Por Sierra
Passado
É do renomado historiador
francês March Bloch, a afirmativa que diz que “A incompreensão do presente
nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas é talvez igualmente inútil
esgotar-se a compreender o passado, se nada se souber do presente” (Apud Jacques
Le Goff. “Passado/presente”. In História
e memória. 4ª ed. Trad. Bernardo Leitão et al. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996, p.
223-224).
Pensei nessa afirmativa de
Marc Bloch quando eu resolvi outra vez abordar a presença da Praça da Bandeira,
localizada na região central de Abreu e Lima, cidade que dista a cerca de 19 km
do Recife – e que não faz parte do interior de Pernambuco, como foi dito
recentemente numa matéria publicada pelo UOL, erro esse que eu comuniquei ao site - como um
dos cenários-símbolos da Campanha pelas Diretas Já! que, no último dia 31 de
março, no caso de Abreu e Lima, marcou 40 anos do seu início como um dos
movimentos mais contundentes e desafiadores contra a supressão do direito de
voto para presidente da República estabelecida pela Ditadura Militar que tomou
de assalto este país em 1964 e se prolongou até 1985, carregando em seu bojo,
além da censura, um sem-número de crimes de diversas naturezas – tortura,
mortes e ocultação de cadáveres, etc. – sob a justificativa de que o Estado
estava lutando contra subversivos comunistas, subversivos esses que, a bem da
verdade e ainda que em proporções muito menores do que as que foram levadas a
cabo pelo aparato repressivo estatal, também cometeram algumas atrocidades na
luta pelas causas que eles defendiam.
A propósito, o Cardeal Dom
Paulo Evaristo Arns, no prefácio para um livro que reúne a descrição do modus operandi do Estado ditatorial
militar contra os ditos subversivos – a favor da verdade também seja dito que
ser contra o regime instituído pelas Forças Armadas, era ser tomado como
subversivo, quer o cidadão militasse numa organização clandestina ou não –
disse o seguinte:
Durante
os tempos da mais intensa busca dos assim chamados “subversivos”, atendia eu na
Cúria Metropolitana [de São Paulo], semanalmente, a mais de vinte senão cinquenta
pessoas. Todas em busca do paradeiro de seus parentes [...]
Não
há ninguém na Terra que consiga descrever a dor de quem viu um ente querido
desaparecer atrás das grades da cadeia, sem mesmo poder adivinhar o que lhe
aconteceu. O “desaparecido” transforma-se numa sombra que ao escurecer-se vai
encobrindo a última luminosidade da existência
(Dom Paulo Evaristo Arns. “Testemunho e apelo” [prefácio]. In Brasil: nunca mais. 13ª ed. Petrópolis:
Editora Vozes, 1985, p. 11 e 12).
Por seu turno o historiador
Jacob Gorender, um dos poucos militantes da luta armada contra a ditadura dos
militares que tiveram a coragem e/ou a iniciativa de fazer uma autocrítica,
esclareceu a natureza contra-revolucionária da caserna nestes termos:
Tornou-se
corrente na literatura acadêmica a assertiva de que, no pré-64, inexistiu
verdadeira ameaça à classe dominante brasileira e ao imperialismo. Os golpistas
teriam usado a ameaça apenas aparente como pretexto a fim de implantar um
governo forte e modernizador.
A
meu ver, trata-se de conclusão positivista superficial derivada de visão
estática das coisas. Segundo penso, o período 1960-1964 marca o ponto mais alto
das lutas dos trabalhadores brasileiros neste século, até agora. O auge da luta
de classes, em que se pôs em xeque a estabilidade institucional da ordem
burguesa sob os aspectos do direito de propriedade e da força coercitiva do
Estado. Nos primeiros meses de 1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária
e o golpe direitista se definiu, por isso mesmo, pelo caráter
contra-revolucionário preventivo. A classe dominante e o imperialismo tinham
sobradas razões para agir antes que o caldo entornasse
(Jacob Gorender. Combate nas trevas – A
esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 2ª ed. São Paulo:
Editora Ática, 1987, p. 66-67).
Do lado de lá, como
integrante das Forças Armadas e membro atuante do sistema repressivo estatal, o
coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra escreveu um livro no qual
não apenas atacou como também desacreditou tudo o que pôde dos relatos dos por
ele chamados de “revanchistas” – as fotografias do Caso Vladmir Herzog, por
exemplo, ele disse que eram falsas -, os militantes de esquerda. E lá pelas
tantas de sua volumosa obra ele nos disse de uma “vingança dos derrotados”, o
que, a meu ver, examinando o desenrolar das lutas, revela que o estudo do
período da Ditadura Militar requer ouvir e consultar ambos os lados, como devem
ser os estudos realmente sérios. Eis o que registrou o coronel Brilhante Ustra:
Como
acontece e todos os movimentos onde os comunistas são derrotados, eles iniciam
a sua volta lutando pela anistia, que, uma vez conquistada, lhes permite viver
usando as liberdades democráticas que queriam destruir. Posteriormente, começam
uma virulenta campanha para denegrir os que os combateram, posam de vítimas e
de heróis e fazem da mentira e da calúnia o seu discurso. Não descansam
enquanto não conseguem, por revanchismo, colocar na prisão aqueles que os
combateram e derrotaram. Para isso, mudam as leis e até a própria Constituição,
o que é feito com a corrupção do Legislativo e com o apoio de simpatizantes,
escolhidos a dedo, para as mais altas funções do Judiciário
(Carlos Alberto Brilhante Ustra. A
verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça.
4ª ed. Brasília: Editora Ser, 2007, p. 546).
Em que pesem as trocas de
acusações e as ações criminosas protagonizadas por ambos os lados – pelos militantes
de organizações de esquerda e pelos integrantes das Forças Armadas – durante o
período da Ditadura Militar, do longo período da Ditadura Militar, o meu
entendimento como historiador e pesquisador e como cidadão partidário dos
ideais democráticos, é que nesse embate faltam autoanálises e reconhecimento de
culpabilidade e de autoria de práticas criminosas nas duas vertentes. Contudo,
penso que aos militares, às Forças Armadas em si, falta também a compreensão de
que o papel do Estado, no que diz respeito à proteção dos cidadãos e à garantia
dos seus direitos individuais, não significa lançar mão de um aparato que, além
de criminoso, é desumanizador. A tortura, sob variadas formas, foi o recurso ao
qual os agentes do Estado mais recorreram na luta desigual que travaram contra
os ditos subversivos comunistas. E a institucionalização da cultura da tortura,
digamos assim, fazendo par com a ocultação e o sumiço de corpos, expuseram e
escancararam aos quatro cantos do mundo que, embora a todo momento dissessem,
em alto e bom som, que estavam travando uma batalha em defesa da democracia, os
militares das Forças Armadas mantinham de pé uma ditadura; e recorriam às
formas mais vis, abjetas, aviltantes e desumanizadoras para combater todos
aqueles que eles marcavam como inimigos do Estado democrático de direito. Dito
isso, a mim me parece que, ainda assim, nenhuma autocrítica, nenhuma
indenização, nenhum pedido de perdão e nenhum reconhecimento de autoria de
crimes conseguem sequer suavizar a gravidade dos fatos, porque a defesa da
democracia e dos pilares que a sustentam deve estar de modo inescapável alinhada
com os fundamentos da legalidade e dos princípios constitucionais. Democracia
que desumaniza os seus cidadãos é qualquer outra coisa, menos democracia.
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Apesar de arborizada, a Praça da Bandeira não se apresenta como um local acolhedor para os seus usuários, porque nem mobiliário, como bancos, ela possui |
Presente
Nos últimos quatro anos,
período de vigência do governo do presidente da República Jair Bolsonaro, um
egresso do Exército, o assunto Ditadura Militar – os militares não aceitam tal
definição; eles chamam esse acontecimento histórico de Revolução de 1964 –
figurou constantemente no noticiário porque, na esteira de uma ideologia e de
uma postura nitidamente fascistas – até o slogan do governo, “Brasil acima de
tudo e Deus acima de todos”, evocava as “Marchas da família com Deus pela liberdade”,
ocorridas no primeiro ano do golpe de 1964 -, Jair Bolsonaro reiteradamente
louvava torturadores militares e mantinha, em tom de ameaça, um discurso em que
deixava claro que poderia acionar as Forças Armadas contra as instituições que,
segundo ele dizia, estavam “jogando fora das quatro linhas” – não foi à toa que
ele aparelhou a máquina administrativa do Estado com milhares de militares –
para “atrapalhar” o seu péssimo governo.
Aos elogios aos torturadores
e ditadores militares, Jair Bolsonaro colou em seus discursos antidemocráticos
uma suposta “ameaça de comunização do país”, caso o Brasil voltasse a ser
governado pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Esses discursos atiçaram corações
e mentes, angariando uma adesão de milhões de pessoas – muitas delas na casa dos
seus vinte e de trinta e poucos anos -, pessoas essas que, tudo leva a crer,
nunca leram um bom manual de História do Brasil para tomar conhecimento das
atrocidades todas que os militares golpistas de 1964 praticaram “em defesa da
Pátria e da democracia”; e, caso tenham lido, essas pessoas são de um
mau-caratismo e de uma malignidade absurdas, porque elas são contra aquilo que
a humanidade compreende como processo civilizatório.
E o que se viu foi a
escalada de manifestações em ruas, praças e avenidas em que homens e mulheres
pediam e até imploravam ajoelhados que as Forças Armadas dessem novamente um
golpe de estado neste país e fechassem o Congresso Nacional e o Supremo
Tribunal Federal (STF) dando, ao mesmo tempo, legitimidade aos atos
ensandecidos e autoritários do (des) governo de Jair Bolsonaro. E, como todos
nós vimos, setores da sociedade se mobilizaram para frear os ímpetos
antidemocráticos porque as bravatas de Jair Bolsonaro poderiam ser mais do que
bravatas, dado o histórico desabonador das Forças Armadas para aderirem a
supostos planos de redenção da nação. E o auge, o ponto máximo de todas as
manifestações e ameaças de golpe foram os acontecimentos de depredação,
destruição e saques ocorridos no Congresso Nacional e no STF, em Brasília, no
último dia 8 de janeiro, quando os ditos patriotas deram demonstrações cabais
de que eram e são tudo, menos gente de bem, como demonstraram as folhas
corridas de crimes de uns e outros que apareceram aqui e ali na imprensa.
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Ao fundo, à direita, vemos a Escola Polivalente; e à esquerda, posto de saúde da Prefeitura Municipal |
A Campanha pelas Diretas Já!
Seguramente o maior evento
cívico da História recente deste país, a Campanha pelas Diretas Já! foi um
movimento que mobilizou milhares de brasileiros nos estertores da Ditadura
Militar. Um movimento encabeçado por lideranças políticas que foi num crescendo
enorme na luta pelo fim do regime autoritário e pelo reinício, pelo recomeço de
um viver sob um regime democrático, onde os cidadãos aptos a votar poderiam
voltar a escolher e eleger diretamente todos os seus representantes políticos,
inclusive, o presidente da República.
Aqueles milhares de
brasileiros que encheram praças por este país afora se envolveram e se
entregaram ao movimento com uma gana e com uma vontade enormes. No depoimento
que prestou para o livro Histórias do
poder, o jornalista José Augusto Ribeiro comentou a ocasião em que houve
pressão do governo para que a TV Bandeirantes não transmitisse o primeiro
comício das Diretas em São Paulo:
As
pressões eram muito ostensivas, não havia muita cerimônia. Chegaram a punir a
Rádio Bandeirantes, não a televisão, a pretexto de ter dado uma notícia não sei
se greve em postos de gasolina, alguma coisa assim, que “atingiria a segurança
nacional”... Era o processo de intimidação. E houve determinações explícitas: “Não
pode transmitir o comício das Diretas”. O comício estava sendo transmitido pela
TV Cultura, de São Paulo, que é controlada pelo governo do Estado. E o governador
era o governador Franco Montoro, um dos grandes líderes da campanha das
Diretas. Mas o que o governo não queria era que o comício fosse transmitido
para fora de São Paulo [...] Quando foi mais ou menos quinze para as sete [da
noite, hora do principal jornal da Bandeirantes, apresentado por Joelmir
Beting], entrou na redação, na sala do jornalismo, o diretor-presidente da TV
Bandeirantes, João Jorge Saad, o nosso Seu João, muito angustiado, tão
angustiado quanto nós, talvez mais angustiado do que nós e nos reuniu e disse: “Olha,
nós temos que pôr essas imagens no ar. Nunca houve um comício assim em São
Paulo. Nunca se reuniu na Praça da Sé uma multidão como essa. Vamos pôr no ar
sejam quais forem as consequências” (José Augusto Ribeiro. In
Alberto Dines, Florestan Fernandes Jr. e Nelma Salomão [orgs.]. Histórias do poder: 100 anos de política no
Brasil, vol. 1: Militares, Igreja e sociedade civil. 2ª ed. São Paulo:
Editora 34, 2001, p. 270-271).
Eu, que era apenas uma
criança quando as primeiras manifestações pelas Diretas Já! começaram a
ocorrer, sempre me emociono quando leio depoimentos como o de José Augusto
Ribeiro e quando eu vejo imagens dos comícios e dos personagens que lutaram
contra os ditadores militares em defesa da democracia e que apoiaram bravamente
a chamada Emenda Dante Oliveira, que
reivindicava o restabelecimento da votação direta, proposta essa que seria
derrotada em votação na Câmara dos Deputados provocando uma tristeza sem-par
nos tantos que nela apostaram como o início da mudança para melhor da condução
da vida nacional.
Contudo, a luta pela
redemocratização não foi em vão: ainda que numa eleição indireta, o candidato
de oposição aos ditadores militares, Tancredo Neves, sagrou-se vencedor,
acontecimento esse que fez milhares de cidadãos mergulharem numa alegria e numa
euforia igualmente sem-pares.
Recordando um dos comícios
no qual figurou no meio da multidão, o poeta maranhense Ferreira Gullar disse
assim numa entrevista:
Eu
estava lá no meio deles. Eu estava lá. Só me neguei a ir para o palanque quando
me convidaram. Mas estava lá no meio da massa. Acho que aquilo foi uma
maravilha. Quando se decidiu que o Tancredo era o candidato, eu já comecei a
ficar na maior euforia, fizemos uma reunião aqui no teatro Casa Grande [no Rio
de Janeiro], chamamos o Tancredo, e preparamos um ato que ficou famoso, aquele
negócio das mãos dadas para cima cantando o Hino Nacional, uma coisa organizada
por nós [...] No dia em que ele foi eleito, nós fizemos uma manifestação em Ipanema.
Terminamos bêbados, de alegria e de chope. Estava na maior euforia.
Infelizmente, Tancredo em seguida adoeceu (Ferreira Gullar. In
Alberto Dines, Florestan Fernandes Jr. e Nelma Salomão. Op. cit., p. 239).
O adoecimento e o
falecimento de Tancredo Neves ocorreram antes que o valente e hábil político mineiro
de São João Del Rey tomasse posse na presidência da República. A sua vitória no
pleito foi a consagração de toda uma vida dedicada ao desenvolvimento e à
democracia plena do Brasil. No documentário Tancredo
Neves – Mensageiro da liberdade (Direção geral de Fernando Barbosa Lima.
FBL Criação e Produção, 2005. DVD), Pedro Simon afirmou que Tancredo Neves foi “A
pessoa que mais reagiu contra a ditadura, o primeiro de todos, o que saiu na
frente, foi o Tancredo [...] Ele foi herói várias vezes”.
É de Tancredo Neves esta
afirmativa lapidar que eu considero tão apropriada para os dias de hoje em que
o autoritarismo – de direita e de esquerda – mantém seus tentáculos ameaçadores
sobre a democracia: “O processo ditatorial, o processo autoritário traz consigo
o germe da corrupção. O que existe de ruim no processo autoritário é que ele
começa desfigurando as instituições e acaba desfigurando o caráter do cidadão”
(trecho de um discurso de 1982 que aparece na contracapa do DVD citado).
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Neste ângulo vemos ao fundo e à esquerda, a 1ª Igreja Batista de Abreu e Lima |
E
onde entra a Praça da Bandeira em toda essa História?
Bom, a grande questão é
exatamente esta: por que o comício havido na Praça da Bandeira, em Abreu e
Lima, no dia 31 de março de 1983, não figura nas narrativas historiográficas
que tratam da Campanha pelas Diretas Já!?
A meu ver isso se explica
por diversos fatores: 1º) o evento teve lugar numa cidade praticamente
desconhecida pelo centro-sul do país; 2º) não há, ao que parece, registros
documentais do que ocorreu naquele dia – fotos do comício, por exemplo, eu sei
que não existem, porque, temendo represálias, o fotógrafo convocado para tanto,
não apareceu; 3º) até
agora não se deu a devida publicidade ao evento de modo a disseminar o acontecimento
histórico, inclusive, nos meios escolares e acadêmicos, algo que poderia em
parte ser mudado com a elaboração de um livro e de um documentário audiovisual
que registrassem e guardassem a memória que fosse possível do que aconteceu,
aproveitando que dois dos seus quatro personagens principais, os ex-vereadores
Reginaldo Silva e Severino Farias, estão vivos e bem dispostos, como deixaram
ver em depoimentos para uma reportagem do site UOL (Adriano Alves. “’Quem sabe faz a hora’: a história do 1º ato
das Diretas Já, em Pernambuco”. UOL,
1º de abril de 2023. Acesso em 1º de abril de 2023. In https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2023/04/01/quem-sabe-faz-a-hora-1-ato-das-diretas-ja-foi-no-interior-de-pernambuco.htm
.
Essa ausência, na
historiografia, do comício reivindicatório de eleições diretas, ocorrido em
Abreu e Lima, que deve sim ser reconhecido e tomado como um dos marcos
germinais da grande campanha cívica que tomaria o país a partir de 1983,
explica, por exemplo, porque no documentário Tancredo Neves – Mensageiro da liberdade, os pernambucanos que
prestaram depoimentos para a obra, simplesmente ignoraram e não mencionaram o
que se viu naquele fim de tarde de 31 de março de 1983, em cima de um caminhão,
na Praça da Bandeira, no qual, além de Reginaldo Silva e Severino Farias, estiveram os também vereadores Antônio Amaro e José da Silva Brito, presidente da Câmara Municipal. O recifense Fernando Lyra, que foi ministro da Justiça no
governo do presidente José Sarney, chegou a dizer que o comício inaugural do
movimento ocorreu em Curitiba, em “dezembro de 1983”, ou seja, nove meses depois
do que fora realizado em Abreu e Lima.
A leitura e a importância
dos signos e dos símbolos na construção de uma identidade nacional são imensas.
E, não raro, a construção dessa ordem simbólica decorre de discursos de quem
quer e/ou pretende estabelecer tal símbolo ou tal signo como algo
representativo de uma dada situação, de um certo acontecimento ou de alguma
ideologia.
Pensando em tais questões eu
recordei o estudo A formação das almas: o
imaginário da República no Brasil, no qual José Murilo de Carvalho nos
mostrou o processo em que resultou a escolha de Tiradentes como “herói nacional”,
ou seja, como a face, como a cara e até como um símbolo da República que fora proclamada
em 15 de novembro de 1889. Disse-nos o arguto historiador mineiro:
A
busca de um herói para a República acabou tendo êxito onde não o imaginavam
muitos dos participantes da proclamação. Diante das dificuldades em promover os
protagonistas do dia 15, quem aos poucos se revelou capaz de atender às
exigências da mitificação foi Tiradentes (José Murilo de Carvalho. A formação das almas: o imaginário da
República no Brasil. 4ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1998,
p. 57).
Considerando o simbolismo da
efeméride – o comício havido na Praça da Bandeira completou 40 anos no último
dia 31 de março – e como eu fizera noutra ocasião, também para reunir registros
fotográficos destinados à ilustração de um artigo, na última quarta-feira, eu
saí do meu trabalho, à tarde, e fui rever aquela praça que é tão presente na
minha memória, porque ao lado dela eu passei durante os vários anos em que
estudei na Escola Polivalente de Abreu e Lima, outra instituição histórica da
cidade que, neste 2023, está completando 50 anos de sua inauguração, e que
ocupa parte do entorno da praça.
Como da outra vez, eu me
deparei com um quadro desolador. A Praça da Bandeira, que nem mastro para
bandeira possui, continua tristemente largada e desprestigiada tanto como
espaço de convívio social quanto como marco e cenário de um importante
acontecimento da História da cidade e, por extensão, do país.
Certa feita o general
espartano Pausânias declarou: “Não se pode chamar de cidade um lugar onde não
existam praças e edifícios públicos” (Apud Camilo Sitte. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. Trad.
Ricardo Ferreira Henrique. São Paulo: Editora Ática, 1992,p. 22). Por seu
turno, o crítico literário francês Roland Barthes disse: “Eu leio textos,
imagens, cidades, rostos, gestos, cenas, etc.” (Apud Peter Burke. Testemunha ocular: história e imagem. Trad.
Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru: EDUSC, 2004, p. 44).
Considerando tais citações e
me colocando como uma “testemunha ocular” eu pergunto e também respondo: Abreu
e Lima é uma cidade sem praças? Não, não é. Ela possui algumas, como a Praça
São José, da qual os brinquedos infantis foram retirados e os bancos de madeira
estão quase todos danificados; a Praça Antônio Vitalino de onde a
Municipalidade retirou uma tradicionalíssima e muitíssimo procurada feira livre
e um Mercado Público para transformar a área num estacionamento; e como a Praça
da Bandeira, onde a falta de jardim e de mobiliário são ausências gritantes e
onde um ponto de descarte de lixo marca presença de maneira vergonhosa e
lamentável para o visitante e/ou pretenso frequentador do espaço, além de
revelar que os próprios moradores do seu entorno não têm qualquer zelo pela
área pública.
E qual a leitura que se pode
fazer dessa situação? Que sucessivas administrações municipais nunca se
importaram de fato e nem reconheceram o valor histórico da Praça da Bandeira
para as memórias urbana e social da cidade de Abreu e Lima.
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Vista tomada a partir do posto de saúde: a Praça da Bandeira merece ser revitalizada e ser reconhecida pela Municipalidade como um dos locais históricos da cidade |
Por que não mudar essa realidade?
Tradições não se originam de
maneira espontânea, na brotam na superfície da terra sem terem sido semeadas. “Muitas
vezes – disse-nos Eric Hobsbawm – ‘tradições’ que parecem ou são consideradas
antigas são bastante recentes, quando não são inventadas” (Eric Hobsbawm. “Introdução:
A invenção das tradições”. In Eric Hobsbawm e Terence Ranger [orgs.]. A invenção das tradições. Trad. Celina
Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 11).
Dito isso e considerando o significado e a importância da Praça da Bandeira como um lugar possuidor de uma memória histórica, eu proponho à Municipalidade abreulimense que procure, além de fomentar a elaboração de um livro e de um documentário audiovisual que registrem o que for possível da memória daquele comício germinal da Campanha pelas Diretas Já!, criar, inventar, instituir a tradição em Abreu e Lima de reverenciar esse acontecimento bastante significativo da História da cidade, inscrevendo o 31 de março no seu calendário cívico; propondo que o evento integre a grade curricular da rede municipal de ensino; instalando na Praça da Bandeira um marco dizendo daquele acontecimento; e estabelecendo que todos os anos a Praça da Bandeira seja palco de uma cerimônia cívica, no dia 31 de março, com o hasteamento das bandeiras da cidade, do estado e da nação. São ações muito simples e de fácil execução como essas que podem contribuir para que eventos históricos, como o comício do dia 31 de março de 1983, criem raízes e permaneçam na memória social dos habitantes de Abreu e Lima e se espalhem para além dos seus locais de origem.
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A Praça da Bandeira: pequena em espaço físico e imensa como detentora de uma memória histórica importante para todo o país |
É sabido que, quando
passamos a ignorar e/ou a descrer do nosso passado, tendemos a aceitar como
verdade, mentiras que nos são contadas no tempo presente. Valorizar e
reverenciar acontecimentos importantes da vida nacional e local é manter viva a
nossa História.
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