27 de maio de 2023

Personas urbanas (30)

 Por Sierra

 

Pense, fale compre, beba.

Leia, vote, não se esqueça.

Use, seja, ouça, diga.

Tenha, more, gaste, viva.

                                                Admirável chip novo. Pitty

 

 

Eu não tenho medo de pensar por mim mesmo. A ciência, digo, os cientistas costumam falar das instâncias do cérebro e do que entendemos como conhecimento como algo que vai se processando e evoluindo em diferentes etapas de desenvolvimento do nosso corpo. Eles também são pródigos em afirmar que, quanto mais estímulos nós tivermos na infância, maior será a capacidade do cérebro de ampliar esse desenvolvimento, nos dotando das mais diversas competências.

Fiz essa breve introdução com seu quê de “científica” só para dar relevo ao que eu quero realmente tratar hoje aqui, que é a capacidade que cada um de nós tem de pensar por si mesmo.

Como pensar por si mesmo numa realidade que prima por querer nos uniformizar, nos padronizar e nos transformar não em seres pensantes, mas em bois que seguem cegamente a manada ou para usarmos um termo mais apropriado para este nosso tempo e este nosso cotidiano cada vez mais conectado e tecnológico, em robôs de linha de montagem?

Em tempos de propagação de medo e de ameaça de que a chamada “inteligência artificial” vai acabar dominando as nossas vidas não só na execução das tarefas mais comezinhas como também em ações complexas, nós ainda podemos falar em capacidade individual de pensamento? Por que tantas pessoas preferem seguir “cartilhas” e “mandamentos” a praticar o livre pensar e a orientar elas próprias as suas vidas?

Estamos vivendo o que a mim me parece ser um grande paradoxo: nós nos mantivemos empenhados tenazmente em aprimorar nossos conhecimentos com o fito de alcançarmos e criarmos a mais avançada das mais avançadas tecnologias e agora que atingimos um alto estágio, ficamos com medo disso. O criador está receoso diante da criatura que ele criou, como demonstram os debates acerca da aplicação da “inteligência artificial”.

Estaremos caminhando para o tempo em que, dotados de chips subcutâneos, seremos comandados como máquinas, como se fôssemos desprovidos de sentimentos, desejos, ambições e tudo mais?  Será que tempo virá em que nós não seremos nada mais nada menos do que autômatos guiados remotamente por máquinas com vida própria e/ou seres humanos perversos que estarão, assim, no controle de tudo? Eu tenho por mim que estamos assistindo ao desenrolar de uma realidade tecnológica dominadora da qual não podemos escapar completamente, a não ser que resolvamos abrir mão da vida nas cidades e nos campos e regressemos às florestas e às savanas involuindo paulatinamente.

Não quero me entregar a um exercício de futurologia, afinal de contas, eu sou um pesquisador do passado. Eu quero abordar a questão da autonomia do pensar em tempos do que eu chamo de “evangelização” e/ou “doutrinação tecnológica”, por meio da qual milhões de indivíduos são como que adestrados para se manterem prisioneiros de uma tecnologia – como o telefone celular – sem se aterem que a vida é algo bem mais complexo do que o ficar imerso em um universo onde imperam o fútil e o superficial e o viver em si é quase que reduzido à navegação nas denominadas redes sociais.

O telefone celular não é um mal em si; muito pelo contrário; a questão é o uso que fazemos dele. A rede mundial de computadores e os aplicativos nos proporcionam acesso a uma vastidão de conhecimentos e de soluções para a nossa vida prática: um grande exemplo disso são as transações bancárias feitas pelo telefone celular que, a bem da verdade, foi transformado num aparelho multiuso: fotografa, toca músicas, envia mensagens de texto e de áudio, exibe filmes e faz até ligações.

Alguém pode sair em defesa dessas redes sociais dizendo que, na verdade, a sociedade e/ou as sociedades sempre foram compartimentadas, sempre foram divididas em segmentos não só economicamente falando, mas também em termos de doutrinação ideológica, política e religiosa. Eu concordo com isso. Como igualmente eu concordo que, como autômatos, vivem milhões, bilhões de pessoas ao redor do mundo desde tempos idos, quase que escravas que elas são dos seus trabalhos e/ou de seus meios de sobrevivência, não tendo quase tempo para fazer algo além do ir para o local de seus afazeres e voltar para casa.

Eu já repudiei completamente essas redes sociais e agora eu faço parte da massa que está inserida nelas. Contudo, pelo menos até agora, eu tenho gozado, eu venho gozando de uma vida própria: eu leio livros; eu escrevo; eu frequento museus e centros culturais; eu procuro pensar por mim mesmo; eu, enfim, não me vejo preso ao tal negócio; e nem me sinto refém dele. E eu só consegui isso depois de estabelecer limites para mim mesmo, dizendo até onde eu poderia ir e como eu deveria transitar por ali, algo que, verdade seja dita, foi sendo ajustado até eu encontrar um ponto de equilíbrio entendendo que eu não posso jamais ficar alheio a essa realidade e, ao mesmo tempo, eu posso me policiar para não ser tragado inteiramente por ela.

Sinceramente eu não tenho medo – pelo menos até agora eu não tive - da chamada “inteligência artificial”. Do que eu tenho receio – receio e não medo – é de ver a minha vida perder a sua naturalidade e passar a ser artificial.

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