4 de junho de 2022

Ainda as mortes causadas pelas chuvas de maio

 Por Sierra


Foto: Pedro Alves/G1
Local onde ocorreu o deslizamento de barreira na comunidade Jardim Monte Verde, no bairro do Ibura, no Recife.
 Não nos iludamos a ponto de pensar que choros, comoções sazonais e arrecadação de mantimentos e seja lá do que for irão mudar a vida das pessoas que moram em áreas de risco. Tão logo venha o estio, tão logo o sol apareça, a pobreza e a miséria continuarão pontuando os morros e os alagados numa incessante e por demais corajosa luta pela sobrevivência. Enquanto isso, nos gabinetes seguros, confortáveis e refrigerados das autoridades, decisões permanecerão sendo tomadas para que a realidade seja transformada de tal modo que continue exatamente como ela é e está
 

Não é preciso ser engenheiro, arquiteto e nem urbanista para que se olhe ao redor e se constate quão repletos de desarranjos e absurdos são os espaços citadinos que constituem este país. Não predominam em nossas cidades uma ordem urbanística. Muito pelo contrário. É a desordem em diferentes dimensões e, no geral, em elevados níveis, o que predominantemente caracteriza os centros urbanos e os seus arredores no Brasil.

Alicerçada numa lógica permissiva, irresponsável e perversa que, ao fim e ao cabo, pune, por vezes mortalmente, quem, por inúmeras razões, desobedece aos ditames das leis e das determinações e constrói moradias e estabelecimentos comerciais e outras edificações em áreas impróprias para ocupação de quaisquer tipos, o poder público não trata de coibir tais abusos e nem de manter a ordem ou uma ordem urbanística visando ao bem comum; ao bem comum e à segurança de moradia para todos os cidadãos. Códigos de Urbanismo e Obras existem, leis e mais leis de uso e ocupação do solo são criadas com o fito de orientar e disciplinar a expansão e/ou a manutenção das cidades e permanece imperando a desordem urbana.

Os temporais que recentemente atingiram o Recife, sua Região Metropolitana e a Zona da Mata pernambucana mais uma vez expuseram o flagelo da vulnerabilidade e da desigualdade social ao mesmo tempo em que deixaram, à vista de todos, a falta e/ou a ineficiência do poder público para lidar com a precariedade das condições de moradia em que se encontram milhares, milhões de pessoas. Precariedade essa que não só se resume ao local de risco onde cada um dos mortos residia, mas também à precariedade de existir e de viver em locais onde o abastecimento de água ou não existe ou é deficiente; onde o ônibus por vezes não chega; onde o posto de saúde pouco oferece; enfim, é uma existência, uma luta pelo direito de existir que é marcada por diversas carências.

Chuvas não só provocam deslizamentos de morros e barreiras. Chuvas provocam enchentes, enxurradas, alagamentos, afogamentos e destruição em vários locais das cidades, ainda que atinjam e provoquem mais estragos nas chamadas “áreas de risco”. Na minha casa entrou água nos dias 28 e 29 de maio; e a minha residência, na Ilha de Itamaracá, no litoral norte pernambucano, é, ela mesma, um exemplo do imperativo da desordem urbana que assola este país: minha casa e muitas outras que são dela vizinhas foram erguidas numa área pantanosa; e ainda por cima sufocando e estreitando a passagem de um córrego, escoadouro natural das águas. Ou seja, não poderia mesmo ser segura essa moradia e muito menos escapar ela dos fortes temporais. E ainda tem um agravante: o morro que fica nas suas proximidades e que até há poucos anos era coberto por uma bonita e densa vegetação que, de certa maneira, amenizava o impacto das chuvas, foi loteado e está já densamente ocupado por casas, sobretudo de veranistas.

Fazendo par com a vulnerabilidade e a precariedade social que assolam milhões de brasileiros e a ineficiência e a omissão do poder público para lidar com o imperativo da ordem visando ao bem comum e não apenas ao dos grupos x, y e z, está o comportamento muito, muito daninho que a sociedade brasileira, de maneira quase que geral, mantém para com o espaço público e para com a desordem. Somos, infelizmente, um povo que ainda apela demais para a infração como norte de vivência, seja em que nível e/ou escala social em que estejamos. É como se aceitássemos que tem de ser assim e que não há outro meio de se conseguir uma coisa e de se alcançar um objetivo. Quantos de nós, por exemplo, não emporcalha as ruas, não se preocupa com o destino do lixo e não está nem aí para o entupimento de canais e bueiros que esse lixo provocará e nem com os rios e mares que ele poluirá? Quantos de nós, mesmo tendo recursos para pagar a conta, julgamos que é tolice não furtar energia para que possamos manter mais aparelhos eletrônicos ligados e mesmo desperdiçarmos porque a conta não virá alta? Quantos de nós temos consciência de que pequenas ações erradas que fazemos diariamente em relação ao meio ambiente impactam e/ou podem impactar severamente o panorama de nossas cidades?

Nós vivemos sem pensar nas consequências das infrações que cometemos. Nós vivemos como se não houvesse amanhã. Daí por que pagamos o preço que pagamos pelo sem-número de estragos que, por exemplo, as chuvas provocam todos os anos em diferentes pontos do país, deixando em luto muitas famílias. Mas a dor e a consternação para a maioria logo passam; e nós voltamos a girar o círculo daninho dos tantos atos irresponsáveis que praticamos e que, diga-se de passagem, nem sempre são ocasionados pelo peso das condições e das circunstâncias nas quais vivemos e sim pela nossa corrupção moral.

Agora mesmo em que cidades pernambucanas choram os seus 128 mortos vitimados pelas chuvas de maio, veio à tona que Prefeituras Municipais, Prefeituras Municipais de pequenas cidades do país – algumas, inclusive, que estão em situação de emergência em virtude de danos causados, vejam só, por chuvas, como é o caso da baiana Teolândia que, apenas a um cantor pagará R$ 704.000,00 por uma apresentação num Festival da Banana que começa hoje -, pagam cachês astronômicos a cantores para fazer festinhas para o povo dentro da velha lição do pão e circo que marca administrações municipais abarrotadas de deficiências estruturais de todo tipo. Parafraseando uma conhecida canção, a gente não quer só moradia segura, segurança pública e educação, a gente também quer “comida, diversão e arte”; mas promove-se a política do pão e circo retirando recursos de necessidades mais urgentes; promove-se a política do pão e circo para fazer de conta que tudo vai bem, obrigado; promove-se a política de pão e circo enquanto, por exemplo, deixa-se de lado o planejamento urbano e a promoção do saneamento básico, o gravíssimo problema dos lixões e a melhoria das escolas e da qualidade do ensino.

Embora tenha havido, de fato, uma ampla política habitacional neste país, caso do Minha Casa, Minha Vida, uma política habitacional objetivando alcançar os estratos mais baixos das classes sociais, que são aqueles que, por falta de recursos e de opção segura, se amontoam nos morros, se equilibram em palafitas e se abrigam sob viadutos e marquises, ela não foi continuada. E, dado o empobrecimento da população, o que mais se viu por aqui e alhures nos últimos anos – como, aliás, em outros momentos de nossa História – foram ações de expulsão dos “indesejáveis” de espaços urbanos revitalizados, obrigando os despossuídos a buscarem áreas desprezadas e/ou esquecidas, por assim dizer, pelo poder econômico e pela especulação imobiliária; uma solução covarde e drástica, ainda mais quando se considera o expressivo aumento da população, em geral, e do contingente de pobres e miseráveis, em particular. Um problema secular, como é o do déficit habitacional, não se resolve no espaço de poucos anos.

Falta-nos muita coisa: planejamento familiar; planejamento urbano; saneamento básico; cuidado com o meio ambiente; segurança alimentar; segurança pública; educação de modo geral, o que inclui a educação patrimonial, etc., etc., etc. Desprezamos o futuro do mesmo modo que desprezamos o nosso passado; razão pela qual estamos continuamente repetindo erros e assistindo à ocorrência de tragédias que estão muito longe de ser fatalidades.

De alguma forma, cada uma das 128 mortes causadas pelas chuvas aqui em Pernambuco – no Brasil como um todo, segundo o levantamento da Confederação Nacional dos Municípios, só neste ano, já são quase quinhentas vítimas – é o reflexo da incapacidade do poder público de manter na ordem do dia políticas que visem a pelo menos tornar menos letais, isso mesmo, tornar menos letais as tragédias que se repetem ano após ano nos morros do Recife, de Salvador, de Belo Horizonte, de Petrópolis e em outros tantos por aí, porque ninguém imagine que essas áreas serão desocupadas em algum momento.

Não nos iludamos a ponto de pensar que choros, comoções sazonais e arrecadação de mantimentos e seja lá do que for irão mudar a vida das pessoas que moram em áreas de risco. Tão logo venha o estio, tão logo o sol apareça, a pobreza e a miséria continuarão pontuando os morros e os alagados numa incessante e por demais corajosa luta pela sobrevivência. Enquanto isso, nos gabinetes seguros, confortáveis e refrigerados das autoridades, decisões permanecerão sendo tomadas para que a realidade seja transformada de tal modo que continue exatamente como ela é e está.

Um comentário:

  1. Até quando a sociedade irá sofrer por tamanho descaso que é a falta de moradia digna com segurança ? Garantia esta constitucional pelo estado de direito. O descaso do poder público é omisso e negligente e isso se reflete todos os anos nos chamados desastres naturais, que de natural nada tem. A falta de infraestrutura desordenada mata todos os anos milhares de brasileiros, fruto de má gestão enraizada na fatídica pilotagem desse país. As eleições bate a sua porta e os mesmos personages usufrui de boa vida e castelos indestrutíveis a custas de um povo escravizado. " A pátria amada Brasil"...

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