Por Sierra
Uma cidade não é somente um
aglomerado de casas, prédios comerciais, templos religiosos e monumentos. Uma cidade
não é apenas um traçado geométrico num amplo terreno onde se veem ruas,
avenidas e espaços vazios. Uma cidade não se resume ao vai e vem de veículos e
ao abrigo de pessoas. Uma cidade é uma construção histórico-social que, desde o
seu surgimento, há milhares de anos, é como que o receptáculo, por assim dizer,
de tudo o que a humanidade foi capaz de empreender para o bem e para o mal da
vida em sociedade e do próprio espaço por ela ocupado.
No capítulo inicial do seu portentoso
estudo A cidade na História, Lewis
Mumford lançou várias indagações aos seus leitores; e numa delas perguntou o
seguinte: “Existe ainda uma alternativa real a meio caminho entre Necrópolis e
Utopia – a possibilidade de se construir um novo tipo de cidade que, livre das
contradições interiores, enriquecerá e incentivará de maneira positiva o
desenvolvimento humano?” (Lewis Mumford. A
cidade na História: suas origens, transformações e perspectivas. 4ª ed. Trad.
Neil R. da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 9). Mirar as cidades
acompanhando sua evolução e todas as transformações e contradições que elas
encerram nos faz ver que os movimentos que visam ao seu aperfeiçoamento não
cessam de ser pensados, planejados e de alguma forma postos em práticas, num
permanente e constante processo de avanço e recuo, construção e destruição.
As cidades acolhem e excluem
pessoas. As cidades são, a um só tempo, fortalezas inexpugnáveis e espaços por
demais vulneráveis: vulneráveis a eventos naturais, como chuvas e furacões; e vulneráveis
a ações destrutivas dos homens que lançam sobre elas toda sorte de detritos,
mísseis e bombas.
Venho acompanhando
diariamente a ofensiva covarde da Rússia sobre a Ucrânia, aqui e ali me emocionando
ao ver as imagens que mostram os cenários de destruição e o deslocamento em
massa de milhares de pessoas. Inquieta-me o fato de que o espetáculo trágico e
aterrador do conflito que ora opõe russos e ucranianos ganhe todos os espaços das
mídias e não se fale dos conflitos que há anos vêm sendo travados no Iêmen, na
Somália e na Síria; conflitos esses que alguns analistas chamam de “guerras
esquecidas” pelo mundo ocidental. Por que essa midiatização 24 horas por dia da
invasão russa da Ucrânia? É por que está ocorrendo nas fronteiras do “mundo
realmente civilizado”, que é a Europa? Não vou discutir isso aqui porque eu não
tenho cabedal para tanto e nem é essa a razão de ser deste artigo.
Inquieta-me também ver nas
miríades de imagens que nos chegam dos ataques à Ucrânia, a destruição que
estamos acompanhando do patrimônio edificado de várias cidades daquele país. As
cenas que mostram mísseis atingindo prédios, edificações parcialmente
destruídas e montanhas de escombros pelas ruas revelam que o poder de fogo é
enorme e que os alvos parecem ser escolhidos de forma calculada e não de modo
aleatório.
As guerras mutilam pessoas e
desgraçam milhares de vidas com seus horrores que apequenam e humilham a nossa
existência, enevoando o futuro que planejamos. As guerras também mutilam e
arrasam cidades. O rastro de destruição que mísseis e bombas deixam pelo
caminho expõem a olhos vistos a vulnerabilidade à qual as cidades estão
expostas durante as guerras. Os bombardeios atingem não só edificações, como
também espaços de convívio, espaços de memórias e tradições, espaços de
liturgias. As guerras arrasam cidades e por vezes destroem símbolos que nenhuma
ação é capaz de reconstruir.
As perdas materiais por que
passaram as cidades europeias durante a Segunda Guerra Mundial foram superiores
ao que foi verificado no conflito anterior. Nenhum outro país europeu
contabilizou mais danos às suas cidades do que a Alemanha. Segundo Leonardo
Benevolo, “quase todos os centros [alemães] de uma certa grandeza tiveram ao
menos 50% de demolições, chegando a 70% em Colônia, 75% em Würzburg e ainda
mais em Berlim, onde se pode dizer que a cidade anterior não mais existe e onde
outras nascem trabalhosamente de suas ruínas a leste e a oeste” (Leonardo
Benevolo. História da arquitetura moderna.
5ª ed. Trad. Ana M. Goldberg. São Paulo: Perspectiva, 2016, p. 684).
No breve e revelador diário
que conseguiu manter durante o tempo em que integrou a Força Expedicionária
Brasileira, que atuou na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, Sebastião Boanerges
Ribeiro, um mineiro nascido em Piedade do Rio Grande, fez alguns registros
sobre os estragos que os combates deixavam nas cidades onde ocorriam. No dia 6
de outubro de 1944 Sebastião Boanerges anotou:
Às 9h atracamos no porto de
Nápoles. São indescritíveis as impressões que se tem ao ver os escombros
deixados, aqui, pela guerra. Cidade favorita dos italianos, cheia de monumentos
históricos, como ouvia dizer. Não é, porém, o que se encontra. Vi, desde a
entrada do porto, os duros vestígios da guerra: navios afundados com cascos
voltados para cima, mastros apontando aqui e acolá são documentos de grandes
combates navais havidos no porto. A cidade apresenta um aspecto desolador. Grande
número de casas em ruínas e outras tantas sem teto (Sebastião Boanerges Ribeiro.
Diário de campanha. Belo Horizonte:
Edição do Autor, 2002, p. 24-25).
Não se sabe até quando
durará a guerra atualmente em curso na Ucrânia que tanto tem chamado a atenção
de parte do mundo que teme pela escalada do conflito desencadeado pelo
presidente Vladimir Putin; e que espera que não sejam repetidos em Kiev e
Kharkiv ataques como os que arrasaram Hiroshima e Nagasaki, no Japão, durante a
Segunda Guerra Mundial.
Sempre e sempre ocorrem
inúmeras perdas durante as guerras; e as cidades, centros principais da
ocupação humana, são os cenários mais atingidos e arrasados enquanto se
desenrolam os conflitos. Num dos seus livros mais conhecidos Giulio Carlo Argan
argumentou que “a cidade está para a sociedade assim como o objeto está para o
indivíduo. A sociedade se reconhece na cidade como o indivíduo no objeto; a
cidade, portanto, é um objeto de uso coletivo” (Giulio Carlo Argan. História da arte como história da cidade.
3ª ed.Trad. Pier Luigi Cabra. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 255). Enquanto
os conflitos bélicos vão amesquinhando a ambição que parte da humanidade nutre
de alcançar uma paz permanente entre as nações, as cidades, enquanto “objetos
de uso coletivo”, vão sendo mutiladas e marcadas a ferro e fogo pelo que no ser
humano é indiferença pelo sofrimento alheio, arrogância, prepotência e sede de
poder tudo dominar.
Eu não aprecio guerras; eu,
na verdade, tenho horror às guerras; e recorro aqui à escritora ucraniana
naturalizada brasileira Clarice Lispector para dizer que “Eu que venho da dor
de viver. E não a quero mais. Quero a vibração do alegre” (Clarice Lispector. Água
viva. 7ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 16). E, por isso, eu
repudio o míssil, a bomba e a indiferença para que não sejam esquecidas aquelas
outras guerras que também estão mutilando e matando pessoas e devastando cidades
no Iêmen, na Somália e na Síria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário