4 de março de 2023

Sobre envelhecer

Por Sierra


Foto: Sheilla Araújo
Quero acreditar que, sim, eu tive uma crise etária e que ela foi superada. Nós nunca que conseguiremos física e organicamente nos sobrepor ao transcurso do tempo com tudo que ele nos acarreta. Nós devemos aprender a viver dentro da dimensão de um ciclo que jamais será contornado nem alterado. Vivamos dentro das possibilidades de alcance de alegrias, prazeres e satisfações que pudermos alcançar. Não há nada que nós possamos fazer contra o correr do tempo. Como muito bem ensinou Angela Ro Ro, “só nos resta viver”


Puxando o fio do novelo de lã de minha memória, eu recordo que foi a partir do ano passado que um pensamento inquietante e ruim veio me perseguindo como uma força que chega para nos tirar do eixo, nos abalar e nos perturbar. No percurso dos meus, então, 48 anos de idade, eu me vi sendo tomado pelos desafios e pelas perspectivas de enfrentar o fato real e inconteste de que envelhecer é um acontecimento irrefreável da vida.

E como isso se deu em mim? Ninguém envelhece do dia para noite; o processo é lento e contínuo. Sim, de fato existem pessoas cujos traços fisionômicos, consequência de vários fatores, como exposição excessiva ao sol sem qualquer proteção, aparentam ser mais velhas do que a idade que o registro de nascimento assinala; assim como também há indivíduos que vez por outra ouvem falas do tipo: “Você está muito bem. Nem aparenta a idade que tem”. Não foi propriamente o se olhar no espelho que marcou em mim a clareza de que eu envelheci; essas mudanças na aparência física vão-se processando lentamente e nós – eu pelo menos – tendemos a nos acostumar com isso e/ou a recorrermos a intervenções estéticas – eu não recorria ainda a elas – que, digamos, mascaram um pouco os sinais inescapáveis do envelhecimento. O que em mim revelou e me fez cair na real que eu estou envelhecido, que eu não sou mais um jovem garotão de músculos estufados e pele brilhante de vivacidade foi o caminhar pelas ruas e parecer que eu acionei um modo para ficar invisível e passar pelas pessoas sem ser notado, como certos personagens da ficção fazem. E isso, para mim, foi uma constatação, uma paulada sem aplicação de anestesia na minha autoestima.

O termômetro dos olhares na rua diz muito do quanto a velhice é rigorosa e implacavelmente excludente. Eu sei e você que me lê agora também sabe que uns e outros gostam e apreciam ter a companhia afetiva e sexual de pessoas mais velhas ou “maduras”, que é o termo eufemisticamente usado por alguns, porque “velho”, por vezes, soa pesado demais, como se estivéssemos nos referindo a coisas e não a seres humanos. Ocorre que esses indivíduos que sentem desejo e interesse por pessoas mais velhas são a exceção à regra; a regra valoriza e o tempo todo exalta a jovialidade, a beleza, o vigor, o viço e o esplendor da juventude, como se envelhecer fosse algo fora da realidade da sociedade ou um fato que pode ser evitado, como um mal que devemos combater. Pensar que, tempos atrás, você passava na rua e recebia cantadas e olhares de desejo e cobiça e que, agora, vagueia por aí como se estivesse operando no modo invisível, foi o primeiro baque que a perda da juventude me deu. E eu avaliei o meu comportamento nas ruas e admiti que eu, amiúde, igualmente ignoro até mesmo pessoas que estão aparentemente na minha faixa etária. Ou seja, eu repito a rejeição que me dirigem.

No mês passado, pelos dias que antecederam o Carnaval, o pensamento da velhice, da constatação pétrea da velhice e dos efeitos em todos os sentidos e aspectos da vida cotidiana que ela provoca, voltou a me perseguir com seu chicote afiado para bater em minhas costas. E uma série de acontecimentos se encadeou para me mergulhar momentaneamente no mar da tristeza, eu que tanto queria e só queria naqueles dias o estímulo revigorante da alegria que o Carnaval me proporciona.

Tendo trabalhado em pleno sábado de Zé Pereira, lá no Recife, eu fiz parte do meu longo percurso de volta para casa com o meu querido camarada Adalberto Henrique Passos, que é alguns poucos anos mais novo do que eu. Entre as tantas coisas que nós pusemos em pauta na conversa entrou essa minha crise etária. Coincidentemente ou não, porque nós somos dois quarentões, ele também me falou da “invisibilidade” ao estar na rua; e completou dizendo: “Eu me olho no espelho e vejo, sim, que eu tô velho, que o tempo passou. Mas eu não me sinto velho”.

Esta frase “Mas eu não me sinto velho” ficou martelando na minha cabeça. Afinal, o que é se sentir velho? Como eu vou saber que comecei a me sentir velho? Eu me fiz essas perguntas e de pronto eu me dei conta que, na verdade, a minha crise etária e o pensamento esboçado pelo Adalberto Henrique Passos são indicativos de que, sim, tanto eu como ele, já estamos nos sentindo velhos.

No dia seguinte, indo de ônibus para o Carnaval de Olinda, eu aproveitei parte da viagem para continuar a ler a 3ª edição do Diário de viagem, do Albert Camus (Trad. Valerie Rumjanek Chaves. Rio de Janeiro: Editora Record, s. d.), um livro que, pelo título e pela imagem de um Camus sorrindo na capa, pode levar um incauto a pensar que se trata de uma narrativa solar, quando, na verdade, ela é sombria – mais de uma vez  o narrador fala, por exemplo, que pensou em suicídio.

Chegando ao alvoroço de Olinda, à muvuca de Olinda eu atravessei sozinho ruas e ladeiras me fartando de alegria, vendo a vida acontecendo de maneira potente depois do inesquecível tormento de uma pandemia mortal que eu e todos aqueles que estavam ali conseguimos superar.

Dirigi-me à Praça do Carmo a fim de acompanhar a apresentação do setentão Jorge Aragão, que chegou ao palco com um atraso de uma hora e meia, atraso esse que deixou a plateia ouriçada; porém, bastou que ele começasse a cantar para que ganhasse o público e o aborrecimento provocado pelo atraso ficasse para trás. O danado foi que, em vários momentos do show, Jorge Aragão fez referências ao peso de sua idade: perguntou se estávamos “cansadinhos”, porque ele já não tinha o pique de antes; disse que já era um vovô; e que “Antes eu fazia samba assim, acelerado, mas a idade foi chegando. Eu não sou bobo”, como quem diz, eu me adequei ao ritmo lento da minha idade avançada.

Ali, na plateia, eu mirei mais de uma vez uma figura visivelmente mais jovem do que eu e senti que não estava lhe agradando. Na minha cabeça isso era mais uma evidência de que a idade virara um fator negativo para a paquera.

Naquele domingo de Carnaval eu voltei bem cansado para casa. Deitado na cama eu recordei os acontecimentos daquele e de outros dias, pus tudo num caldeirão de amargura – crise etária, narrativa do Camus, falas do Jorge Aragão e a rejeição da paquera – e caí num choro doído. Choro esse que minha amiga Fabiana Pereira me diria, depois de ouvir o meu relato, que faz parte de um processo de crescimento. Eu só sei que chorei e logo adormeci, como se o choro tivesse sido um lenitivo, um dissipador do tormento.

Em seu Saber envelhecer, Marco Túlio Cícero, que nasceu em Arpino, próximo de Roma, em 106 a. C., disse que “A velhice só é honrada na medida em que resiste, afirma seu direito, não deixa ninguém roubar-lhe seu poder e conserva sua ascendência sobre os familiares até o ultimo suspiro. Gosto de descobrir o verdor num velho e sinais de velhice num adolescente. Aquele que compreender isso envelhecerá talvez em seu corpo, jamais em seu espírito” (Saber envelhecer e A amizade. Trad. Paulo Neves. Porto alegre: L&PM, 1997, p. 32). Já Ecleá Bosi, num estudo que é uma das coisas mais interessantes e emocionantes que eu até hoje li, afirmou que, “Além de ser um destino do indivíduo, a velhice é uma categoria social. Tem um estatuto contingente, pois cada sociedade vive de forma diferente o declino biológico do homem. A sociedade industrial é maléfica para a velhice. Nas sociedades mais estáveis um octogenário pode começar a construção de uma casa, a plantação de uma horta, pode preparar os canteiros e semear o jardim. Seu filho continuará a obra” (Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p 77).

Vivemos, como eu disse, numa sociedade que cultua e louva apenas o vigor e a beleza da juventude, de modo que, não raro, as famílias encaram os seus idosos como fardos pesados demais para carregar, como em A balada de Narayama, o incisivo e poderoso filme do diretor Shoei Imamura que, no mês que vem, completará quarenta anos do seu lançamento, e ao qual eu assisti na faculdade. Eu mesmo tive uma experiência muito dramática com a minha avó Maria da Conceição, o que me deu alguma lição de como lidar e se preparar para os dissabores da velhice.

Eu sei que a crise etária que atravessei de algum modo me reposicionou frente ao inevitável da vida. O discurso imperativo da inalcançável juventude eterna parece ser um mal que não passa; daí por que atacaram e permanecem atacando o brilhante Leandro Karnal pelo fato de ele, que tem 60 anos, estar morando com um jovem de 27, ataques esses que, na verdade, são duplos: pelo etarismo e pela homofobia; e daí por que, também, costuma-se tratar as pessoas de idade avançada como indivíduos que não servem mais, como objetos que perderam a sua utilidade – a expressão “Você está parecendo um velho”, utilizada para dizer que alguém está deixando de fazer “coisas correspondentes à sua idade” é também sintomática desse desprezo pela velhice.

Quero acreditar que, sim, eu tive uma crise etária e que ela foi superada. Nós nunca que conseguiremos física e organicamente nos sobrepor ao transcurso do tempo com tudo que ele nos acarreta. Nós devemos aprender a viver dentro da dimensão de um ciclo que jamais será contornado nem alterado. A velhice desamparada deve sim ser tomada como algo terrível que poderá nos cometer. Mas não devemos nos deixar consumir por esses pensamentos. Vivamos dentro das possibilidades de alcance de alegrias, prazeres e satisfações que pudermos alcançar. Não há nada que nós possamos fazer contra o correr do tempo. Como muito bem ensinou Angela Ro Ro, “só nos resta viver”.

Um comentário:

  1. Em menção ao texto... Quero acreditar que ao envelhecer nos tornamos mais experiente, mais bonitos, porque eu prefiro estar com eu estou hj e como diz a música de Sérgio Reis " Panela velha é que faz comida boa". Referindo- me a prazeres prefiro os mais velhos. Além claro, dos contornos da idade, ter uma mente jovial nos ajuda a enfrentar os medos que a mente nos proporciona. Por isso, viva a vida com o privilégio de ser mais experiente.

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