23 de julho de 2022

Minhas memórias da repercussão de um crime

 Por Sierra


Foto: Divulgação

A imagem angelical e serena de Daniella Perez permanecerá para todo o sempre guardada em minha memória fazendo um gigantesco contraponto à face demoníaca do indivíduo que a assassinou. O mundo é injusto. a Justiça é injusta. E nós somos todos uns infelizes


 

Não consigo recordar onde era exatamente que eu me encontrava naquele dia de dezembro de 1992, quando foi anunciado o assassinato da atriz Daniella Perez. O assassinato brutal, que não saía do noticiário, perturbou a minha cabeça de adolescente que teve dificuldade de separar a trama da fantasia da trama da realidade, porque a bela e jovem atriz estava então participando da novela De corpo e alma, da Rede Globo, na qual contracenava com o indivíduo que a matou.

À medida que o crime, como um novelo de lã, era desenrolado, eu fui acompanhando de alguma forma as notícias, ainda sem compreender o porquê do assassinato. E, nas ruas, não era difícil ouvir pessoas dizendo que a vítima é que era a grande culpada pelo que lhe acontecera, porque, na boca do povo, ela se envolvera com um homem casado.

Eu era um adolescente alienado, como eram alienados os colegas que na época eu tinha.  E, por isso, a dimensão do caso e temas como feminicídio, cultura machista e sensacionalismo da imprensa não faziam parte do que eu compreendia e/ou questionava na vida. A vida, a minha vida, era tão somente uma sucessividade de acontecimentos que eram como deveriam ser e pronto; como se tudo o que acontecia ao meu redor e alhures fosse uma ordem natural das coisas.

Essa alienação quanto aos, digamos, grandes assuntos que moviam a sociedade brasileira naquele momento, por outro lado, não era, por assim dizer, 100% alienada, porque eu entendia muitíssimo bem, do alto dos meus quase 19 anos de idade, de violência doméstica contra mulher, porque assistira a alguns episódios em minha família, de privações materiais e de falta de horizontes para um jovem que fora abandonado pelo pai e que tinha uma formação educacional precária, como era o meu caso. Eu era muito jovem e não sabia como existir, digo melhor, eu não sabia o que fazer para sobreviver.

Às vésperas do meu 19º aniversário, o assassinato da Daniella Perez se impôs no meu cotidiano com uma presença pétrea e muito pesada. Fazia sete anos que uma de minhas tias fora assassinada a facadas por um sujeito que não se conformara com a separação; e, de alguma maneira, a morte brutal da atriz da novela das oito trouxe à minha lembrança o assassinato da irmã da minha mãe. Foi tão ruim tudo aquilo.

Os dias foram passando e as notícias do caso Daniella Perez ganharam grande volume. As notícias se avolumavam, mas não respondiam às principais perguntas que pessoas do povão, como eu, se faziam: por que mataram a moça? E por que naquelas circunstâncias? O que foi que a atriz fizera para ter a sua vida tirada daquele modo? O que é que o seu assassino queria dela?

Olhando hoje para trás e, detidamente para o caso Daniella Perez, é como se todo o episódio de vileza, crueldade, brutalidade e perversidade que a vitimou fosse um longo pesadelo do qual não se acorda nunca. É exatamente desse jeito que permanece em mim o assassinato da Daniella Perez: como um terrível e tenebroso pesadelo do qual eu não consigo despertar. E, se é assim comigo, eu fico a imaginar como é que sua mãe, como é que seu irmão e como é que seu marido conseguem lidar com essa memória, mesmo tendo transcorrido quase trinta anos do evento.

Filho de uma terra onde o sangue da morte escorre como água em rio; e onde a vingança por assassinatos parece estar no DNA das famílias de muitos dos vitimados, que tratam elas mesmas de estabelecer um senso de justiça na ausência da Justiça ou contra a benevolência e a complacência desta, talvez, por isso, eu nunca tenha me conformado, eu nunca tenha aceitado que o indivíduo que matou Daniella Perez com tesouradas, que o indivíduo que destruiu uma família inteira, que um indivíduo desumano tenha passado tão pouco tempo atrás das grades e voltado para o convívio social como se ele nada de mal tivesse feito e como se ele, de fato, tivesse pagado pelo que fez. Não proclamo a barbárie, de maneira alguma. Mas não aceito as injustiças.

Há quem diga que quem escapa da Justiça da Terra, não escapa da justiça divina. Como eu não acredito nessa ordem superior de que tanto falam, eu gostaria que a Justiça terrena nunca fosse complacente e nem benevolente para com os assassinos. Não faz sentido e não tem cabimento que alguém que cometeu um crime bárbaro, um crime hediondo goze do direito de voltar ao convívio social; essas pessoas deveriam passar o resto de suas vidas atrás das grades mergulhadas na solidão e na pequenez de suas existências malignas e vis. Não se deve, não se deveria dar segunda chance ao mal.

É lamentável e muito triste constatar que, transcorridos quase trinta anos do assassinato da atriz Daniella Perez, a Justiça brasileira permaneça complacente e benevolente para com assassinos, vide as Elizes Matsunagas e as Suzanes Von Richthofens que apareceram por aí desde aquele dezembro de 1992. O pacote de bondades que a (in) Justiça brasileira concede a praticantes de crimes hediondos inclui visitas íntimas, saídas em “datas especiais”, liberdade condicional e o troféu do delinquente: a liberdade definitiva.

Há quem diga que certas pessoas morrem para desencadear mudanças para melhor na sociedade da qual elas faziam parte, porque, segundo tal entendimento, a sociedade de um lado e o Judiciário de outro tomam o caso como exemplo e repensam os instrumentos legais pelos quais todos nós devemos balizar nossas vidas. Sim, o caso Daniella Perez e o empenho determinado de sua mãe, Gloria Perez, para que os culpados fossem severamente punidos, provocaram a inclusão do homicídio qualificado no rol de crimes hediondos. Mas isso não foi o bastante. Vigiar e punir com severidade deveria ir além da aplicação da pena; deveria fazer com que o cumprimento da pena seguisse rigorosa e integralmente até o fim sem quaisquer benefícios para o apenado.

A imagem angelical e serena de Daniella Perez permanecerá para todo o sempre guardada em minha memória fazendo um gigantesco contraponto à face demoníaca do indivíduo que a assassinou.

O mundo é injusto. A Justiça é injusta. E nós somos todos uns infelizes.

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