Por Sierra
Não é preciso ser
engenheiro, arquiteto e nem urbanista para que se olhe ao redor e se constate
quão repletos de desarranjos e absurdos são os espaços citadinos que constituem
este país. Não predominam em nossas cidades uma ordem urbanística. Muito pelo
contrário. É a desordem em diferentes dimensões e, no geral, em elevados
níveis, o que predominantemente caracteriza os centros urbanos e os seus
arredores no Brasil.
Alicerçada numa lógica
permissiva, irresponsável e perversa que, ao fim e ao cabo, pune, por vezes
mortalmente, quem, por inúmeras razões, desobedece aos ditames das leis e das
determinações e constrói moradias e estabelecimentos comerciais e outras
edificações em áreas impróprias para ocupação de quaisquer tipos, o poder
público não trata de coibir tais abusos e nem de manter a ordem ou uma ordem
urbanística visando ao bem comum; ao bem comum e à segurança de moradia para
todos os cidadãos. Códigos de Urbanismo e Obras existem, leis e mais leis de
uso e ocupação do solo são criadas com o fito de orientar e disciplinar a
expansão e/ou a manutenção das cidades e permanece imperando a desordem urbana.
Os temporais que recentemente
atingiram o Recife, sua Região Metropolitana e a Zona da Mata pernambucana mais
uma vez expuseram o flagelo da vulnerabilidade e da desigualdade social ao
mesmo tempo em que deixaram, à vista de todos, a falta e/ou a ineficiência do
poder público para lidar com a precariedade das condições de moradia em que se
encontram milhares, milhões de pessoas. Precariedade essa que não só se resume
ao local de risco onde cada um dos mortos residia, mas também à precariedade de
existir e de viver em locais onde o abastecimento de água ou não existe ou é
deficiente; onde o ônibus por vezes não chega; onde o posto de saúde pouco
oferece; enfim, é uma existência, uma luta pelo direito de existir que é
marcada por diversas carências.
Chuvas não só provocam
deslizamentos de morros e barreiras. Chuvas provocam enchentes, enxurradas,
alagamentos, afogamentos e destruição em vários locais das cidades, ainda que
atinjam e provoquem mais estragos nas chamadas “áreas de risco”. Na minha casa
entrou água nos dias 28 e 29 de maio; e a minha residência, na Ilha de
Itamaracá, no litoral norte pernambucano, é, ela mesma, um exemplo do
imperativo da desordem urbana que assola este país: minha casa e muitas outras
que são dela vizinhas foram erguidas numa área pantanosa; e ainda por cima
sufocando e estreitando a passagem de um córrego, escoadouro natural das águas.
Ou seja, não poderia mesmo ser segura essa moradia e muito menos escapar ela
dos fortes temporais. E ainda tem um agravante: o morro que fica nas suas
proximidades e que até há poucos anos era coberto por uma bonita e densa
vegetação que, de certa maneira, amenizava o impacto das chuvas, foi loteado e
está já densamente ocupado por casas, sobretudo de veranistas.
Fazendo par com a vulnerabilidade
e a precariedade social que assolam milhões de brasileiros e a ineficiência e a
omissão do poder público para lidar com o imperativo da ordem visando ao bem
comum e não apenas ao dos grupos x, y e z, está o comportamento muito, muito
daninho que a sociedade brasileira, de maneira quase que geral, mantém para com
o espaço público e para com a desordem. Somos, infelizmente, um povo que ainda
apela demais para a infração como norte de vivência, seja em que nível e/ou
escala social em que estejamos. É como se aceitássemos que tem de ser assim e
que não há outro meio de se conseguir uma coisa e de se alcançar um objetivo. Quantos
de nós, por exemplo, não emporcalha as ruas, não se preocupa com o destino do
lixo e não está nem aí para o entupimento de canais e bueiros que esse lixo
provocará e nem com os rios e mares que ele poluirá? Quantos de nós, mesmo
tendo recursos para pagar a conta, julgamos que é tolice não furtar energia
para que possamos manter mais aparelhos eletrônicos ligados e mesmo
desperdiçarmos porque a conta não virá alta? Quantos de nós temos consciência
de que pequenas ações erradas que fazemos diariamente em relação ao meio
ambiente impactam e/ou podem impactar severamente o panorama de nossas cidades?
Nós vivemos sem pensar nas consequências
das infrações que cometemos. Nós vivemos como se não houvesse amanhã. Daí por
que pagamos o preço que pagamos pelo sem-número de estragos que, por exemplo,
as chuvas provocam todos os anos em diferentes pontos do país, deixando em luto
muitas famílias. Mas a dor e a consternação para a maioria logo passam; e nós
voltamos a girar o círculo daninho dos tantos atos irresponsáveis que
praticamos e que, diga-se de passagem, nem sempre são ocasionados pelo peso das
condições e das circunstâncias nas quais vivemos e sim pela nossa corrupção
moral.
Agora mesmo em que cidades
pernambucanas choram os seus 128 mortos vitimados pelas chuvas de maio, veio à
tona que Prefeituras Municipais, Prefeituras Municipais de pequenas cidades do
país – algumas, inclusive, que estão em situação de emergência em virtude de
danos causados, vejam só, por chuvas, como é o caso da baiana Teolândia que,
apenas a um cantor pagará R$ 704.000,00 por uma apresentação num Festival da Banana que começa hoje -,
pagam cachês astronômicos a cantores para fazer festinhas para o povo dentro da
velha lição do pão e circo que marca administrações municipais abarrotadas de
deficiências estruturais de todo tipo. Parafraseando uma conhecida canção, a
gente não quer só moradia segura, segurança pública e educação, a gente também
quer “comida, diversão e arte”; mas promove-se a política do pão e circo
retirando recursos de necessidades mais urgentes; promove-se a política do pão
e circo para fazer de conta que tudo vai bem, obrigado; promove-se a política
de pão e circo enquanto, por exemplo, deixa-se de lado o planejamento urbano e
a promoção do saneamento básico, o gravíssimo problema dos lixões e a melhoria
das escolas e da qualidade do ensino.
Embora tenha havido, de
fato, uma ampla política habitacional neste país, caso do Minha Casa, Minha Vida, uma política habitacional objetivando
alcançar os estratos mais baixos das classes sociais, que são aqueles que, por
falta de recursos e de opção segura, se amontoam nos morros, se equilibram em
palafitas e se abrigam sob viadutos e marquises, ela não foi continuada. E,
dado o empobrecimento da população, o que mais se viu por aqui e alhures nos
últimos anos – como, aliás, em outros momentos de nossa História – foram ações
de expulsão dos “indesejáveis” de espaços urbanos revitalizados, obrigando os
despossuídos a buscarem áreas desprezadas e/ou esquecidas, por assim dizer, pelo
poder econômico e pela especulação imobiliária; uma solução covarde e drástica,
ainda mais quando se considera o expressivo aumento da população, em geral, e
do contingente de pobres e miseráveis, em particular. Um problema secular, como
é o do déficit habitacional, não se resolve no espaço de poucos anos.
Falta-nos muita coisa:
planejamento familiar; planejamento urbano; saneamento básico; cuidado com o
meio ambiente; segurança alimentar; segurança pública; educação de modo geral,
o que inclui a educação patrimonial, etc., etc., etc. Desprezamos o futuro do
mesmo modo que desprezamos o nosso passado; razão pela qual estamos
continuamente repetindo erros e assistindo à ocorrência de tragédias que estão
muito longe de ser fatalidades.
De alguma forma, cada uma
das 128 mortes causadas pelas chuvas aqui em Pernambuco – no Brasil como um
todo, segundo o levantamento da Confederação Nacional dos Municípios, só neste
ano, já são quase quinhentas vítimas – é o reflexo da incapacidade do poder
público de manter na ordem do dia políticas que visem a pelo menos tornar menos
letais, isso mesmo, tornar menos letais as tragédias que se repetem ano após
ano nos morros do Recife, de Salvador, de Belo Horizonte, de Petrópolis e em
outros tantos por aí, porque ninguém imagine que essas áreas serão desocupadas
em algum momento.
Não nos iludamos a ponto de
pensar que choros, comoções sazonais e arrecadação de mantimentos e seja lá do
que for irão mudar a vida das pessoas que moram em áreas de risco. Tão logo
venha o estio, tão logo o sol apareça, a pobreza e a miséria continuarão
pontuando os morros e os alagados numa incessante e por demais corajosa luta
pela sobrevivência. Enquanto isso, nos gabinetes seguros, confortáveis e
refrigerados das autoridades, decisões permanecerão sendo tomadas para que a
realidade seja transformada de tal modo que continue exatamente como ela é e
está.
Até quando a sociedade irá sofrer por tamanho descaso que é a falta de moradia digna com segurança ? Garantia esta constitucional pelo estado de direito. O descaso do poder público é omisso e negligente e isso se reflete todos os anos nos chamados desastres naturais, que de natural nada tem. A falta de infraestrutura desordenada mata todos os anos milhares de brasileiros, fruto de má gestão enraizada na fatídica pilotagem desse país. As eleições bate a sua porta e os mesmos personages usufrui de boa vida e castelos indestrutíveis a custas de um povo escravizado. " A pátria amada Brasil"...
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