2 de julho de 2022

Mulheres existem que odeiam mulheres

 Por Sierra


A maior inimiga de uma mulher será sempre outra mulher.

                                                                Chrysanthème

Imagem: Internet
Mulheres existem que lutam contra ter direito sobre o próprio corpo. Mulheres existem que não refletem sobre a sua condição numa sociedade violenta, massacrante e feminicida. Mulheres existem que nunca vão aprender a respeitar e nem a aceitar a liberdade e a autonomia que outras mulheres alcançaram. Mulheres existem que ofendem e desprezam mães solteiras. Mulheres existem que irão atravessar a sua existência sem nunca e jamais sequer compreender o que é sororidade, que significa ter empatia por outras mulheres. Mulheres existem que odeiam mulheres


No universo do dito empoderamento feminino que adentrou neste corrente século com uma força e uma visibilidade – visibilidade proporcionada, é certo, pela internet e pelas chamadas redes sociais – nunca antes vistas, não é difícil encontrar por aí mulheres tenazmente engajadas nas lutas por uma emancipação feminina em larga escala; em larga escala e realmente efetiva, com representatividade em vários setores, com oportunidades de fala e com direitos verdadeiramente reconhecidos e não apenas ensaiados e postos em alguma prateleira sem chance de percorrer as instâncias da vida prática. No entanto, também não é difícil encontrar por aí mulheres muitíssimo dispostas a sabotar, a espezinhar, a menosprezar e a atacar conquistas de suas semelhantes.

Não deve ser nada, nada fácil ser mulher em nenhum lugar do mundo e ainda mais em países machistas, violentos e patriarcais como o Brasil onde a mulher continua sendo tratada como objeto de espancamento, como animal servil, procriador e garantidor da perpetuação da espécie e como cidadão de segunda classe para quem se concede alguns arranjos de direitos. Não deve ser nada, nada fácil ser mulher onde quer que seja e ainda mais num cenário de gritantes desigualdades sociais, porque, dependendo da classe social, da cor da pele e do grau de instrução, a mulher é potencialmente mais coisificada e animalizada numa condição de degradante e massacrante vulnerabilidade. Não deve ser nada, nada fácil ser mulher em nenhum lugar do mundo e ainda mais em uma sociedade como a brasileira onde mulheres vivem e agem como que lutando para botar a perder conquistas e reduzir à animalidade e à inteira submissão outras mulheres.

Por que tantas mulheres se comportam como odiassem mulheres? Por que tantas mulheres se alinham com homens para anular ganhos e triunfos femininos? Por que tantas mulheres continuam defendendo que mulher é submissa ao homem e pronto? Por que tantas mulheres se deixam reduzir à condição de donas de casa como se isso fosse um fundamento da existência e uma determinação da natureza? Por que tantas mulheres permanecem lutando contra o aborto e abrindo mão do direito reprodutivo e de ser dona do próprio corpo?

Uma das palavras-chave que aparece constantemente nos discursos das chamadas minorias é empatia. Diz-se amiúde que é preciso ter empatia para compreender e aceitar as dores, as reivindicações e as pautas dos negros, dos gays, dos índios, dos indigentes, dos portadores de deficiência física e mental, das mulheres, etc., etc., etc. Diz-se que se não tivermos empatia toda reivindicação, toda pauta e toda luta não é inteiramente absorvida pela sociedade, porque é se pondo e/ou se imaginando no lugar do outro que se pode realmente sentir e/ou fazer ideia do que o outro sente, necessita, reivindica e quer.

Uma coisa é certa: empatia não é algo que se pode pedir no balcão da farmácia e nem se encomendar num site de compras. Empatia nós temos ou não temos. Empatia nós sentimos ou não sentimos. E não adianta vacina; e não adianta conselho; e não adianta ler livro de autoajuda; e não adianta buscar no Google; e não adianta perguntar ao pastor, ao padre, ao médium, ao guia, ao pai de santo e ao líder; e não adianta tomar chá de cinquenta ervas; e não adianta fazer promessas; e não adianta percorrer o Caminho de Santiago de Compostela; e não adianta entrar em mais um grupo de WhatsApp... Não adianta. Nada disso adianta. Empatia nós temos ou não temos. Empatia nós sentimos ou não sentimos.

Acontece que não saber o que é empatia, não ter empatia e não sentir empatia não significa que o outro não deva ser compreendido em sua plena condição humana. Acontece que não saber o que é empatia, não ter empatia e não sentir empatia não é um salvo-conduto para ignorar e/ou passar por cima das leis e das determinações que asseguram e/ou visam assegurar a integridade física e moral e o respeito a todo e qualquer indivíduo. Acontece que não saber o que é empatia, não ter empatia e não sentir empatia não quer dizer que, alguém que se compreenda como sendo homem, branco e heterossexual, deva julgar que mulheres, gays e negros são seres não muito humanos.

Michelle Perrot, a renomada historiadora francesa, disse certa feita que as mulheres são muitas vezes excluídas da História; e que, “No entanto, o que importa reencontrar são as mulheres em ação, inovando em suas práticas, mulheres dotadas de vida, e não absolutamente como autômatas, mas criando elas mesmas o movimento da história” (Michelle Perrot. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 1ª ed. Trad. Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 187). Michelle Perrot escreveu isso sobre a condição feminina em um determinado período e contexto, mas, penso eu, é uma avaliação que permanece válida para estes nossos dias e para este nosso tempo; da mesma forma eu considero ainda válidas estas palavras escritas por Ana Montenegro num pequeno e substancioso livro cuja edição príncipe é de 1981:

A definição de que as desigualdades que pesam sobre a mulher são determinadas pela opressão social leva a considerar que a sua promoção interessa às massas femininas especificamente e às massas populares em geral, porque a verdadeira libertação da mulher está inserida nas lutas pelas transformações econômicas, sociais, políticas e culturais, através das modificações estruturais da sociedade (Ana Montenegro. Ser ou não ser feminista. Cadernos Guararapes 3. Recife: Editora Guararapes, 1981, p. 180).

Não deve ser nada, nada fácil ser mulher e ainda mais quando contra a mulher, além de todos os males que os homens somos capazes de praticar em desfavor delas, existe um exército formado apenas por mulheres que marcha incansável e ferozmente contra suas semelhantes. A propósito a jornalista suíça Françoise Giroud acreditava que “O masoquismo feminino é um traço adquirido, é o resultado de uma longa educação, em particular da educação cristã, que ensinou às mulheres a se resignar, a aceitar tudo”. Betty Milan. A força da palavra: entrevistas. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 164).

O caso recente da juíza que negou a realização de um aborto legal numa criança que engravidou aos dez anos de idade é bastante ilustrativo para o que eu venho dizendo aqui. Diz-se que é crueldade defender o aborto, porque a mulher nasceu para procriar e ponto final. Saindo em defesa do indefensável, mulheres argumentaram que a menina de dez anos de idade não foi estuprada porque, na verdade, ela namorava o adolescente que a engravidou. Como pode uma criança de dez anos de idade namorar e ter vida sexual ativa, minha gente?!

O exército das heroínas ao avesso que empedernidamente luta com todas as forças que possui para derrotar as mulheres que não se alistaram e não querem se alistar nele, entrou em ação também para massacrar a jovem atriz Klara Castanho com toda a vileza, com toda a crueldade, com toda a gana e com toda a força que possui. Klara Castanho, que disse ter sido estuprada e que, seguindo todos os ditames das leis, entregou a criança para adoção, começou a ser massacrada pelo tal exército feminino já na maternidade onde deu a luz à criança; segundo o seu depoimento, uma enfermeira ameaçou contar o seu caso a um colunista. A partir daí, algo que deveria ter sido mantido em sigilo, a fim de preservar não só Klara Castanho bem como o bebê que ela entregou para adoção, virou notícia e correu as instâncias todas da internet eivada de toda a podridão e de todas as acusações, mentiras e aberrações que dão audiência e que as grandes corporações do universo virtual monetizam. É isso aí: crueldades, mentiras, notícias falsas, humilhações, destruição de reputações, desonras, enfim, tudo de ruim que se pode fazer para destruir a imagem de alguém é monetizado. É a audiência e o lucro que estão na base do que fizeram contra a Klara Castanho, mas não é só isso, embora “só isso” seja algo enormemente terrível, cruel e desumano.

Uma das expressões que foram mais usadas contra quem irresponsavelmente trouxe a público o caso da atriz Klara Castanho – ela, coitada, contou o que lhe ocorreu depois que sua tragédia pessoal virou assunto em tudo que é canto – foi que existem “juízes da internet”. Emitir uma opinião não deixa de ser expressar um juízo de valor; e juízos de valor e opiniões são o que são, mas não são necessariamente algo ao qual nos mantemos presos por toda a vida, porque nós podemos mudar nossos pontos de vista e nossas avaliações sobre uma coisa e outra; nós devemos estar sempre dispostos a reconsiderar aquilo em que acreditamos e/ou deixamos de acreditar. Dias atrás eu fui detonado por um leitor anônimo que me classificou de deseducado e selvagem porque eu escrevi umas linhas sobre desperdício de água; e porque, segundo ele, eu só critico e critico e não sugiro soluções, como se eu tivesse solução para tudo o que observo e critico e como se eu necessariamente devesse apresentar soluções. Enfim, uma coisa é ser, como dizem alguns, “juiz da internet” e outra, bem diferente, é ser “criminoso da internet”. Quem escreve, quem opina e quem fala dá a cara a tapa e está sujeito a argumentos contrários. Não se pode pensar – eu pelo menos penso assim – que uma opinião será uma unanimidade. Ocorre que existem limites e existem fronteiras que muitas pessoas simplesmente querem ignorar, porque pensam que elas não devem ser contestadas e que elas são donas da verdade.

Nesta semana um figurão que, segundo testemunhas, era um incontrolável assediador sexual ocupando a presidência da Caixa Econômica Federal, foi desmascarado publicamente. As vítimas, claros, foram as culpadas, segundo os “juízes da internet”. Eis um fato inconteste: predadores sexuais, espancadores e assassinos de mulheres estão por toda parte. E não duvidem também disto: não raro eles se apresentam em público como defensores da moral e dos bons costumes e empunham a bandeira onde está escrito “Deus, pátria e família”.

Mulheres existem que odeiam mulheres. Mulheres existem que destinam a outras mulheres o mesmo tratamento vil, humilhante, cruel e desumano que a maioria dos homens destina a elas. Mulheres existem que são cúmplices dos seus algozes. Mulheres existem que continuam defendendo a sua inteira submissão ao mundo masculino. Mulheres existem que são a própria encarnação da misoginia. Mulheres existem que abominam a ideia de ver mulheres no comando, daí por que é tão baixa a representatividade feminina nos cargos, em geral, e nos eletivos, em particular. Mulheres existem que lutam contra ter direito sobre o próprio corpo. Mulheres existem que não refletem sobre a sua condição numa sociedade violenta, massacrante e feminicida. Mulheres existem que nunca vão aprender a respeitar e nem a aceitar a liberdade e a autonomia que outras mulheres alcançaram. Mulheres existem que ofendem e desprezam mães solteiras. Mulheres existem que irão atravessar a sua existência sem nunca e jamais sequer compreender o que é sororidade, que significa ter empatia por outras mulheres. Mulheres existem que odeiam mulheres.

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