Por Sierra
Construída com a frente e a lateral direita voltadas para a Rua da Conceição e a parte de trás voltada para a Rua Manoel Borba, a Igreja de Santa Cecília integra o rico acervo eclesiástico do bairro da Boa Vista, área central do Recife. A sua localização é privilegiada, visto que ela está enquadrada num recanto dos mais pitorescos daquele bairro, que é o entorno da Praça Maciel Pinheiro, praça essa onde a então menina Clarice Lispector morou num sobrado e dele ela via um pedaço do Recife fervilhar numa localidade que contava com a presença maciça de judeus comerciantes e moradores.
Pouca gente sabe que foi no
espaço em que está situada a Igreja de Santa Cecília e em seu entorno que
teve início, em fins do século XVII, a projeção populacional do bairro da Boa Vista. Conta-nos Flávio Guerra, o combatente historiador pernambucano,
recorrendo a esse mestre de todos nós que é Francisco Augusto Pereira da Costa,
que este disse ter visto uma escritura datada de 19 de agosto de 1683, lavrada
por Francisco Dias de Leão, tabelião da vila de Igaraçu, segundo a qual o
capitão Miguel Rodrigues Sepúlveda vendera ao capitão Filipe Santiago “um sítio
de terras de sua propriedade, defronte de N. S. do Carmo da Boa Vista, da outra
banda do rio, junto à ponte onde tinha uma casa de sobrado, com árvores e
quatrocentos pés de coqueiros de frutos, ou os que na verdade se achassem cujas
terras comprara o referido capitão Sepúlveda a Francisco Rodrigues, genro do
mestre-de-campo Henrique Dias, e ficavam encravadas na data que a este fora
feita pelo governador e capitão-general de Pernambuco, Francisco Barreto, em
1658, compreendendo todo o bairro da Boa Vista, junto do rio Capibaribe até a ilha
de Santo Antônio” (Apud. Flávio Guerra. Velhas
igrejas e subúrbios históricos. Recife: Departamento de Documentação e
Cultura/Prefeitura Municipal do Recife, 1961, p, 97-98).
Vista da Igreja de Santa Cecília a partir do outro lado da Rua da Conceição, onde foram instalados alguns quiosques. Vê-se nesta fotografia a superabundância de fios dos postes |
Por razões que são
desconhecidas, apenas dois dias depois daquela operação de compra e venda, o
capitão Filipe Santiago e sua esposa Dona Lourença Maciel de Andrade revenderam
as terras, sendo comprador o capitão-mor Cristóvão de Barros Rêgo, na pessoa do
seu procurador Luís Rodrigues de Araújo. Esse novo proprietário fez erguer uma
capela dedicada à Nossa Senhora da Conceição, localizando-a defronte à sua
casa, dentro daquele coqueiral referido na escritura, vindo daí a denominação
histórica Capela de Nossa Senhora da Conceição dos Coqueiros, situada
justamente onde atualmente se acha a Rua da Conceição, que conservou a
referência àquela santa.
De acordo com Flávio Guerra
não se sabe exatamente a data de fundação da dita capela; mas, de novo
recorrendo a Pereira da Costa, ele nos diz que esse pesquisador encontrou o
testamento do capitão-mor Cristóvão de Barros Rêgo, falecido em 1694, do qual o
autor dos Anais Pernambucanos copiou o seguinte trecho: “'O sítio da Boa Vista,
no qual havia fundado a dita capela, com todas as casas e escravos e árvores e
mais dois mil cruzados em dinheiro para se pôr a juros, etc.’” (Apud. Flávio
Guerra. Op. cit., p. 98).
Era entre essas árvores que ladeiam o templo católico que durante muitos anos figuravam barracas enfeando e emasculando o monumento |
Não exagerou o autor de
Crônicas do velho Recife quando destacou o papel da Capela de Nossa Senhora da
Conceição como catalizadora da projeção populacional de um primitivo bairro da
Boa Vista – e no início a denominação correta era Aterro da Boa Vista, começando na atual Rua Imperatriz Tereza Cristina -; tão
pouco disse algo desmedido quando destacou que “a capela é o símbolo histórico brasileiro de iniciação
populacional”, porque todos nós, que
lidamos com os estudos das formações dos núcleos urbanos originados no Período
Colonial, sabemos que, não raro, foi a partir da construção de uma capela, de uma
igreja ou de outro símbolo eclesiástico que inúmeros povoados e vilas surgiram
por este país afora. A esse respeito Aroldo de Azevedo, abordando os primeiros
núcleos de povoamento que foram surgindo no Brasil, escreveu: “A capela tosca
estava sempre presente, assegurando a estabilidade do núcleo urbano nascente e
servindo de elo permanente para sua escassa população” (Aroldo de Azevedo. Vilas e cidades do Brasil Colonial – Ensaio
de Geografia Urbana Retrospectiva. Boletim nº 28 – Geografia nº 11. São
Paulo: Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
1956, p. 10).Nelson Omegna destacou que "No coração das vilas, a Igreja marca o ponto alto da vida comunal. Edificação quase sempre grandiosa, em contraste com o casario modesto, esparramado, torna-se o centro de gravidade do povoado, realizando duplo movimento de centralização, no princípio, e depois, de descentralização urbana" (Nelson Omegna. A cidade colonial. 2ª ed. Brasília: EBRASA-MEC, 1971, p. 23). E por que isso? Porque, como observou Paulo Santos, "A Igreja [era a instituição] a que todos davam assistência e que no seu cerimonial a todos unia. Religião: fator de aglutinação. Além da missa, festas, procissões. Mais tarde: as ordens terceiras e irmandades. O sino, sublinhando os atos mais importantes da vida cotidiana: o casamento, a morte etc." (Paulo Santos. Formação de cidades no Brasil Colonial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Iphan, 2008, p. 23). Já Murillo Marx, ao abordar a influência eclesiástica sobre o
tecido urbano nos primeiros séculos de povoamento estrangeiro do Brasil
ressaltou o seguinte:
O
espaço urbano público no Brasil evoluiu lentamente do sagrado ao profano.
Através das mudanças em seu conceito, uso, âmbito e trato, é possível acompanhar a passagem da
predominância religiosa, em seus primórdios, para a secular, nos dias atuais,
processo que ocorreu também em todo o mundo europeu nos tempos modernos e
particularmente no século XIX, mas foi de maiores consequências urbanísticas aqui
do que nos demais países americanos de colonização ibérica
(Murillo Marx. Nosso chão: do sagrado ao
profano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p. 7).
Leiamos o que registrou o
autor de O Conde da Boa Vista e o Recife
a propósito de tal assunto:
O fundador desta capela foi
positivamente o incentivador do desdobramento urbano da Boa Vista, por ter em
suas terras levantado a primeira capela de culto público – a capela é o símbolo histórico brasileiro de iniciação populacional -, isto muito antes da sua morte em 1694,
e providenciado a construção de várias
casas para residência dos seus moradores. Além do mais, já no fim de sua
vida, instituiu o Vínculo da Boa Vista, de fundação idêntica aos chamados
morgados (Flávio Guerra. Op. cit., p. 98).
Após o falecimento do
capitão-mor Cristóvão de Barros Rêgo, o Vínculo da Boa Vista continuou sendo
administrado pelo seu filho João Marinho Falcão, mestre-de-campo do terço dos
auxiliares das freguesias de Ipojuca e Muribeca. Com a extinção dos vínculos e
morgados pelas leis de 30 de junho de 1860 e 19 de maio de 1863, o Vínculo da
Boa Vista, que era então o mais importante e conhecido como Vínculo de Nossa
Senhora da Conceição dos Coqueiros, foi vendido pelos herdeiros a João Henrique
da Silva e a sua mulher Dona Josefa Maria dos Passos e Silva. Em 31 de janeiro de
1882 os descendentes deste último dono fizeram doação da capela à Irmandade de
Santa Cecília, tendo as extensas terras do vínculo já sido loteadas e passadas
para vários proprietários.
No tempo em que ocorreu a
doação a capela estava bastante deteriorada e não teve a irmandade podido reconstruí-la
naquele momento. Somente em princípios de 1899 – e contando com o apoio da
Diocese – foram iniciadas as obras que deram a forma definitiva ao edifício. E
na manhã do dia 30 de abril daquele ano, com as bênçãos do padre Augusto
Franklin Moreira da Silva, um culto público celebrou o novo recomeço da capela,
doravante sob a invocação de Santa Cecília, sua nova padroeira, protetora dos
músicos e da irmandade regedora.
Segundo apurou Flávio Guerra,
no aspecto original a Capela de Nossa Senhora da Conceição dos Coqueiros
apresentava uma grande porta de entrada com duas janelinhas laterais,
guarnecidas de balaústres de madeira exteriormente; e o seu campanário era uma
janela lateral do coro, para o qual se subia por uma escada lateral, instalada
numa pequena quadra lateral descoberta, com uma porta de entrada ao correr da
fachada que era modesta.
Infelizmente ainda é muito
forte e presente no Brasil a ideia de que prédios históricos e monumentos são
tão somente coisas para turista ver. Tal ideia diz muito do fato de nos
depararmos, aqui e ali, com edificações abandonadas e/ou em ruínas, porque,
como parece ser dominante o entendimento de que “tal coisa não diz respeito a mim”,
não nos importamos, de fato, com a integridade e nem com a revitalização e reabilitação
desses prédios, porque não os compreendemos como partes integrantes de nossa história.
Quiosques que foram instalados pela Prefeitura Municipal. Ao fundo, a Praça Maciel Pinheiro; e, mais ao fundo ainda, no lado direito, o sobrado onde morou a então menina Clarice Lispector |
Durante muitos e muitos
anos, como eu já narrei noutro artigo, a Igreja de Santa Cecília, que já
esteve, inclusive, tempos atrás, como relatou Flávio Guerra (Op. cit., p. 97),
ameaçada de ser posta abaixo para que a Rua da Conceição fosse alargada, certamente com demanda da sempre imperiosa voracidade do tráfego de veículos, tinha
a sua lateral direita tomada por barracas que, além de estarem ocupando
indevidamente o espaço público, impediam que a edificação eclesiástica fosse
vista por inteiro. A ocupação ilegal do espaço público e a emasculação do
prédio histórico é um caso típico que se vê aqui e ali no núcleo de ocupação
mais antiga do Recife, como é o caso do bairro de Santo Antônio, onde, há décadas,
a Igreja do Divino Espírito Santo teve a sua lateral direita completamente
ocupada por construções que abrigam bares e outros estabelecimentos que compõem
um dos exemplos mais gritantes de descaso e de desrespeito para com um
monumento histórico que eu já vi. Aquilo é uma vergonha entre outras que podem
ser vistas por quem se dispuser a andar por ruas seculares da capital
pernambucana, como a Rua da Glória, a Rua da Matriz e a Rua 1º de Março, só
para ficar em três exemplos. É um horror o que se vê na Rua Marquês do Herval onde um congestionamento de motos defronte a oficinas diariamente ofusca e impede que o passante possa contemplar uma bela escultura que fica nos fundos da Igreja de Santa Tereza.
Foi uma grata satisfação que eu experimentei na manhã do último dia 15 de fevereiro ao passar pela Rua da Conceição e me deparar com a Igreja de Santa Cecília liberta daqueles quase cancros que eram as barracas que existiam na sua lateral direita. Num muito acertado reordenamento daquele trecho do logradouro, a Prefeitura Municipal do Recife instalou quiosques no lado oposto da igreja. Sim, ainda existem fiteiros fixados nos fundos do edifício eclesiástico; e ele, em si, continua cercado por um gradil que parece ser um feio mal necessário para tentar de alguma forma livrá-lo da ação de vândalos. A Municipalidade deve envidar esforços para promover o disciplinamento e mesmo o embutimento de fios, porque postes e superabundância de fiação continuam presentes ao redor de vários prédios históricos, como se vê na Rua da Conceição.
Ainda naquela manhã
ensolarada de fevereiro, eu me deparei com outro flagrante inspirador: a Ponte
da Boa Vista toda pintada e revitalizada mostrando, também ela, uma face bonita
do Recife, de um Recife que preserva e cuida das coisas do seu passado e não os
deixa desaparecer.
A sentença é mais do que repisada, mas eu sempre hei de repeti-la: um povo que não preserva os testemunhos do seu passado e de sua história é um povo que ignora de onde veio e que não sabe para onde vai. Quando dizemos que não temos identidade é porque desconhecemos a nossa história.
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