, tem o fato de que, se o animal está solto por aí, quando deveria estar em uma casa, cabe à Municipalidade manter um serviço de recolhimento e de abrigo para esses bichos; e fazer parcerias com organizações não-governamentais que promovem adoção e militam pelo bem-estar dos animais. O que não pode é vermos bichos vagando a esmo pelas ruas muitas vezes amedrontando as pessoas e sendo eles mesmos vítimas de maus tratos, sem falar do risco de serem atropelados. Bicho não é ser humano, mas precisa de humanos cuidados.

Naquele dia em que eu presenciei a ação da carrocinha – e em outros nos quais passeei pela orla de João Pessoa -, outros cães perambulavam naquela área como velhos conhecidos das pessoas que frequentam aquele pedaço da cidade. Tão logo a carrocinha foi embora, eu flagrei mais dois cachorros soltos em contraste com os encoleirados que posudamente passavam por ali a passeio com os seus donos.


Na coleira e bem cuidado: deveria ser assim com todos



Quem frequenta a orla de João Pessoa, no trecho que vai do Largo da Gameleira até pelo menos o Largo do Almirante Tamandaré, certamente já verificou que vários indivíduos moradores de rua e/ou em condição de rua, “residem”, por assim dizer, por ali em condições as mais precárias. Quem vê aquelas pessoas entre os quiosques e o movimentado e disputado calçadão ocupado, sobretudo, por turistas, nota que entre os homens, mulheres e crianças não raro há um ou mais de um cão a completar a família dos desafortunados, o que diz muito do fato de existirem inúmeros cachorros soltos pelo calçadão e a atravessar constantemente a autopista.



A mim me pareceu que aquele indivíduo que ficou a xingar os homens da carrocinha era, também ele, um morador de rua. Mais de uma vez eu flagrei por ali gente, gente, gente, revirando sacos de lixo à procura do que comer - como na imagem do poema do meu conterrâneo Manuel Bandeira. Nas cercanias do movimentado e badalado calçadão de João Pessoa não são apenas cachorros que estão vivendo a esmo e desamparados. Oxalá a Municipalidade não resolva instituir uma espécie de carrocinha para removê-los dali, porque aquelas pessoas, porque aquela gente precisa é de outras coisas; e gente, como diz Caetano Veloso, é para brilhar e não para viver como bichos sem dono e não para morrer de fome.

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