21 de maio de 2022

Crônicas de ônibus (IX)

 Por Sierra


Foto: Arquivo do Autor
 A Diva do Ônibus, com seu bustiê vistoso, com sua cabeleira volumosa e, sobretudo, com seu shortinho beira-sul provocante, a mim me pareceu que estava na vida inteiríssima e não era para brincadeira, não; era, isto sim, para viver a vida com força e com vontade.

 

Nada mais perverso e ameaçador do que um preconceituoso. Nada mais instigante e desafiador do que a resistência a um preconceituoso.

Ontem, à noite, no ônibus que saiu às 18h40 do terminal integrado de Igaraçu, cidade da Região Metropolitana do Recife,  com destino à Ilha de Itamaracá, que também fica no litoral norte pernambucano, eu assisti a uma dessas cenas dignas de registro, seja ele visual e/ou escrito. E foi uma pena que tendo eu me concentrado em registrar mentalmente o acontecimento sem pensar, ao menos conscientemente, em tomá-lo como matéria, como mote, como assunto para mais uma crônica, eu não tenha procurado fazer um bom registro fotográfico da personagem e ter perguntado a ela qual era o seu nome. Bom, caso esta crônica de alguma forma chegue àquela pessoa do ônibus de ontem à noite, acredito que ela se reconhecerá no registro fotográfico tosco que eu fiz, às escondidas, porque temi, confesso, que, vendo que eu a fotografava, ela pudesse me agredir e soltar os cachorros e outras coisas em cima de mim, pensando, com toda razão, dadas as maldades que proliferam nas redes sociais, que eu a fotografara para fazer deboche ou algo do tipo.

Exuberante e acompanhada de uma amiga que, no vuco-vuco  e no empurra-empurra do instante do embarque, acabou só conseguindo assento afastado dela e de lá, de onde estava, ficou a trocar figurinhas com ela, a Diva do Ônibus – vou chamá-la assim, já que eu não sei qual é o seu nome -, uma mulher trans bastante jovem e com um corpinho esbelto e bem à mostra – ela vestia o que me pareceu ser um bustiê e um shortinho preto e minúsculo, tipo beira-sul, daqueles que deixam a popa da bunda à vista  e que, ainda por cima, possuía um rasgão que acentuava suas nádegas – marcou a minha viagem de volta para casa.

A sua vasta cabeleira a mim me pareceu que era uma peruca ou aplique. Não vi bem o seu rosto; assim, eu não posso dizer se, aos meus olhos, ela era bonita ou feia. O fato, o principal é que ela existia e estava ali plena, pleníssima em corpo, alma, coração e várias tatuagens, como a de uma sereia numa das pernas. No bustiê vermelho havia uma espécie de pelúcia cor de rosa tão ou mais chamativa que a sua própria pessoa.

No instante em que ela se levantou e ficou de costas para mim, olhando pela janela do lado esquerdo, onde eu, ela e mais três marmanjos se encontravam, foi que eu a fotografei de modo apressado e precário. Depois, ela se levantou de novo, agora, para ir ter com a amiga – nesse instante é que eu deveria tê-la fotografado porque o enquadramento teria ficado perfeito. Bem, se a câmera do meu celular não a registrou como deveria, as minhas retinas fizeram isso; e na minha memória ela ficará para sempre sem correr o risco de o hard disk drive ser corrompido.

Enquanto esteve ali, a Diva do Ônibus causou sensação entre parte dos passageiros. Sim, ela motivou risos de escárnio, chacotas e frases do tipo “Isso é uma vergonha pras pessoas de bem que estão aqui”, como falou um meu conhecido. Eu ouvi isso e ri um pouco o meu risinho de reprovação contra os preconceituosos que se tem como gente de bem e falei: “Deixe ela”. Fosse uma “mulher de verdade”, como esse tipinho costuma dizer, uma “mulher boazuda”, uma “gostosona” trajando um bustiê e um shortinho daqueles será que os marmanjos que estavam ali, sentados ao meu lado, ririam e diriam coisas negativas a respeito? É, poderia ser que dissessem, mesmo porque, como diz uma máxima muito conhecida, quem desdenha quer comprar. Mas, é mais provável que os comentários deles fossem todos libidinosos. A testosterona certamente os deixaria excitados. Contudo, entretanto e todavia, o preconceituoso é seletivo; e, por vezes, se amolda às circunstâncias; e não é raro que o preconceituoso só ponha as manguinhas de fora quando está numa situação em que ele se sente seguro para exercer o seu papel, do contrário, ele fica calado, com o rabinho entre as pernas, remoendo o seu preconceito por dentro, com medo de se expressar, temendo a rebordosa, porque o preconceituoso é, a um só tempo, a criatura mais corajosa e a mais covarde que existe.

Alheia – ou, talvez, não – aos risinhos de escárnio, aos olhares de reprovação e às falas julgadoras e impiedosas, a Diva do Ônibus, com seu bustiê vistoso, com sua cabeleira volumosa e, sobretudo, com seu shortinho beira-sul provocante, a mim me pareceu que estava na vida inteiríssima e não era para brincadeira, não; era, isto sim, para viver a vida com força e com vontade.

Adoro gente cheia de si, que não está nem aí para os preconceituosos. Adoro gente que tem cara e coragem para se impor e dizer o que é e o que sente. Adoro gente que espezinha, que pisa com firmeza nos falsos moralismos e nos falsos pudores. Adoro gente que está cagando e andando para os preconceituosos. Adoro, enfim, gente que vive com entusiasmo e sofreguidão e com a mente e o coração abertos.

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