Por Sierra
Nada mais perverso e
ameaçador do que um preconceituoso. Nada mais instigante e desafiador do que a
resistência a um preconceituoso.
Ontem, à noite, no ônibus
que saiu às 18h40 do terminal integrado de Igaraçu, cidade da Região Metropolitana
do Recife, com destino à Ilha de
Itamaracá, que também fica no litoral norte pernambucano, eu assisti a uma
dessas cenas dignas de registro, seja ele visual e/ou escrito. E foi uma pena
que tendo eu me concentrado em registrar mentalmente o acontecimento sem
pensar, ao menos conscientemente, em tomá-lo como matéria, como mote, como
assunto para mais uma crônica, eu não tenha procurado fazer um bom registro
fotográfico da personagem e ter perguntado a ela qual era o seu nome. Bom, caso
esta crônica de alguma forma chegue àquela pessoa do ônibus de ontem à noite,
acredito que ela se reconhecerá no registro fotográfico tosco que eu fiz, às
escondidas, porque temi, confesso, que, vendo que eu a fotografava, ela pudesse
me agredir e soltar os cachorros e outras coisas em cima de mim, pensando, com
toda razão, dadas as maldades que proliferam nas redes sociais, que eu a
fotografara para fazer deboche ou algo do tipo.
Exuberante e acompanhada de
uma amiga que, no vuco-vuco e no
empurra-empurra do instante do embarque, acabou só conseguindo assento afastado
dela e de lá, de onde estava, ficou a trocar figurinhas com ela, a Diva do
Ônibus – vou chamá-la assim, já que eu não sei qual é o seu nome -, uma mulher
trans bastante jovem e com um corpinho esbelto e bem à mostra – ela vestia o
que me pareceu ser um bustiê e um shortinho preto e minúsculo, tipo beira-sul,
daqueles que deixam a popa da bunda à vista e que, ainda por cima, possuía um rasgão que
acentuava suas nádegas – marcou a minha viagem de volta para casa.
A sua vasta cabeleira a mim
me pareceu que era uma peruca ou aplique. Não vi bem o seu rosto; assim, eu não
posso dizer se, aos meus olhos, ela era bonita ou feia. O fato, o principal é
que ela existia e estava ali plena, pleníssima em corpo, alma, coração e várias
tatuagens, como a de uma sereia numa das pernas. No bustiê vermelho havia uma
espécie de pelúcia cor de rosa tão ou mais chamativa que a sua própria pessoa.
No instante em que ela se
levantou e ficou de costas para mim, olhando pela janela do lado esquerdo, onde
eu, ela e mais três marmanjos se encontravam, foi que eu a fotografei de modo
apressado e precário. Depois, ela se levantou de novo, agora, para ir ter com a
amiga – nesse instante é que eu deveria tê-la fotografado porque o enquadramento
teria ficado perfeito. Bem, se a câmera do meu celular não a registrou como
deveria, as minhas retinas fizeram isso; e na minha memória ela ficará para
sempre sem correr o risco de o hard disk
drive ser corrompido.
Enquanto esteve ali, a Diva
do Ônibus causou sensação entre parte dos passageiros. Sim, ela motivou risos
de escárnio, chacotas e frases do tipo “Isso é uma vergonha pras pessoas de bem
que estão aqui”, como falou um meu conhecido. Eu ouvi isso e ri um pouco o meu
risinho de reprovação contra os preconceituosos que se tem como gente de bem e
falei: “Deixe ela”. Fosse uma “mulher de verdade”, como esse tipinho costuma
dizer, uma “mulher boazuda”, uma “gostosona” trajando um bustiê e um shortinho
daqueles será que os marmanjos que estavam ali, sentados ao meu lado, ririam e
diriam coisas negativas a respeito? É, poderia ser que dissessem, mesmo porque,
como diz uma máxima muito conhecida, quem desdenha quer comprar. Mas, é mais
provável que os comentários deles fossem todos libidinosos. A testosterona certamente
os deixaria excitados. Contudo, entretanto e todavia, o preconceituoso é
seletivo; e, por vezes, se amolda às circunstâncias; e não é raro que o
preconceituoso só ponha as manguinhas de fora quando está numa situação em que
ele se sente seguro para exercer o seu papel, do contrário, ele fica calado,
com o rabinho entre as pernas, remoendo o seu preconceito por dentro, com medo
de se expressar, temendo a rebordosa, porque o preconceituoso é, a um só tempo,
a criatura mais corajosa e a mais covarde que existe.
Alheia – ou, talvez, não –
aos risinhos de escárnio, aos olhares de reprovação e às falas julgadoras e
impiedosas, a Diva do Ônibus, com seu bustiê vistoso, com sua cabeleira
volumosa e, sobretudo, com seu shortinho beira-sul provocante, a mim me pareceu
que estava na vida inteiríssima e não era para brincadeira, não; era, isto sim,
para viver a vida com força e com vontade.
Adoro gente cheia de si, que não está nem aí para os preconceituosos. Adoro gente que tem cara e coragem para se impor e dizer o que é e o que sente. Adoro gente que espezinha, que pisa com firmeza nos falsos moralismos e nos falsos pudores. Adoro gente que está cagando e andando para os preconceituosos. Adoro, enfim, gente que vive com entusiasmo e sofreguidão e com a mente e o coração abertos.
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