25 de junho de 2022

Vida, morte, vida, morte e vida do Bairro do Recife

 Por Sierra



Fotos: Arquivo do Autor
Bairro do Recife, quarta-feira, 15 de junho de 2022: homens trabalham para remover um prédio de sete andares condenado por técnicos da Prefeitura Municipal do Recife



Não vigora neste país, infelizmente, uma política e uma ação de preservação de prédios históricos rigorosa, mesmo quando tais edificações encontram-se inseridas em perímetros e áreas tombadas. São vários os fatores que podem explicar isso, mas eu só vou listar três que julgo serem os mais importantes: 1º) a falta de comprometimento do proprietário para com a conservação e manutenção do imóvel; 2º) o órgão máximo da preservação em âmbito federal, que é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), uma instituição que caminha bravamente para o seu primeiro centenário de existência, não dispõe nem de recursos financeiros nem de recursos humanos suficientes para dar conta de uma demanda gigantesca de fiscalização, obras de restauração e mesmo ações emergenciais visando assegurar que fachadas de prédios desabem a qualquer momento; 3º) os cidadãos, em geral, pouco ou nenhum valor e/ou atenção dão a essa questão, o que só faz aumentar a falta de comprometimento da sociedade para com a preservação da memória do país.

Na ausência de práticas de Educação patrimonial generalizada em nossas escolas, não vemos, não costumamos ver por aí movimentos da população em defesa da preservação do patrimônio histórico do país – a esperança e o desejo de Mario de Andrade de que a comunidade cuidasse e protegesse esse patrimônio até agora não se estabeleceram.

É interessante verificar, por outro lado, como áreas revitalizadas e edificações restauradas costumam atrair pessoas. Penso, às vezes, que até existe no seio de nossa população um quê de gosto por essas coisas que é latente e que só se manifesta quando as ações revitalizadoras e restauradoras se processam. Afora ações pontuais aqui e ali, não há uma grita permanente, ninguém se movimenta e vai para a rua protestar contra a degradação e o abandono de tais edificações. Penso, também, que, para um percentual considerável de nossa população, políticas e ações preservacionistas do patrimônio histórico edificado é algo que beira o supérfluo num país de tantas carências sociais e só e somente só estão ligadas e dizem respeito à indústria turística, como vitrines que atraem a atenção do indivíduo que passa por elas, como meros atrativos sem significação maior.  É como se essas pessoas não enxergassem e/ou não compreendessem – e deve ser exatamente isso – a importância e o valor de um determinado prédio, de uma determinada obra ou de uma determinada área e paisagem para a história da localidade e até da própria nação. Muita gente não faz esse link, não estabelece esse vínculo e observa um prédio histórico como um mero cenário e como algo que simplesmente está ocupando determinado espaço da cidade.

Tendo eu tomado conhecimento, através da imprensa, da demolição de um prédio abandonado no Bairro do Recife, a primeira pergunta que eu me fiz foi esta: “Será que vão começar a demolir todos os prédios que estão abandonados ali?”. E, a fim de conferir in loco o que estava ocorrendo naquele pedaço da capital pernambucana, precisamente às 8h18 do último dia 15 de junho eu desembarquei em solo recifense e segui para lá.

Já da Av. Barbosa Lima, por onde eu fui chegando ao Bairro do Recife, dava para ver homens trabalhando, operando um guindaste ao qual se prendia uma espécie de tesourão que ia cortando as paredes do edifício de sete andares condenado à demolição e situado numa esquina entre a mencionada Av. Barbosa Lima e a Rua da Guia.


Registros feitos na Av. Barbosa Lima

                                                     

                                                      

                                           


                                         


Como o propósito da minha ida até o local era também fazer os registros fotográficos que ilustrariam este artigo, eu busquei retratar a ação de demolição a partir de vários logradouros, procurando diversos ângulos do evento.

Felizmente, digamos assim, o tal prédio que o tesourão ia paulatinamente pondo abaixo naquela manhã, não era um exemplar que integrava o conjunto de edificações erguidas no Bairro do Recife, quando das obras de reforma do porto nas primeiras décadas do século passado (1907-1918), dentro de uma perspectiva alinhada com a que o Barão Georges-Eugène Haussmann propusera para a Paris Oitocentista de Napoleão III; perspectiva essa aplicada de maneira ainda mais radical no Rio de Janeiro, então capital federal, sob o comando do prefeito e engenheiro de formação francesa Francisco Pereira Passos, o homme du monde que o brasilianista Jeffrey Needell muito acertadamente chamou de “Haussmann carioca” (Jeffrey Needell. Belle époque tropical:  sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. Trad. Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 97). O leigo e o desavisado pensam que a maioria das construções imponentes que integram o Bairro do Recife, também conhecido como Recife Antigo, é mesmo antiga. Ledo engano. A maior parte dos prédios realmente antigos que existiam na zona portuária desapareceu no processo de haussmannização – haussmanização imposta tanto na abertura das vias radiais como na arquitetura das edificações – que foi estabelecido ali; período esse de bota-abaixo retratado por Cátia Wanderley Lubambo no livro Bairro do Recife: entre o Corpo Santo e o Marco Zero (Recife: CEPE/Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1991).


                                             


No lado esquerdo se vê o tapume no terreno onde deverá ser erguido o hotel boutique do grupo Hilton

                                             


                                               

                                     


                                                 


                                                 


                                                 


                                                 


                                                

                                                  


                                                 



Quando eu segui pela Rua da Guia para captar outros ângulos do prédio condenado foi que eu fiquei sabendo, por conta do tapume vistoso que foi posto lá, que será erguido um dito “hotel boutique”, da rede internacional Hilton, num terreno por ora desocupado e que já serviu de estacionamento, situado, vejam só, ao lado do tal prédio condenado à demolição. A esta altura, eu imagino que o leitor atento deve ter tido o mesmo raciocínio que eu: será que o tal edifício ficou por anos e anos entregue à própria sorte e acumulando problemas estruturais – problemas esses, como uma inclinação, anunciados por técnicos da Prefeitura Municipal do Recife – a ponto de ser condenado à demolição com o fito – são conjecturas, tão somente conjecturas – de, sabe-se lá, ter o seu terreno aproveitado por assim dizer, pelo anunciado empreendimento hoteleiro? Aguardemos o transcurso do tempo e a resposta que ele nos trará. A construção do hotel em si é muito bem-vinda, sobretudo por vir a ocupar um terreno vazio. Mas não sejamos ingênuos a ponto de supor que não exista uma especulação imobiliária que se mantém de olho nos chamados pardieiros, edificações antigas e abandonadas que o poder econômico quer ver postas abaixo para no lugar deles construir prédios que ele julga ser mais rentáveis.


Registros feitos na Rua Domingos José Martins: no lado direito o terreno onde será erguido o hotel boutique

                        


                        


                                         


                                 


Quem trabalha em órgãos cuja razão de ser são as ações de preservação, restauração e salvaguarda do patrimônio histórico edificado ou quem envereda por esses assuntos mesmo sem estar ligado a nenhuma instituição, como é o meu caso, sabe o quão é difícil lidar com proprietários e/ou ocupantes de imóveis tombados e/ou inseridos em áreas tombadas que teimam em demonizar e em descumprir as leis e as determinações preservacionistas. Já ouvi alguns testemunhos de ambos os lados em algumas das cidades históricas que visitei. Dito isso, eu penso que, ainda que por vezes sejam casos pontuais, tais indivíduos podem ser capazes de provocar grandes estragos nos imóveis que lhes pertencem e/ou que são por eles ocupados.

Ainda vigora entre nós o que eu chamo de “cultura de degradação”, que nada mais é do que deixar o prédio abandonado e em progressivo processo de deterioração até que ele atinja um grau tal de debilidade e de fragilidade que o mais recomendado e sensato seja – mesmo para os órgãos de preservação – pô-lo abaixo. E, dependendo do tamanho da edificação bem como de sua importância arquitetônica, histórica e cultural, essa perda se torna irreparável e deixa um vazio imenso na memória urbana do lugar onde ela existia.

Dentro do Plano de reabilitação do Bairro do Recife, publicado pela Prefeitura da Cidade do Recife em 1988, consta uma classificação de edifícios no ponto denominado “Princípios de intervenção”; em tal classificação existe um item que dispõe em categorias as construções segundo as recomendações de proteção e nível de intervenção; e uma delas é intitulada de “não conforme”, que “são os prédios que devem ser demolidos, face a sua excessiva interferência no conjunto” (Op. cit, p. 48). Será que, ainda que o problema do prédio condenado da Rua da Guia fosse de ordem estrutural abalada, ele se encaixaria nesta categoria? Ou não, a natureza dele era outra não especificada no referido Plano?

O processo de gentrificação que tomou de assalto o Bairro do Recife a partir da década de 1990 e que culminou, em março de 1998, segundo Rogerio Proença Leite, com o fato inteiramente novo de o Iphan ter, pela primeira vez em sua história, tombado “um conjunto eclético no panorama arquitetônico e urbanístico brasileiro” (Rogerio Proença Leite. Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. São Paulo: Editora da Unicamp, s. d, p. 79), pôs o velho bairro portuário recifense na ordem do dia das políticas de revitalização de áreas urbanas degradadas com todas as implicações socioeconômicas que elas acarretam, o que inclui, por exemplo, afastar da área antigos moradores, pessoas que haviam ocupado prédios abandonados; e também provocar a saída de pequenos comerciantes que não conseguiam mais arcar com o custo de aluguéis numa parte da cidade que ficou valorizada.

O advento do século XXI trouxe novo fôlego para o Bairro do Recife. O processo de gentrificação implantado nele, que lhe conferiu status de grande atração turística da cidade, acabou atraindo empresas de alta tecnologia que, muito promissoramente, começaram a ocupar edificações em várias ruas do bairro. Em que pese o contexto histórico de pandemia que estamos a atravessar, com seus reflexos socioeconômicos, é inegável que a permanência de tais empresas no Bairro do Recife continua sendo algo extremamente positivo, a meu ver, porque prédios desocupados e/ou abandonados que existem em áreas históricas normalmente estão condenados a desaparecer das cidades brasileiras, em geral, e do Recife, em particular, que, nos últimos anos, tem sido cenário de uma voraz penetração de grandes empreendimentos imobiliários de alto padrão em sua área de ocupação mais antiga, que são, além do Bairro do Recife, os bairros de Santo Antônio, São José e Boa Vista.

Depois de fotografar a ação de demolição do prédio da Rua da Guia, eu percorri outros logradouros do perímetro tombado pelo Iphan. Nas ruas do Bom Jesus – ter sido recentemente eleita uma das mais bonitas do mundo não a livrou do mal da degradação consentida e/ou proposital -, Tomazina e Vigário Tenório eu me deparei com sobrados imponentes e possuidores de fachadas ricas em detalhes arquitetônicos, inteiramente abandonados e deteriorados e, tudo leva a crer, condenados a ser também eles cortados em pequenos pedaços pelo tesourão faminto que estava atuando na Rua da Guia. Vê-se nos exemplos encontrados nessas ruas que o Bairro do Recife, o perímetro tombado do Bairro do Recife, está em vias de perder alguns dos edifícios mais representativos do tipo de arquitetura que ensejou a ação de tombamento do Iphan; e isso diz muito da fragilidade legal das políticas de preservação do patrimônio histórico edificado então vigentes.


Imponente sobrado degradado na Rua do Bom Jesus: o que será que será que acontecerá com ele?
                                           


                                           

O abandono e a deterioração de prédios dentro do perímetro tombado deixam ver que o poder público não tem conseguido fazer com que os proprietários dos imóveis sejam responsabilizados pela conservação das edificações

                                            


                                           


                                          


                       


                                           


                                           



Num livro que é um dos mais contundentes libelos que até hoje já se escreveu contra o planejamento urbano e a reurbanização que vigiam em sua época de publicação, a norte-americana Jane Jacobs destacou que “Um bairro bem-sucedido é aquele que se mantém razoavelmente em dia com seus problemas, de modo que eles não o destruam” e que “Um bairro malsucedido é aquele que se encontra sobrecarregado de deficiências e problemas e cada vez mais inerte diante deles” (Jane Jacobs. Morte e vida de grandes cidades. Trad. Carlos S. Mendes Rosa. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 123). O Bairro do Recife apresenta vários pontos positivos como local que, além de empresas privadas e de instituições da administração pública, reúne diversas atrações culturais e de lazer para diferentes segmentos sociais, ainda que muitos apontem o caráter elitista do lugar; a meu ver os graves problemas do bairro são a questão de segurança pública e a dificuldade que tem o poder público de lidar  com uma realidade em que vende o bairro como relíquia histórica e, por conseguinte, como uma grande atração turística, mas que, por outro lado, não consegue impedir que várias edificações sofram com um lamentável e triste estado de abandono.

Nenhum comentário:

Postar um comentário