Por Sierra
Confesso que eu chorei como
eu estou chorando neste exato momento em que escrevo e sinto se reaproximarem
de mim lembranças de um tempo amargo e ruim. Eu não suporto ver essas coisas e
permanecer indiferente. Eu tenho um histórico de presenciar mulheres sendo
humilhadas, sobretudo quando elas se encontram em condição de vulnerabilidade
social e/ou metidas e presas a casamentos e a relacionamentos opressivos e
degradantes. Os homens somos muito dados, geralmente, a tratar mulheres como
seres que são em tudo inferiores a nós, inclusive, em inteligência, como se
elas fossem animais de carga que tudo suportam e/ou têm de suportar; como se
elas, ao fim e ao cabo, existissem tão somente para nos servir, nos ser
subalternas e saciar nossas taras e necessidades sexuais.
Quando, no domingo passado,
eu assisti ao vídeo em que um sujeito chamado Cassio Cenali aparece praticando
uma coisa repugnante, absurda e revoltante contra uma senhora, Ilza Ramos
Rodrigues, de 52 anos de idade, a quem ele costumava ajudar dando três marmitas
por semana, eu desabei em choro recordando os tantos episódios de humilhação
aos quais já assisti e, principalmente, por ter naquele instante vindo à tona,
mais uma vez, as cenas de degradação às quais a minha mãe foi submetida como
mãe solteira tendo de criar dois filhos sem ter recursos suficientes para tanto
e num tempo de completo desamparo social, sem auxílios financeiros do Estado,
sem vale-gás, sem conta de energia social, enfim, sem nada disso. O que faltava
de amparo social sobrava de repúdio e de humilhação para a minha mãe que, eu e
tenho perfeita consciência disso, comeu o pão que o diabo amassou numa
sociedade por demais misógina e cruel e que nunca deixou de sê-lo.
Do alto de sua condição de
macho economicamente bem sucedido e praticante de uma solidariedade nada
edificante e nada, nada, nada desinteressada, muito pelo contrário, o senhor
Cassio Cenali considerou que, além de praticar seu ato de desonra, seu ato de
humilhação, seu ato de crueldade, era preciso filmá-lo e repassá-lo para todos
aqueles que, como ele, compartilham da necessidade de espetacularizar e
propagar atos reprováveis, como se isso significasse e/ou representasse a
realização de um grande feito; ele considerou que era preciso filmar a
humilhante cena em que aparece praticando a sua solidariedade movida a
interesses políticos, dizendo que aquelas eram as últimas marmitas que aquela
senhora receberia, porque ela não declarou voto no candidato a presidente da República
que ele apoia.
Será que esse Cassio Cenali,
o empresário que, logo se descobriu, recebeu milhares de reais de auxílio
financeiro estatal, destinados aos socialmente desamparados, vem há anos
praticando compra de votos com marmitas em Itapeva, interior de São Paulo? Será
que Cassio Cenali acredita mesmo que o que ele fez com Ilza Ramos Rodrigues foi
um simples erro e que a sua entrega de marmita é algo que pode realmente ser
chamado de solidariedade?
Vendo o que vi eu chorei
pelas cenas degradantes em si, que dizem muito por si mesmas, mas também chorei
lamentando que existam tantos desvalidos, em geral, e tantas mulheres
desamparadas, em particular, em nossa sociedade que, no mais das vezes, se sujeitam
e/ou são sujeitadas para ter o que comer e para conseguir botar na mesa alguma
comida para os seus filhos. A imagem de uma Ilza Ramos Rodrigues em sua casa
humilde e sem reboco na escuridão da noite sendo iluminada pela câmera de
celular de um homem que, talvez, ignore o verdadeiro significado de
solidariedade, de civilidade e de humanidade, é um retrato, é um resumo de um
país onde abundam milhões de desamparados sem emprego, sem moradia digna, sem
segurança alimentar, sem acesso à boa educação e a atendimento médico de
qualidade e à mercê da criminalidade. Nunca que eu vou esquecer aquelas cenas
terríveis gravadas e distribuídas por um Cassio Cenali que possui um
entendimento próprio e muito seu do que é o ato de ajudar ao próximo, sobretudo
ao próximo que muito pouco ou quase nada tem para conseguir sobreviver.
O caso Ilza Ramos Rodrigues
foi o mais degradante numa semana marcada por outro episódio execrável de
misoginia, que foi o ataque sofrido pela jornalista Vera Magalhães, desferido
por um pusilânime deputado estadual chamado Douglas Garcia, na terça-feira, à
noite. O que esse deputado fez foi repetir o que o presidente da República
fizera contra a mesma jornalista: ofendeu-a em sua dignidade como mulher e como
profissional.
Por que esses caras se
aproveitam de suas posições de mando para agirem como agem? Por que esses
machões só atacam mulheres e não enfrentam marmanjos? Ora essa, porque eles são
uns covardes, porque eles são uns canalhas, porque eles não têm coragem de
entrar numa briga que sabem que irão perder.
Na esteira desses dois
acontecimentos eivados de misoginia, de crueldade e de covardia, o senhor
Cassio Cenali gravou um vídeo pedindo desculpas pelo ato abominável que ele
praticou; e um misógino de marca maior
como o deputado federal Eduardo Bolsonaro que, como diria a minha adorada avó
Maria da Conceição, não honra a calça que veste, tratou de repudiar , em uma rede
social, o ataque desferido contra a jornalista. Por favor, senhores, parem. A quem
pensam que podem enganar? Os pedidos de desculpas dos senhores é quase tão
cruel quanto as barbaridades que foram praticadas contra Ilza Ramos Rodrigues e
Vera Magalhães, porque soam falsos, soam fakes,
soam interesseiros. Não há pedido de desculpa que consiga limpar a barra de
quem não presta e de quem conscientemente pratica maldades.
No ano e no mês em que o Brasil comemora/comemorou os duzentos anos de sua Declaração de Independência, a humilhação e a condição da senhora Ilza Ramos Rodrigues, registradas pelo falso e cruel filantropo Cassio Cenali, figurarão como um símbolo perfeito e acabado do bicentenário de um país no qual, em que pesem as suas propaladas riquezas e a condição de ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo, milhares de indivíduos, homens e mulheres, continuam sendo mantidos na indigência e sem ter o que comer. A condição de sobrevivência da senhora Ilza Ramos Rodrigues, brasileira, 52 anos, é o retrato e o resumo de nossa insignificância enquanto nação que não consegue se desvencilhar de suas estruturas mais arcaicas, anacrônicas e daninhas.
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