Por Sierra
Foto: Divulgação
A imagem angelical e serena de Daniella Perez permanecerá para todo o sempre guardada em minha memória fazendo um gigantesco contraponto à face demoníaca do indivíduo que a assassinou. O mundo é injusto. a Justiça é injusta. E nós somos todos uns infelizes
Não consigo recordar onde
era exatamente que eu me encontrava naquele dia de dezembro de 1992, quando foi
anunciado o assassinato da atriz Daniella Perez. O assassinato brutal, que não
saía do noticiário, perturbou a minha cabeça de adolescente que teve
dificuldade de separar a trama da fantasia da trama da realidade, porque a bela
e jovem atriz estava então participando da novela De corpo e alma, da Rede Globo,
na qual contracenava com o indivíduo que a matou.
À medida que o crime, como
um novelo de lã, era desenrolado, eu fui acompanhando de alguma forma as
notícias, ainda sem compreender o porquê do assassinato. E, nas ruas, não era
difícil ouvir pessoas dizendo que a vítima é que era a grande culpada pelo que
lhe acontecera, porque, na boca do povo, ela se envolvera com um homem casado.
Eu era um adolescente
alienado, como eram alienados os colegas que na época eu tinha. E, por isso, a dimensão do caso e temas como
feminicídio, cultura machista e sensacionalismo da imprensa não faziam parte do
que eu compreendia e/ou questionava na vida. A vida, a minha vida, era tão
somente uma sucessividade de acontecimentos que eram como deveriam ser e
pronto; como se tudo o que acontecia ao meu redor e alhures fosse uma ordem
natural das coisas.
Essa alienação quanto aos,
digamos, grandes assuntos que moviam a sociedade brasileira naquele momento,
por outro lado, não era, por assim dizer, 100% alienada, porque eu entendia
muitíssimo bem, do alto dos meus quase 19 anos de idade, de violência doméstica
contra mulher, porque assistira a alguns episódios em minha família, de
privações materiais e de falta de horizontes para um jovem que fora abandonado
pelo pai e que tinha uma formação educacional precária, como era o meu caso. Eu
era muito jovem e não sabia como existir, digo melhor, eu não sabia o que fazer
para sobreviver.
Às vésperas do meu 19º
aniversário, o assassinato da Daniella Perez se impôs no meu cotidiano com uma
presença pétrea e muito pesada. Fazia sete anos que uma de minhas tias fora
assassinada a facadas por um sujeito que não se conformara com a separação; e,
de alguma maneira, a morte brutal da atriz da novela das oito trouxe à minha
lembrança o assassinato da irmã da minha mãe. Foi tão ruim tudo aquilo.
Os dias foram passando e as
notícias do caso Daniella Perez ganharam grande volume. As notícias se
avolumavam, mas não respondiam às principais perguntas que pessoas do povão,
como eu, se faziam: por que mataram a moça? E por que naquelas circunstâncias? O
que foi que a atriz fizera para ter a sua vida tirada daquele modo? O que é que
o seu assassino queria dela?
Olhando hoje para trás e,
detidamente para o caso Daniella Perez, é como se todo o episódio de vileza,
crueldade, brutalidade e perversidade que a vitimou fosse um longo pesadelo do
qual não se acorda nunca. É exatamente desse jeito que permanece em mim o
assassinato da Daniella Perez: como um terrível e tenebroso pesadelo do qual eu
não consigo despertar. E, se é assim comigo, eu fico a imaginar como é que sua
mãe, como é que seu irmão e como é que seu marido conseguem lidar com essa
memória, mesmo tendo transcorrido quase trinta anos do evento.
Filho de uma terra onde o
sangue da morte escorre como água em rio; e onde a vingança por assassinatos
parece estar no DNA das famílias de muitos dos vitimados, que tratam elas
mesmas de estabelecer um senso de justiça na ausência da Justiça ou contra a
benevolência e a complacência desta, talvez, por isso, eu nunca tenha me
conformado, eu nunca tenha aceitado que o indivíduo que matou Daniella Perez com tesouradas, que o indivíduo que destruiu uma família inteira, que um
indivíduo desumano tenha passado tão pouco tempo atrás das grades e voltado
para o convívio social como se ele nada de mal tivesse feito e como se ele, de
fato, tivesse pagado pelo que fez. Não proclamo a barbárie, de maneira alguma. Mas
não aceito as injustiças.
Há quem diga que quem escapa
da Justiça da Terra, não escapa da justiça divina. Como eu não acredito nessa
ordem superior de que tanto falam, eu gostaria que a Justiça terrena nunca
fosse complacente e nem benevolente para com os assassinos. Não faz sentido e
não tem cabimento que alguém que cometeu um crime bárbaro, um crime hediondo
goze do direito de voltar ao convívio social; essas pessoas deveriam passar o
resto de suas vidas atrás das grades mergulhadas na solidão e na pequenez de
suas existências malignas e vis. Não se deve, não se deveria dar segunda chance
ao mal.
É lamentável e muito triste
constatar que, transcorridos quase trinta anos do assassinato da atriz Daniella
Perez, a Justiça brasileira permaneça complacente e benevolente para com
assassinos, vide as Elizes Matsunagas e as Suzanes Von Richthofens que
apareceram por aí desde aquele dezembro de 1992. O pacote de bondades que a
(in) Justiça brasileira concede a praticantes de crimes hediondos inclui
visitas íntimas, saídas em “datas especiais”, liberdade condicional e o troféu
do delinquente: a liberdade definitiva.
Há quem diga que certas
pessoas morrem para desencadear mudanças para melhor na sociedade da qual elas
faziam parte, porque, segundo tal entendimento, a sociedade de um lado e o
Judiciário de outro tomam o caso como exemplo e repensam os instrumentos legais
pelos quais todos nós devemos balizar nossas vidas. Sim, o caso Daniella Perez
e o empenho determinado de sua mãe, Gloria Perez, para que os culpados fossem
severamente punidos, provocaram a inclusão do homicídio qualificado no rol de
crimes hediondos. Mas isso não foi o bastante. Vigiar e punir com severidade
deveria ir além da aplicação da pena; deveria fazer com que o cumprimento da
pena seguisse rigorosa e integralmente até o fim sem quaisquer benefícios para
o apenado.
A imagem angelical e serena
de Daniella Perez permanecerá para todo o sempre guardada em minha memória
fazendo um gigantesco contraponto à face demoníaca do indivíduo que a
assassinou.
O mundo é injusto. A Justiça
é injusta. E nós somos todos uns infelizes.
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