17 de setembro de 2022

Ilza Ramos Rodrigues, uma sobrevivente

 Por Sierra

 



Foto: Rivaldo Gomes/Folhapress
 A condição de sobrevivência da senhora Ilza Ramos Rodrigues, brasileira, 52 anos, é o retrato e o resumo de nossa insignificância enquanto nação que não consegue se desvencilhar de suas estruturas mais arcaicas, anacrônicas e daninhas

Confesso que eu chorei como eu estou chorando neste exato momento em que escrevo e sinto se reaproximarem de mim lembranças de um tempo amargo e ruim. Eu não suporto ver essas coisas e permanecer indiferente. Eu tenho um histórico de presenciar mulheres sendo humilhadas, sobretudo quando elas se encontram em condição de vulnerabilidade social e/ou metidas e presas a casamentos e a relacionamentos opressivos e degradantes. Os homens somos muito dados, geralmente, a tratar mulheres como seres que são em tudo inferiores a nós, inclusive, em inteligência, como se elas fossem animais de carga que tudo suportam e/ou têm de suportar; como se elas, ao fim e ao cabo, existissem tão somente para nos servir, nos ser subalternas e saciar nossas taras e necessidades sexuais.

Quando, no domingo passado, eu assisti ao vídeo em que um sujeito chamado Cassio Cenali aparece praticando uma coisa repugnante, absurda e revoltante contra uma senhora, Ilza Ramos Rodrigues, de 52 anos de idade, a quem ele costumava ajudar dando três marmitas por semana, eu desabei em choro recordando os tantos episódios de humilhação aos quais já assisti e, principalmente, por ter naquele instante vindo à tona, mais uma vez, as cenas de degradação às quais a minha mãe foi submetida como mãe solteira tendo de criar dois filhos sem ter recursos suficientes para tanto e num tempo de completo desamparo social, sem auxílios financeiros do Estado, sem vale-gás, sem conta de energia social, enfim, sem nada disso. O que faltava de amparo social sobrava de repúdio e de humilhação para a minha mãe que, eu e tenho perfeita consciência disso, comeu o pão que o diabo amassou numa sociedade por demais misógina e cruel e que nunca deixou de sê-lo.

Do alto de sua condição de macho economicamente bem sucedido e praticante de uma solidariedade nada edificante e nada, nada, nada desinteressada, muito pelo contrário, o senhor Cassio Cenali considerou que, além de praticar seu ato de desonra, seu ato de humilhação, seu ato de crueldade, era preciso filmá-lo e repassá-lo para todos aqueles que, como ele, compartilham da necessidade de espetacularizar e propagar atos reprováveis, como se isso significasse e/ou representasse a realização de um grande feito; ele considerou que era preciso filmar a humilhante cena em que aparece praticando a sua solidariedade movida a interesses políticos, dizendo que aquelas eram as últimas marmitas que aquela senhora receberia, porque ela não declarou voto no candidato a presidente da República que ele apoia.

Será que esse Cassio Cenali, o empresário que, logo se descobriu, recebeu milhares de reais de auxílio financeiro estatal, destinados aos socialmente desamparados, vem há anos praticando compra de votos com marmitas em Itapeva, interior de São Paulo? Será que Cassio Cenali acredita mesmo que o que ele fez com Ilza Ramos Rodrigues foi um simples erro e que a sua entrega de marmita é algo que pode realmente ser chamado de solidariedade?

Vendo o que vi eu chorei pelas cenas degradantes em si, que dizem muito por si mesmas, mas também chorei lamentando que existam tantos desvalidos, em geral, e tantas mulheres desamparadas, em particular, em nossa sociedade que, no mais das vezes, se sujeitam e/ou são sujeitadas para ter o que comer e para conseguir botar na mesa alguma comida para os seus filhos. A imagem de uma Ilza Ramos Rodrigues em sua casa humilde e sem reboco na escuridão da noite sendo iluminada pela câmera de celular de um homem que, talvez, ignore o verdadeiro significado de solidariedade, de civilidade e de humanidade, é um retrato, é um resumo de um país onde abundam milhões de desamparados sem emprego, sem moradia digna, sem segurança alimentar, sem acesso à boa educação e a atendimento médico de qualidade e à mercê da criminalidade. Nunca que eu vou esquecer aquelas cenas terríveis gravadas e distribuídas por um Cassio Cenali que possui um entendimento próprio e muito seu do que é o ato de ajudar ao próximo, sobretudo ao próximo que muito pouco ou quase nada tem para conseguir sobreviver.

O caso Ilza Ramos Rodrigues foi o mais degradante numa semana marcada por outro episódio execrável de misoginia, que foi o ataque sofrido pela jornalista Vera Magalhães, desferido por um pusilânime deputado estadual chamado Douglas Garcia, na terça-feira, à noite. O que esse deputado fez foi repetir o que o presidente da República fizera contra a mesma jornalista: ofendeu-a em sua dignidade como mulher e como profissional.

Por que esses caras se aproveitam de suas posições de mando para agirem como agem? Por que esses machões só atacam mulheres e não enfrentam marmanjos? Ora essa, porque eles são uns covardes, porque eles são uns canalhas, porque eles não têm coragem de entrar numa briga que sabem que irão perder.

Na esteira desses dois acontecimentos eivados de misoginia, de crueldade e de covardia, o senhor Cassio Cenali gravou um vídeo pedindo desculpas pelo ato abominável que ele praticou;  e um misógino de marca maior como o deputado federal Eduardo Bolsonaro que, como diria a minha adorada avó Maria da Conceição, não honra a calça que veste, tratou de repudiar , em uma rede social, o ataque desferido contra a jornalista. Por favor, senhores, parem. A quem pensam que podem enganar? Os pedidos de desculpas dos senhores é quase tão cruel quanto as barbaridades que foram praticadas contra Ilza Ramos Rodrigues e Vera Magalhães, porque soam falsos, soam fakes, soam interesseiros. Não há pedido de desculpa que consiga limpar a barra de quem não presta e de quem conscientemente pratica maldades.

No ano e no mês em que o Brasil comemora/comemorou os duzentos anos de sua Declaração de Independência, a humilhação e a condição da senhora Ilza Ramos Rodrigues, registradas pelo falso e cruel filantropo Cassio Cenali, figurarão como um símbolo perfeito e acabado do bicentenário de um país no qual, em que pesem as suas propaladas riquezas e a condição de ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo, milhares de indivíduos, homens e mulheres, continuam sendo mantidos na indigência e sem ter o que comer. A condição de sobrevivência da senhora Ilza Ramos Rodrigues, brasileira, 52 anos, é o retrato e o resumo de nossa insignificância enquanto nação que não consegue se desvencilhar de suas estruturas mais arcaicas, anacrônicas e daninhas.

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