25 de março de 2023

Crônicas de ônibus (X)

 Por Sierra

 

Foto: Arquivo do Autor
O ônibus que quebrou defronte à UPA de Igaraçu: na rotina diária das viagens em transporte público de passageiros, por vezes nós vivenciamos experiências muito desagradáveis


Pelo menos nas linhas que eu tomo para ir ao trabalho, as segundas-feiras costumam ser muito concorridas. Os ônibus, nesse dia, normalmente vão mais lotados do que nos outros dias, porque, no meu caso, em particular, várias são as pessoas que passaram o fim de semana na Ilha de Itamaracá, onde eu moro, e, na segunda-feira, logo cedo, voltam para as suas casas e para os afazeres; e também tem aqueles que moram na ilha e trabalham bem distantes dela e que vão para os seus serviços nas segundas-feiras e só retornam nas sextas-feiras.

Na última segunda-feira eu, como de costume, embarquei na ilha e peguei um lugarzinho para sentar, lá atrás – nos fundos, na cozinha do ônibus, como dizem alguns -, e me agarrei com um livro, o que costuma ser a melhor e a mais prazerosa parte da viagem.

Quando eu desembarquei no terminal de Igaraçu para fazer a baldeação rumo a Abreu e Lima, no que costuma ser a pior e mais lamentável parte da viagem, a fila estava enorme, gigantesca. E nada de um ônibus da linha Igaraçu/Macaxeira aparecer para ao menos diminuir o número de usuários do transporte público que se encontravam ali e aplacar a angústia de quem temia chegar atrasado aos seus destinos.

O tempo foi passando. E nem sinal de ônibus daquela linha, enquanto os de outras saíam em intervalos de poucos de poucos minutos. Uma senhora começou a reclamar, em alta voz, falando em direção ao local onde ficam os fiscais do sistema Grande Recife e os controladores dos coletivos do consórcio Conorte: “Cadê os ônibus? Libera os ônibus, fiscal! A gente tem de aguentar isso, é?”. A senhora disse isso pelo menos três vezes.

Lá pelas tantas e, enfim, chegaram logo dois ônibus. E eu, de novo, consegui um lugarzinho lá nos fundos; e retomei a minha leitura, a leitura de mais um livro. E tudo foi seguindo na mesmíssima e desassossegada rotina cotidiana frequentemente vista em coletivos: muita gente de pé; estudantes a conversar com aquele entusiasmo muito próprio dos tempos das descobertas; indivíduos como que hipnotizados pelas telas dos smartphones; outros escolhendo e ouvindo músicas em alto volume como se só eles estivessem ali; empregadas domésticas contando de seus afazeres e de viagens de seus patrões... De repente o ônibus parou, estancado, defronte à Unidade de Pronto Atendimento (UPA), ainda em Igaraçu. O motorista tentou dar partida algumas vezes e nada.

Inconformados – e uns e outros proferiram xingamentos como “Só botam ônibus com problemas pra rodar nesta linha” e “Eu mereço passar por isso nesse ônibus de corno” – nós não tivemos escolha além de desembarcar e aguardar a vinda de outro coletivo para que pudéssemos chegar aos nossos destinos.

 De pronto eu fotografei o cenário e despachei, via WhatsApp, mensagem para o meu chefe informando que eu chegaria atrasado ao trabalho.

Não foi fácil embarcar no ônibus que apareceu que, de cheio, passou a ficar superlotado com a presença de quase todos os que conseguiram subir nele. Eu, que estivera sentadinho e lendo o meu livro, tive de amargar seguir viagem de pé e no aperto. Dos males o menor: o importante era que a viagem estava sendo retomada; e que nós seguíamos para cumprir as nossas tarefas e compromissos do dia.

Mas aquela viagem ainda me reservaria outro atropelo, outro dissabor, outra coisa ruim. Cinco paradas depois do ponto onde o ônibus anterior estancara, subiu um deficiente visual parrudo, negro e alto que eu já vira outras vezes naquele trajeto. O motorista chegou a pedir, ainda antes do embarque, que ele fosse lá para trás, entrando pela porta do meio, porque aquele espaço ali entre a catraca e a porta de embarque dianteira, estava lotado. Ele não deu ouvidos ao condutor. E subiu, certamente seguro de que alguém lhe cederia um dos assentos. Ocorreu que senhorinhas idosas estavam ocupando os tais assentos prioritários; e nenhuma delas, naquele aperto e naquele incômodo danado, se dispôs a ceder o lugar a ele. E aí o temo fechou dentro do ônibus.

Com uma empáfia e com uma fúria própria dos que se julgam injustiçados e prejudicados de alguma forma, o deficiente visual começou a xingar uma das senhorinhas que estava sentada na cadeira junto da qual ele se encostou. Foi uma das maiores demonstrações de estupidez e de covardia praticada contra uma mulher que eu já presenciei em toda a minha vida. Posando o tempo todo de vítima e como se fosse detentor de todos os direitos do mundo, o ignóbil e mal-educado deficiente visual só não chamou a senhorinha de arroz doce: “Você não é idosa coisa nenhuma”; “Pensa que Deus gosta de quem faz maldade é?”; Você não presta”; “Tua vida vai acabar hoje”; “Coisa ruim”; “Desgraçada”; etc., etc. A senhora estava calada e calada ficou. Nisso, pessoas lá de trás começaram a rebater o homem, dizendo que ele deveria respeitar a senhorinha; que o ônibus estava lotado; que ele estava agindo errado; etc., etc. Desembarquei antes do deficiente visual; e não sei como foi o desfecho do lamentável episódio.

Viagens em transporte público de passageiros por vezes nos reservam algumas muito desagradáveis experiências.

Estou até agora remoendo a minha inação diante do ocorrido.

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