Por Sierra
Rio
de Janeiro, terça-feira, 24 de maio de 2022. Operação policial
na favela Vila Cruzeiro, no bairro da Penha, deixou um saldo de vinte e três mortos
entre, segundo o noticiário, criminosos e inocentes – e, ao fazer essa distinção
aqui, eu quero dizer que, no senso comum da sociedade brasileira, bandido não
precisa ser preso, julgado e condenado; ele só precisa ser morto, porque esse é
o nosso modelo de civilidade, porque foi assim que o nosso processo
civilizatório nos formou. Incluída entre as cinco mais letais operações
policiais ocorridas no Rio de Janeiro até hoje, essa que se verificou na Vila
Cruzeiro expôs mais uma vez ao país o quanto é difícil para a população, de um
modo geral, e para os moradores de favelas, em particular, conviver numa
realidade social onde os ditames da criminalidade põem todos a perigo,
principalmente quando as forças da ordem estabelecem como norte de efetividade
o confronto do matar ou morrer, sem recorrer a quaisquer outros meios visando
ao desmantelamento do aparelhamento das forças da desordem, ou seja, da
criminalidade, e ainda mais agora que o governo central apregoa que todos e
cada um de nós devemos possuir uma arma de fogo, para que partamos para o cada
um por si e para o todos contra todos.
Umbaúba,
quarta-feira, 25 de maio de 2022. Numa abordagem que foi
marcada por excessos, policiais imobilizaram um homem, aplicaram spray de pimenta em seus olhos, o algemaram, amarraram os pés dele, colocaram o indivíduo no porta-malas de uma viatura e, dentro do compartimento onde
ele se debatia, lançaram gás lacrimogêneo; e o que ocorreu depois disso foi um desses trágicos desfechos em que costumam resultar malfeitorias e barbaridades: o cidadão que fora detido por estar
circulando de moto sem fazer uso de capacete num trecho da BR 101 que cruza
aquela cidade sergipana, morreu asfixiado; e as imagens que registraram a ação policial
percorreram o mundo numa velocidade que nem radar do tipo Nasa conseguiria
captar, que dirá o de uma viatura policial.
Recife,
28 de maio de 2022. Na comunidade do Jardim Monte Verde, no
bairro do Ibura, vinte pessoas morreram vitimadas pelo deslizamento de uma
barreira devido às fortes chuvas que começaram a cair na capital pernambucana e
em sua Região Metropolitana desde a última segunda-feira. Num breve espaço de
tempo, uma avalanche de terra arrastou árvores e casas e causou a morte de duas
dezenas de pessoas no que é, até agora, o mais triste e lamentável episódio a
marcar o período chuvoso no Grande Recife neste ano, período chuvoso esse que
está ainda em seus começos.
O conjunto de imagens dos
acontecimentos, aqui descritos de modo por demais sucinto, revela um sem-número
de possibilidades de avaliações e de interpretações a depender do que se queira
delas extrair. Lancei para as imagens o meu olhar detido no que nelas é, sob a
minha ótica, um traço comum a uni-las: a fragilidade da vida, de maneira geral,
e a fragilidade da vida vulnerável, em particular. Nas tragédias aqui
mencionadas está muito claro e nítido para mim o peso da condição social como
um fator de risco para que a vida fique ainda mais exposta a perigos como a
brutalidade e o descaso institucionalizados e o extermínio puro e simples de
gente pobre e despossuída.
Dado o histórico de
morticínio que costuma marcar as operações policiais nas favelas do Rio de
Janeiro e em outras que existem aqui, ali e acolá, eu fico imaginando o nível
de pavor e de medo que acomete o cidadão de bem que vive nessas áreas, quando
policiais e criminosos entram em confronto e disparam para tudo quanto é lado. A
senha é matar ou morrer para os dois extremos. Enquanto que para o cidadão de
bem que ali reside e não tem como sair o que resta é torcer para escapar ileso
dos combates.
Não devem ser menores o
pavor e o medo que acometem os moradores de áreas de risco quando o tempo fecha
e chuvas fortes e prolongadas se põem a cair. Como conseguir dormir, como ficar
tranquilo enquanto a chuva cai, se, quanto mais ela cai, mais aumenta a
possibilidade de uma enxurrada invadir a casa e arrastar tudo, inclusive, o
único e verdadeiro bem que se tem, que é o próprio corpo, que é própria vida?
Será que, caso os policiais
não soubessem que o cidadão que não estava fazendo uso de capacete, lá em
Umbaúba, era esquizofrênico, teriam tratado de abordá-lo e de detê-lo de modo
diferente do que resultou naquela tragédia? Talvez sim. Talvez não. Não sei se
nos treinamentos que eles receberam em suas formações na corporação que
integram foi abordado algo do tipo. O que a mim me parece é que o caso não pode
ser tratado como uma mera fatalidade. Isso, de jeito nenhum.
Existe uma máxima popular
que diz que “a morte só quer uma desculpa”, que é um modo de dizer que da morte
ninguém consegue escapar. Para além da máxima popular e da constante luta pela
sobrevivência à qual se lançam muitas pessoas – luta essa na qual se inclui
morar, por falta de opção, em áreas de risco -, a cada vez que ocorrem
tragédias como as que foram aqui brevemente descritas, o poder público lança
mão de mil desculpas para justificar a sua inoperância, o seu descaso, a sua
indiferença, a sua brutalidade e a sua cultura do “depois a gente resolve isso”.
Quem apoia e toma como
apropriadas e legítimas práticas policiais como as verificadas nos episódios
aqui citados e quem diz que pessoas moram em morros e encostas arriscando a
vida porque querem, não sabe absolutamente nada de empatia e nem de
desigualdade social.
Vidas importam? Quais vidas
importam?!
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