5 de março de 2022

As cidades sob guerras

 Por Sierra

 

Foto: Jon Gerberg, Lindsey Sitz/The Washington Post
Cenário de destruição na cidade Bila Tserkva, na Ucrânia. As guerras mutilam pessoas e desgraçam milhares de vidas com seus horrores que apequenam e humilham a nossa existência, enevoando o futuro que planejamos. As guerras também mutilam e arrasam cidades. O rastro de destruição que mísseis e bombas deixam pelo caminho expõem a olhos vistos a vulnerabilidade à qual as cidades estão expostas durante as guerras. Os bombardeios atingem não só edificações, como também espaços de convívio, espaços de memórias e tradições, espaços de liturgias. As guerras arrasam cidades e por vezes destroem símbolos que nenhuma ação é capaz de reconstruir


Uma cidade não é somente um aglomerado de casas, prédios comerciais, templos religiosos e monumentos. Uma cidade não é apenas um traçado geométrico num amplo terreno onde se veem ruas, avenidas e espaços vazios. Uma cidade não se resume ao vai e vem de veículos e ao abrigo de pessoas. Uma cidade é uma construção histórico-social que, desde o seu surgimento, há milhares de anos, é como que o receptáculo, por assim dizer, de tudo o que a humanidade foi capaz de empreender para o bem e para o mal da vida em sociedade e do próprio espaço por ela ocupado.

No capítulo inicial do seu portentoso estudo A cidade na História, Lewis Mumford lançou várias indagações aos seus leitores; e numa delas perguntou o seguinte: “Existe ainda uma alternativa real a meio caminho entre Necrópolis e Utopia – a possibilidade de se construir um novo tipo de cidade que, livre das contradições interiores, enriquecerá e incentivará de maneira positiva o desenvolvimento humano?” (Lewis Mumford. A cidade na História: suas origens, transformações e perspectivas. 4ª ed. Trad. Neil R. da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 9). Mirar as cidades acompanhando sua evolução e todas as transformações e contradições que elas encerram nos faz ver que os movimentos que visam ao seu aperfeiçoamento não cessam de ser pensados, planejados e de alguma forma postos em práticas, num permanente e constante processo de avanço e recuo, construção e destruição.

As cidades acolhem e excluem pessoas. As cidades são, a um só tempo, fortalezas inexpugnáveis e espaços por demais vulneráveis: vulneráveis a eventos naturais, como chuvas e furacões; e vulneráveis a ações destrutivas dos homens que lançam sobre elas toda sorte de detritos, mísseis e bombas.

Venho acompanhando diariamente a ofensiva covarde da Rússia sobre a Ucrânia, aqui e ali me emocionando ao ver as imagens que mostram os cenários de destruição e o deslocamento em massa de milhares de pessoas. Inquieta-me o fato de que o espetáculo trágico e aterrador do conflito que ora opõe russos e ucranianos ganhe todos os espaços das mídias e não se fale dos conflitos que há anos vêm sendo travados no Iêmen, na Somália e na Síria; conflitos esses que alguns analistas chamam de “guerras esquecidas” pelo mundo ocidental. Por que essa midiatização 24 horas por dia da invasão russa da Ucrânia? É por que está ocorrendo nas fronteiras do “mundo realmente civilizado”, que é a Europa? Não vou discutir isso aqui porque eu não tenho cabedal para tanto e nem é essa a razão de ser deste artigo.

Inquieta-me também ver nas miríades de imagens que nos chegam dos ataques à Ucrânia, a destruição que estamos acompanhando do patrimônio edificado de várias cidades daquele país. As cenas que mostram mísseis atingindo prédios, edificações parcialmente destruídas e montanhas de escombros pelas ruas revelam que o poder de fogo é enorme e que os alvos parecem ser escolhidos de forma calculada e não de modo aleatório.

As guerras mutilam pessoas e desgraçam milhares de vidas com seus horrores que apequenam e humilham a nossa existência, enevoando o futuro que planejamos. As guerras também mutilam e arrasam cidades. O rastro de destruição que mísseis e bombas deixam pelo caminho expõem a olhos vistos a vulnerabilidade à qual as cidades estão expostas durante as guerras. Os bombardeios atingem não só edificações, como também espaços de convívio, espaços de memórias e tradições, espaços de liturgias. As guerras arrasam cidades e por vezes destroem símbolos que nenhuma ação é capaz de reconstruir.

As perdas materiais por que passaram as cidades europeias durante a Segunda Guerra Mundial foram superiores ao que foi verificado no conflito anterior. Nenhum outro país europeu contabilizou mais danos às suas cidades do que a Alemanha. Segundo Leonardo Benevolo, “quase todos os centros [alemães] de uma certa grandeza tiveram ao menos 50% de demolições, chegando a 70% em Colônia, 75% em Würzburg e ainda mais em Berlim, onde se pode dizer que a cidade anterior não mais existe e onde outras nascem trabalhosamente de suas ruínas a leste e a oeste” (Leonardo Benevolo. História da arquitetura moderna. 5ª ed. Trad. Ana M. Goldberg. São Paulo: Perspectiva, 2016, p. 684).

No breve e revelador diário que conseguiu manter durante o tempo em que integrou a Força Expedicionária Brasileira, que atuou na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, Sebastião Boanerges Ribeiro, um mineiro nascido em Piedade do Rio Grande, fez alguns registros sobre os estragos que os combates deixavam nas cidades onde ocorriam. No dia 6 de outubro de 1944 Sebastião Boanerges anotou:

Às 9h atracamos no porto de Nápoles. São indescritíveis as impressões que se tem ao ver os escombros deixados, aqui, pela guerra. Cidade favorita dos italianos, cheia de monumentos históricos, como ouvia dizer. Não é, porém, o que se encontra. Vi, desde a entrada do porto, os duros vestígios da guerra: navios afundados com cascos voltados para cima, mastros apontando aqui e acolá são documentos de grandes combates navais havidos no porto. A cidade apresenta um aspecto desolador. Grande número de casas em ruínas e outras tantas sem teto (Sebastião Boanerges Ribeiro. Diário de campanha. Belo Horizonte: Edição do Autor, 2002, p. 24-25).

Não se sabe até quando durará a guerra atualmente em curso na Ucrânia que tanto tem chamado a atenção de parte do mundo que teme pela escalada do conflito desencadeado pelo presidente Vladimir Putin; e que espera que não sejam repetidos em Kiev e Kharkiv ataques como os que arrasaram Hiroshima e Nagasaki, no Japão, durante a Segunda Guerra Mundial.

Sempre e sempre ocorrem inúmeras perdas durante as guerras; e as cidades, centros principais da ocupação humana, são os cenários mais atingidos e arrasados enquanto se desenrolam os conflitos. Num dos seus livros mais conhecidos Giulio Carlo Argan argumentou que “a cidade está para a sociedade assim como o objeto está para o indivíduo. A sociedade se reconhece na cidade como o indivíduo no objeto; a cidade, portanto, é um objeto de uso coletivo” (Giulio Carlo Argan. História da arte como história da cidade. 3ª ed.Trad. Pier Luigi Cabra. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 255). Enquanto os conflitos bélicos vão amesquinhando a ambição que parte da humanidade nutre de alcançar uma paz permanente entre as nações, as cidades, enquanto “objetos de uso coletivo”, vão sendo mutiladas e marcadas a ferro e fogo pelo que no ser humano é indiferença pelo sofrimento alheio, arrogância, prepotência e sede de poder tudo dominar.

Eu não aprecio guerras; eu, na verdade, tenho horror às guerras; e recorro aqui à escritora ucraniana naturalizada brasileira Clarice Lispector para dizer que “Eu que venho da dor de viver. E não a quero mais. Quero a vibração do alegre” (Clarice Lispector. Água viva. 7ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 16). E, por isso, eu repudio o míssil, a bomba e a indiferença para que não sejam esquecidas aquelas outras guerras que também estão mutilando e matando pessoas e devastando cidades no Iêmen, na Somália e na Síria.

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