Por Sierra
A maior inimiga de uma mulher será sempre outra mulher.
Chrysanthème
No universo do dito
empoderamento feminino que adentrou neste corrente século com uma força e uma
visibilidade – visibilidade proporcionada, é certo, pela internet e pelas
chamadas redes sociais – nunca antes vistas, não é difícil encontrar por aí
mulheres tenazmente engajadas nas lutas por uma emancipação feminina em larga
escala; em larga escala e realmente efetiva, com representatividade em vários
setores, com oportunidades de fala e com direitos verdadeiramente reconhecidos
e não apenas ensaiados e postos em alguma prateleira sem chance de percorrer as
instâncias da vida prática. No entanto, também não é difícil encontrar por aí
mulheres muitíssimo dispostas a sabotar, a espezinhar, a menosprezar e a atacar
conquistas de suas semelhantes.
Não deve ser nada, nada
fácil ser mulher em nenhum lugar do mundo e ainda mais em países machistas,
violentos e patriarcais como o Brasil onde a mulher continua sendo tratada como
objeto de espancamento, como animal servil, procriador e garantidor da perpetuação
da espécie e como cidadão de segunda classe para quem se concede alguns
arranjos de direitos. Não deve ser nada, nada fácil ser mulher onde quer que
seja e ainda mais num cenário de gritantes desigualdades sociais, porque,
dependendo da classe social, da cor da pele e do grau de instrução, a mulher é
potencialmente mais coisificada e animalizada numa condição de degradante e
massacrante vulnerabilidade. Não deve ser nada, nada fácil ser mulher em nenhum
lugar do mundo e ainda mais em uma sociedade como a brasileira onde mulheres
vivem e agem como que lutando para botar a perder conquistas e reduzir à
animalidade e à inteira submissão outras mulheres.
Por que tantas mulheres se
comportam como odiassem mulheres? Por que tantas mulheres se alinham com homens
para anular ganhos e triunfos femininos? Por que tantas mulheres continuam
defendendo que mulher é submissa ao homem e pronto? Por que tantas mulheres se
deixam reduzir à condição de donas de casa como se isso fosse um fundamento da existência
e uma determinação da natureza? Por que tantas mulheres permanecem lutando
contra o aborto e abrindo mão do direito reprodutivo e de ser dona do próprio
corpo?
Uma das palavras-chave que
aparece constantemente nos discursos das chamadas minorias é empatia. Diz-se
amiúde que é preciso ter empatia para compreender e aceitar as dores, as
reivindicações e as pautas dos negros, dos gays, dos índios, dos indigentes,
dos portadores de deficiência física e mental, das mulheres, etc., etc., etc.
Diz-se que se não tivermos empatia toda reivindicação, toda pauta e toda luta
não é inteiramente absorvida pela sociedade, porque é se pondo e/ou se
imaginando no lugar do outro que se pode realmente sentir e/ou fazer ideia do
que o outro sente, necessita, reivindica e quer.
Uma coisa é certa: empatia não
é algo que se pode pedir no balcão da farmácia e nem se encomendar num site de compras. Empatia nós temos ou
não temos. Empatia nós sentimos ou não sentimos. E não adianta vacina; e não
adianta conselho; e não adianta ler livro de autoajuda; e não adianta buscar no
Google; e não adianta perguntar ao
pastor, ao padre, ao médium, ao guia, ao pai de santo e ao líder; e não adianta
tomar chá de cinquenta ervas; e não adianta fazer promessas; e não adianta
percorrer o Caminho de Santiago de Compostela; e não adianta entrar em mais um
grupo de WhatsApp... Não adianta. Nada
disso adianta. Empatia nós temos ou não temos. Empatia nós sentimos ou não
sentimos.
Acontece que não saber o que
é empatia, não ter empatia e não sentir empatia não significa que o outro não deva
ser compreendido em sua plena condição humana. Acontece que não saber o que é
empatia, não ter empatia e não sentir empatia não é um salvo-conduto para
ignorar e/ou passar por cima das leis e das determinações que asseguram e/ou
visam assegurar a integridade física e moral e o respeito a todo e qualquer
indivíduo. Acontece que não saber o que é empatia, não ter empatia e não sentir
empatia não quer dizer que, alguém que se compreenda como sendo homem, branco e
heterossexual, deva julgar que mulheres, gays e negros são seres não muito
humanos.
Michelle Perrot, a renomada
historiadora francesa, disse certa feita que as mulheres são muitas vezes
excluídas da História; e que, “No entanto, o que importa reencontrar são as
mulheres em ação, inovando em suas práticas, mulheres dotadas de vida, e não
absolutamente como autômatas, mas criando elas mesmas o movimento da história”
(Michelle Perrot. Os excluídos da
história: operários, mulheres e prisioneiros. 1ª ed. Trad. Denise Bottmann.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 187). Michelle Perrot escreveu isso sobre
a condição feminina em um determinado período e contexto, mas, penso eu, é uma
avaliação que permanece válida para estes nossos dias e para este nosso tempo;
da mesma forma eu considero ainda válidas estas palavras escritas por Ana
Montenegro num pequeno e substancioso livro cuja edição príncipe é de 1981:
A
definição de que as desigualdades que pesam sobre a mulher são determinadas
pela opressão social leva a considerar que a sua promoção interessa às massas
femininas especificamente e às massas populares em geral, porque a verdadeira
libertação da mulher está inserida nas lutas pelas transformações econômicas,
sociais, políticas e culturais, através das modificações estruturais da
sociedade (Ana Montenegro. Ser
ou não ser feminista. Cadernos Guararapes 3. Recife: Editora Guararapes,
1981, p. 180).
Não deve ser nada, nada
fácil ser mulher e ainda mais quando contra a mulher, além de todos os males
que os homens somos capazes de praticar em desfavor delas, existe um exército
formado apenas por mulheres que marcha incansável e ferozmente contra suas
semelhantes. A propósito a jornalista suíça Françoise Giroud acreditava que “O
masoquismo feminino é um traço adquirido, é o resultado de uma longa educação,
em particular da educação cristã, que ensinou às mulheres a se resignar, a
aceitar tudo”. Betty Milan. A força da
palavra: entrevistas. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 164).
O caso recente da juíza que
negou a realização de um aborto legal numa criança que engravidou aos dez anos
de idade é bastante ilustrativo para o que eu venho dizendo aqui. Diz-se que é
crueldade defender o aborto, porque a mulher nasceu para procriar e ponto
final. Saindo em defesa do indefensável, mulheres argumentaram que a menina de
dez anos de idade não foi estuprada porque, na verdade, ela namorava o
adolescente que a engravidou. Como pode uma criança de dez anos de idade
namorar e ter vida sexual ativa, minha gente?!
O exército das heroínas ao
avesso que empedernidamente luta com todas as forças que possui para derrotar
as mulheres que não se alistaram e não querem se alistar nele, entrou em ação
também para massacrar a jovem atriz Klara Castanho com toda a vileza, com toda
a crueldade, com toda a gana e com toda a força que possui. Klara Castanho, que
disse ter sido estuprada e que, seguindo todos os ditames das leis, entregou a
criança para adoção, começou a ser massacrada pelo tal exército feminino já na
maternidade onde deu a luz à criança; segundo o seu depoimento, uma enfermeira
ameaçou contar o seu caso a um colunista. A partir daí, algo que deveria ter
sido mantido em sigilo, a fim de preservar não só Klara Castanho bem como o
bebê que ela entregou para adoção, virou notícia e correu as instâncias todas
da internet eivada de toda a podridão e de todas as acusações, mentiras e
aberrações que dão audiência e que as grandes corporações do universo virtual
monetizam. É isso aí: crueldades, mentiras, notícias falsas, humilhações,
destruição de reputações, desonras, enfim, tudo de ruim que se pode fazer para
destruir a imagem de alguém é monetizado. É a audiência e o lucro que estão na
base do que fizeram contra a Klara Castanho, mas não é só isso, embora “só isso”
seja algo enormemente terrível, cruel e desumano.
Uma das expressões que foram
mais usadas contra quem irresponsavelmente trouxe a público o caso da atriz
Klara Castanho – ela, coitada, contou o que lhe ocorreu depois que sua tragédia
pessoal virou assunto em tudo que é canto – foi que existem “juízes da internet”.
Emitir uma opinião não deixa de ser expressar um juízo de valor; e juízos de
valor e opiniões são o que são, mas não são necessariamente algo ao qual nos
mantemos presos por toda a vida, porque nós podemos mudar nossos pontos de vista
e nossas avaliações sobre uma coisa e outra; nós devemos estar sempre dispostos
a reconsiderar aquilo em que acreditamos e/ou deixamos de acreditar. Dias atrás
eu fui detonado por um leitor anônimo que me classificou de deseducado e
selvagem porque eu escrevi umas linhas sobre desperdício de água; e porque,
segundo ele, eu só critico e critico e não sugiro soluções, como se eu tivesse
solução para tudo o que observo e critico e como se eu necessariamente devesse
apresentar soluções. Enfim, uma coisa é ser, como dizem alguns, “juiz da
internet” e outra, bem diferente, é ser “criminoso da internet”. Quem escreve,
quem opina e quem fala dá a cara a tapa e está sujeito a argumentos contrários.
Não se pode pensar – eu pelo menos penso assim – que uma opinião será uma
unanimidade. Ocorre que existem limites e existem fronteiras que muitas pessoas
simplesmente querem ignorar, porque pensam que elas não devem ser contestadas e
que elas são donas da verdade.
Nesta semana um figurão que,
segundo testemunhas, era um incontrolável assediador sexual ocupando a
presidência da Caixa Econômica Federal, foi desmascarado publicamente. As vítimas,
claros, foram as culpadas, segundo os “juízes da internet”. Eis um fato
inconteste: predadores sexuais, espancadores e assassinos de mulheres estão por
toda parte. E não duvidem também disto: não raro eles se apresentam em público
como defensores da moral e dos bons costumes e empunham a bandeira onde está
escrito “Deus, pátria e família”.
Mulheres existem que odeiam
mulheres. Mulheres existem que destinam a outras mulheres o mesmo tratamento
vil, humilhante, cruel e desumano que a maioria dos homens destina a elas. Mulheres
existem que são cúmplices dos seus algozes. Mulheres existem que continuam
defendendo a sua inteira submissão ao mundo masculino. Mulheres existem que são
a própria encarnação da misoginia. Mulheres existem que abominam a ideia de ver
mulheres no comando, daí por que é tão baixa a representatividade feminina nos
cargos, em geral, e nos eletivos, em particular. Mulheres existem que lutam
contra ter direito sobre o próprio corpo. Mulheres existem que não refletem
sobre a sua condição numa sociedade violenta, massacrante e feminicida. Mulheres
existem que nunca vão aprender a respeitar e nem a aceitar a liberdade e a
autonomia que outras mulheres alcançaram. Mulheres existem que ofendem e
desprezam mães solteiras. Mulheres existem que irão atravessar a sua existência
sem nunca e jamais sequer compreender o que é sororidade, que significa ter
empatia por outras mulheres. Mulheres existem que odeiam mulheres.
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