Por Sierra
No domingo passado, através
do jornal O Globo, a economista
Miriam Leitão divulgou uma mínima fração de áudios de sessões do Superior
Tribunal Militar (STM), que remontam ao período da Ditadura Militar (1964-1985)
– ou Revolução Militar, como preferem designar os áulicos do regime – que vêm,
já faz alguns anos, sendo examinados pelo historiador Carlos Fico.
Ninguém que já leu um bom
manual de História do Brasil, ninguém que tenha um mínimo de conhecimento sobre
o passado deste país ignora que, durante o tempo das trevas e da brutalidade
instituído pela Ditadura/Revolução Militar, as Forças Armadas protagonizaram práticas
de tortura as mais repulsivas e degradantes, brutais e ignominiosas contra os
chamados subversivos e inimigos do regime que, pelo senso comum dos militares,
eram todos, sem exceção, adeptos do comunismo.
Alicerçada e justificada
como uma verdadeira caça aos comunistas, a Santa Inquisição Militar montou verdadeiros
centros de tortura e de aviltamento e amesquinhamento da dignidade humana. O Estado
Nacional, personificado e/ou representado pelas Forças Armadas, em vez de
prender e conceder um julgamento conforme os ritos das leis aos ditos
subversivos, praticava as maiores atrocidades contra homens e mulheres com o
fito de que esses presos e torturados repassassem para as autoridades nomes de
outros subversivos e supostos planos de ação – roubos a bancos, sequestros,
etc. – que eles porventura estivessem articulando.
Quem defende a ação do
Estado Militar contra os tais comunistas, dizendo que se tratava de uma luta do
bem contra o mal, da ordem contra a desordem, da lei conta a bandidagem e da
democracia contra a ditadura comunista, passa por cima do claro entendimento de
que cabe ao Estado punir os infratores conforme os ditames das leis, porque as
leis foram e são criadas justamente para tirar e/ou frear nos seres humanos a
brutalidade e a animalidade que imperam num mundo ou numa terra sem leis. As leis,
os ritos processuais de julgamento e os tribunais, com todas as suas
instâncias, constituem, indiscutivelmente, pilares do chamado processo
civilizatório.
Dito isso, as sevícias e
toda sorte de torturas que os militares praticaram contra os nomeados “inimigos
do regime” nada têm de espírito democrático e muito menos se enquadram em
qualquer definição do que seja processo civilizatório. E, como para os agentes
da Ditadura/Revolução Militar sevícias e torturas muitas eram bobagens e/ou males
necessários, aos requintes de atrocidades e crueldades, eles juntavam a prática
de tirar a vida e de fazer desaparecer os corpos de pessoas que eles capturavam
e prendiam.
Digam-me: como pode alguém
bater a mão num peito estufado e cheio de medalhas e condecorações e dizer que
sente orgulho por tanta brutalidade, por tanta criminalidade e por tanta
desumanidade que praticou? Enquanto o senhor rir, general Hamilton Mourão, famílias
até hoje choram, porque nunca conseguiram encontrar os restos mortais dos seus
entes queridos, torturados e mortos durante a Ditadura/Revolução Militar.
Ao longo da semana eu
acompanhei os desdobramentos e a repercussão do que fora divulgado pela Miriam
Leitão que, como se sabe, foi presa e torturada pela Ditadura/Revolução Militar
– torturas essas que foram debochadas e menosprezadas pelo filho do homem, o
deputado federal Eduardo Bolsonaro.
Num país em que o presidente
da República é um desonroso e indisciplinado ex-integrante do Exército,
exaltador da tortura e de torturadores, incentivador de práticas que atentam
contra a saúde pública, defensor de política armamentista e exemplo cabal de
total incompatibilidade entre o cargo que ele ocupa e o que ele como pessoa é,
pensa e age e que está sempre fazendo agrados e tratando as Forças Armadas e as
forças auxiliares como seus protegidos para delas angariar apoio, a divulgação
dos áudios do STM soou, claro, como algo sem importância, porque, na mentalidade
doentia e perversa do senhor Jair Bolsonaro e dos seus seguidores, bem como do
grosso das Forças Armadas, durante a vigência da Ditadura/Revolução Militar, os
criminosos e inimigos da sociedade só se encontravam do lado de lá, do lado dos
subversivos.
Quando um membro do STM,
como o general Luís Carlos Gomes Mattos, seu presidente, vem a público, com seu
português claudicante, dizer que o que foi divulgado são fatos “tendenciosos” e
que visam “atingir as Forças Armadas” ele parece pensar que somos uns tremendos
de uns burrões, de uns estúpidos que pouco ou nada sabemos do que ocorreu nos
vinte e um longos e eternos anos que durou a Ditadura/Revolução Militar. Como assim
“tendenciosos”? Como assim “atingir as Forças Armadas”? Os áudios, senhor
general, com o perdão da redundância, falam por si só, não é a Miriam Leitão e
não é o Carlos Fico que podem ser ouvidos naquelas gravações. General, os
áudios em questão são de sessões do Superior Tribunal Militar; as vozes que se
ouvem neles são de ministros, general, de ministros que integravam aquela Corte
nos anos em que a prática de tortura era, por assim dizer, clandestinamente
institucionalizada pelo Estado brasileiro que, naquele tempo e como hoje, se
arvorava de ser defensor das leis e da vida.
Que o desgoverno e a própria
pessoa do senhor Jair Bolsonaro são uma aberração quem tem olhos para ver e
ouvidos para ouvir – ouvidos, senhor general Luís Carlos Gomes Mattos, ouvidos –
de há muito sabem. E, nesta semana, em que outra vez informações a respeito da
prática de sevícias e de torturas comandadas, imaginem, pelos denominados
defensores da ordem, da soberania e da democracia nacionais, vieram à baila,
Seu Jair deu mais uma prova de que acredita e defende que criminalidade e delinquência
só são criminalidade e delinquência quando praticadas por seus adversários
políticos, o que, diga-se de passagem, nisso ele não difere dos petistas e de
seus comparsas, que só se ofendem e se pronunciam quando roubos e outros crimes são praticados pelos seus
oponentes.
Inconformado e ao mesmo
tempo querendo afrontar os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que, na
quarta-feira, por absoluta maioria, condenaram por diversos crimes o delinquente,
o criminoso deputado federal Daniel Silveira, o tal dos colhões roxos, um
desonroso e indisciplinado ex-integrante da Polícia Militar do Rio de Janeiro, no
dia seguinte, em pleno feriado que celebra a figura do alferes e mártir Joaquim
José da Silva Xavier, o Tiradentes, que, como bem demonstrou José Murilo de
Carvalho no livro A formação das almas,
os militares transformaram em grande herói nacional, o senhor Jair Bolsonaro
concedeu indulto ao delinquente, ao criminoso deputado federal Daniel Silveira,
maculando o 21 de abril, doravante conhecido como o Dia do Indulto do
Delinquente.
Só para refrescar a pouca
memória ou a memória seletiva dos seguidores da aberração chamada Jair
Bolsonaro, não custa lembrar que o desgoverno do dito-cujo, que concedeu
indulto ao delinquente e criminoso deputado federal Daniel Silveira, que gravou
um vídeo repleto de ataques aos membros do STF, em geral, e ao ministro
Alexandre de Moraes, em particular, e que se tornou, acredito, uma das peças
que irão compor o Memorial Presidencial, enquadrou na Lei de Segurança Nacional
– na época o impetrante foi o então ministro da Justiça e Segurança Pública,
André Mendonça, o mesmo que foi indicado por Seu Jair para integrar o STF – o jornalista
Hélio Schwarstman, colunista da Folha de
S. Paulo, porque ele escreveu um artigo intitulado “Por que torço para que
Bolsonaro morra” e o também jornalista Ricardo Noblat, então colunista da
revista Veja, porque ele reproduziu
uma ilustração do cartunista Renato Aroeira que mostrava uma cruz vermelha, que
remete aos hospitais, cujas extremidades foram pintadas de preto, formando uma
suástica, aparecendo o presidente da República ao lado, segurando uma lata de
tinta preta, e na qual se lia “crime continuado” e “bora invadir outro?”, uma
referência às invasões a unidades de saúde praticadas por bolsonaristas. Na esteira
desses casos, o Desgoverno da Aberração promoveu uma verdadeira ofensiva contra
os seus críticos usando a tal da Lei de Segurança Nacional.
Num desgoverno ao qual não
faltam aberrações de todos os gêneros, matizes e tamanhos, as mais
aterrorizantes para mim são as bestas-feras, os sequazes, os cupinchas, os comparsas
e os mancomunados que se apresentam como fervorosos cristãos ao mesmo tempo em que
semeiam a discórdia e defendem a prática de tortura, o tiro na cabeça de
bandidos, a impiedade e por aí vai. Eu fico imaginando que esse tipo de gente
deve sentir um verdadeiro êxtase quando assiste às encenações da Paixão de
Cristo. A mim me parece que esses ditos cristãos, desses que se arvoram de ser
fervorosos cristãos saudosos da Ditadura/Revolução Militar, fazem o seguinte
raciocínio: Jesus Cristo foi preso, torturado e morto para salvar a humanidade;
os subversivos foram presos, torturados e mortos para salvar o Brasil do
comunismo. É tão bonito isso. Bonito, profundo e tocante.
O julgamento e o seguinte
indulto presidencial do delinquente e criminoso deputado federal Daniel
Silveira foram dois acontecimentos ímpares numa semana que começou com a
divulgação dos áudios do STM. No STF, o ministro Kassio Nunes Marques, outro
indicado à Suprema Corte por Seu Jair e que, meses atrás, acionou a
Procuradoria Geral da República contra o professor de direito constitucional da
USP e colunista da Folha de S. Paulo,
Conrado Hübner Mendes, por conta do artigo “O STF come o pão que o STF amassou”,
publicado em abril do ano passado, no qual criticou a decisão do ministro de
liberar a realização de cultos, missas e demais celebrações religiosas no país,
em meio a medidas restritivas por causa da pandemia de covid-19 - segundo o
senhor ministro, o professor teria cometido crimes de calúnia, difamação e
injúria -, assumiu o posto de defensor isolado do delinquente e criminoso
deputado federal Daniel Silveira, livrando-o da condenação, do delinquente e
criminoso que, entre outras barbaridades ditas no famigerado vídeo acima
referenciado, opinou pelo fechamento do STF. Ministro Kassio Nunes Marques, em
que mundo, em que planeta o senhor vive? Como é que o senhor inocenta alguém
que fez ataques e ameaças aos membros da Suprema Corte da qual a sua pessoa faz
parte? Não sei e nem quero saber como funciona a cabeça do senhor Kassio Nunes
Marques.
Já o ministro André
Mendonça, dando uma demonstração de quem parece que não sabe a dimensão do
cargo que ocupa, foi às redes sociais justificar para as milícias digitais
bolsonaristas o seu “voto de cristão” no caso do deputado. E ainda teve os
impolutos evangélicos, como o pastor Silas Malafaia, na defesa do delinquente e
criminoso deputado federal Daniel Silveira. Se realmente existe um inferno,
como os cristãos tanto anunciam, ele não deve ser diferente deste Desgoverno da
Aberração que está por aqui de fervorosos cristãos e fiéis seguidores
espalhados por tudo quanto é canto.
Por fim, não custa lembrar,
ainda tocando no assunto dos áudios do STM divulgados pela Miriam Leitão, que
os generais continuarão presos nos seus labirintos, sem encontrar, sem querer
encontrar uma saída na História, porque eles sabem que simplesmente negar o
passado não faz com que o passado deixe de existir. Talvez, num futuro, num
futuro distante, quando não mais estiverem andando por aí as múmias e os zumbis
remanescentes da Ditadura/Revolução Militar e não tivermos mais na presidência
da República um indivíduo da estirpe desse Jair Bolsonaro que aí está, as Forças
Armadas, enfim, reconhecerão os males que empreenderam e pedirão desculpas à
nação pelas atrocidades que praticaram durante aqueles anos; enquanto esse
tempo não chega – se é que chegará -, esses walking
deads fardados continuarão negando a prática das sevícias, das torturas,
dos homicídios e das ocultações de cadáveres que eles e os seus comandados
protagonizaram e/ou justificando o cometimento de tais atrocidades e
desumanidades como únicos meios de livrar o país do comunismo, esse mesmo
comunismo que está no cerne dos governos da China e da sanguinária Rússia de
Vladimir Putin aos quais o Desgoverno da Aberração abaixa a cabeça e lambe os
pés porque, em grande medida, depende economicamente deles. Mas é isso, cada
povo, cada sociedade e cada grupo – civil, militar ou religioso – têm o líder,
o pastor, o dirigente, o padre, o comandante e o chefe que merecem, porque se
reconhecem nele e no que ele pensa e faz.
É fato: nem toda desumanidade,
nem toda brutalidade será castigada. Mas não silenciemos, porque o silêncio
cúmplice da desumanidade e da brutalidade é ele mesmo um ato contra a dignidade
da pessoa humana.
PS – Ah, só para lembrar
aqui como um registro e não como nota de pesar: no último dia 15 morreu o
general Newton cruz.
Em verdade, em verdade vos
digo, o passado, por mais óbvio que isso seja, sempre começa no presente.
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