Por Sierra
Fotos: Arquivo do Autor No conjunto arquitetônico e no seu traçado colonial, São Cristóvão é um encanto para os olhos e, com o perdão do clichê, um museu a céu aberto de parte da História do Brasil |
I
O território que integra a
sede do município de São Cristóvão, que foi a primitiva capital de Sergipe e
que dista a cerca de 23 km de Aracaju, foi conquistado por Cristóvão Barros
numa época em que as terras sergipanas se achavam sob o domínio de índios
aliados com franceses.
As crônicas históricas nos
dizem que Cristóvão Barros chegou àquele lugar em fins de 1589. Durante a penetração
pelo interior ele travou inúmeras batalhas com os gentios, fazendo-os recuar
para o litoral, onde já se encontravam outras tribos. Diz-se que na noite do
dia 1º de janeiro de 1590, o conquistador e os seus comandados travaram um
decisivo combate na várzea do Rio Vazabarris, tendo saído vitoriosos. Tempo
depois, ele fez erguer um forte junto à foz do Rio Sergipe, também conhecido
como Rio Cotinguiba, num istmo que não existe mais; e, no mesmo local, fundou
uma povoação à qual deu o nome de cidade de São Cristóvão, em honra ao santo do
seu nome.
Subindo para conhecer a parte alta da cidade |
De maneira muito didática o
narrador do verbete da Enciclopédia dos
Municípios Brasileiros referente à São Cristóvão nos contou que
historiadores não souberam precisar a data (dia e mês) da fundação da povoação,
porque nenhum documento então encontrado trazia isso registrado; e que, por
outro lado, não havia certeza também sobre o local em que o núcleo de
povoamento foi estabelecido; e citou algumas fontes por ele consultadas:
seguindo o que escrevera Adolfo Varnhagen, Felisbelo Freire sustentava que
tanto a fortaleza como o primitivo povoado foram levantados próximos ao Rio
Poxim. Felte Bezerra, por sua vez, citando Frei Jaboatão, defendia que o
arraial fora fundado à margem direita do Rio Cotinguiba, perto da barra. E
Clodomir Silva sustentava que a área primitiva do povoado era o outeiro de
Santo Antônio, junto ao Porto da Areia, hipótese essa que, segundo o narrador,
é pouco provável (Enciclopédia dos
Municípios Brasileiros. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, 1959, p. 459).
O que se tem como certo é que, efetivamente, a cidade sofreu sucessivas mudanças até firmar-se no sítio atual, à margem do Rio Paramopama, afluente do Vaza-barris. A primeira transferência ocorreu entre 1595 e 1596, por motivo de segurança, porque temia-se ataques dos franceses que se empenhavam para reconquistar o território. A segunda mudança teria ocorrido antes de 1607; sem que se saiba o motivo dessa transferência, diz-se que se realizou para um ponto bem distante do anterior. José Anderson Ribeiro nos disse que, após essa segunda transferência a cidade recebeu o nome de Sergipe del Rei, o qual se conservou durante todo o século XVII. Ele nos esclareceu ainda o seguinte sem dizer os nomes de suas fontes:
As causas dessa segunda mudança ainda não foram plenamente definidas pelos historiadores. Uns acham que o motivo crucial era a sua péssima localização, imprópria ao comércio; outros, porém, admitem três causas para a sua transposição: 1) a insalubridade do local, por causa da abundância de charcos na região; 2) a pequenez da área da elevação, onde se situava, impossibilitando o crescimento da povoação e 3) a falta de visão da barra do rio Vaza-barris, que ficava à retaguarda (José Anderson Nascimento. "Esboço histórico". In Tom Maia, José Anderson Nascimento e Thereza Regina de Camargo Maia. Sergipe del Rei. São Paulo: Ed. Nacional; Rio de Janeiro: Embratur, 1979, p. 11).
Assim como o seu lugar de estabelecimento,
o nome da cidade também sofreu alterações ao longo dos anos: foi denominada a
princípio de São Cristóvão, depois São Cristóvão de Sergipe d’El Rei e ainda Sergipe
de El Rei.
Conjunto Carmelita |
Na vasta e minuciosa
pesquisa iconográfica que conduziu em busca de imagens de vilas e cidades do
Período Colonial brasileiro, Nestor Goulart Reis destacou que não encontrou
desenhos das vilas do território sergipano; e que encontrou apenas mapas da
região, nos quais aparece indicada, de forma esquemática, a então vila de São
Cristóvão. A imagem por ele selecionada, que eu reproduzo aqui, é um detalhe de
um original manuscrito que integra o atlas de João Teixeira Albernaz, que é de
cerca de 1631. Descreveu assim o pesquisador a imagem: “A antiga vila é aqui
representada de modo esquemático, como era comum nos atlas ( que tinham
principalmente objetivos geográficos). São indicadas três igrejas e um
cruzeiro” (Nestor Goulart Reis. Imagens
de vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Fapesp, 2000, p. 323. Nas páginas 64
e 65 é que aparece a reprodução do detalhe do mapa que eu fiz publicar aqui).
Imagem que aparece no livro do Nestor Goulart Reis Filho |
Aroldo de Azevedo destacou
num estudo sobre esse período remoto que “A urbanização do nosso país só teve
início, realmente, depois que se iniciou a colonização e foi instituído o
regime das Capitanias. De fato, conforme rezavam as cartas-régias, os
Donatários tinham o direito de ‘fazer todas e quaisquer povoações que se
chamarão Vilas’, as quais possuiriam ‘termo, jurisdição, liberdades e insígnias
de Vilas, segundo a forma e costume de meus Reinos’” (Aroldo de Azevedo. Vilas e cidades do Brasil Colonial – Ensaio
de Geografia Urbana Retrospectiva. Boletim
nº 208 – Geografia nº 11. São Paulo: Universidade de São Paulo/Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras, 1956, p. 11. Os trechos apostrofados Aroldo de
Azevedo citou de João de Azevedo Carneiro Maia. O município. Rio de Janeiro:
Tipografia Leuzinger, 1883, p. 28).
Dada a instabilidade nos
seus começos de existência, os anos iniciais de São Cristóvão foram marcados
por enormes turbulências devido, como vimos, às investidas tanto dos nativos
como dos franceses que, igualmente aos portugueses, queriam se estabelecer
naquelas terras. Ao adentrar o século XVII ocorreu certa calmaria e o processo
de colonização foi se processando a partir do povoado, de onde eram expedidas
Cartas de sesmarias visando povoar-se o território sergipano, numa penetração
que ia do sul e, depois, do leste para oeste.
O ano de 1637 marcou o
início de investidas de holandeses em Sergipe. No dia 30 de março chegou à
cidade o exército luso-brasileiro do Conde Bagnuolo vindo de Porto Calvo, em Alagoas,
batido pelas tropas holandesas. Bagnuolo fez da cidade seu quartel-general,
mas, sentindo as desvantagens de um combate frente a frente com o inimigo ao
qual vinha tentando vencer recorrendo a uma guerra de emboscadas, resolveu
seguir para a Bahia, não sem antes mandar fazer devastações pelas ruas e
arredores para que os invasores não encontrassem muito o que aproveitar.
Por essa época, como núcleo
citadino ainda incipiente, São Cristóvão já possuía cem fogos (casas), uma
Misericórdia e dois conventos.
A ação do Conde Bagnuolo e a
investida dos comandados do Conde Maurício de Nassau foram descritas assim por
Barlaeus:
Enquanto
realizamos a nossa empresa na África, o Conde de Bagnuolo, com cerca de 2.000
soldados, arrastando mais propriamente do que levando a guerra ao Sergipe Del
Rei, mandados para ali pequenos troços, infestava-nos as terras, lavouras e
engenhos, queimando, talando, saqueando. Em consequência, resolveu Maurício
expulsar daquela posição ao conde espanhol. Detido, porém, por grave
enfermidade, com as forças quebrantadas pela pertinácia de uma febre contínua,
que durou três meses confiou a ação ao coronel Schkoppe (...) Schkoppe,
desalojando a Bagnuolo de suas primeiras posições, arrasou os engenhos dos
adversários e os pomares. Feita esta devastação, reconduziu a soldadesca, com
incrível velocidade, para as margens do São Francisco
(Gaspar Barlaeus. História dos feitos
recentemente praticado durante oito anos no Brasil. Trad. Cláudio Brandão.
Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1980, p. 65).
O primeiro ataque dos flamengos
a São Cristóvão ocorreu no dia 17 de novembro de 1637. Quase três anos depois,
em 1º de agosto de 1640, forças holandesas e portuguesas travaram combate na
cidade. No ano seguinte Andreas, um dos comandantes holandeses penetrou pela
barra do Vaza-barris arvorando bandeira de paz. Era um embuste. Recebido sem
hostilidade, ele e os seus comandados desembarcaram e se apoderaram de surpresa
da cidade. Felipe Camarão chegou a cercar São Cristóvão visando retomá-la de
Andreas, mas, sem recursos, levantou o cerco.
Em 1642 a Capitania de
Sergipe foi doada pelo Supremo Conselho da Administração dos Estados Gerais das
Províncias Unidas Neerlandesas no Brasil a Nunin Olfers, ficando assim, São
Cristóvão, em poder dos holandeses.
A expulsão desses invasores
só ocorreu três anos depois, quando o Forte Maurício foi conquistado pelas
tropas luso-sergipanas, tendo sido preso na cidade o comandante holandês Van
Vagels.
A expulsão dos holandeses
não significou um período de paz para os habitantes da então capital sergipana.
Muito pelo contrário. Até pelo menos o terceiro quartel do século XVIII, São
Cristóvão seria palco de inúmeros embates originados principalmente contra
desmandos e arbitrariedades de administradores e pelo fato de Sergipe existir
tutelado pelo governador da Bahia. Vejamos: em 1654 a Câmara Municipal
são-cristovense desentendeu-se com o governador Pestana de Brito, por causa de
arbitrariedades, e fez contra ele uma série de representações ao governador da
Bahia, que tratou de destituí-lo. Brito chegou a ser reposto, mas foi novamente
destituído em outubro de 1656. Certamente inconformado com o ocorrido e
ambicionando voltar ao poder, Pestana de Brito chefiou um movimento contra o
Governo da Bahia, que conseguiu reprimir a ação e prendê-lo em março de 1657.
No ano de 1670 a Câmara
Municipal e o povo depuseram o Capitão-mor Jorge Rabelo Leite, por abuso de
poder; ele chegou a ser reposto pelo governador-geral, mas foi logo depois
destituído novamente, agora por essa mesma autoridade.
Nos anos finais do século
XVII Sergipe foi transformado em comarca da Bahia. Dois fatos de grande
significado para a consolidação administrativa de São Cristóvão marcaram aquele
período: em 1694 os camaristas são-cristovenses, em carta de 2 de junho,
reclamaram e solicitaram ao governador-geral a criação da ouvidoria de Sergipe; em 16 de fevereiro de 1698 a ouvidoria foi criada, sendo o primeiro ouvidor o
Dr. João de Sá Souto Mayer.
Em 1710 a cidade sofreu uma
nova invasão, desta feita promovida pelos habitantes de Vila Nova, por questões
ligadas à cobrança de tributos. Tal pleito também era reclamado pelos próprios
são-cristovenses. E não podemos nos esquecer de que os tributos eram
determinados pelo governador-geral em favor da Coroa Portuguesa.
Ainda no século XVIII, precisamente
em 1763, São Cristóvão foi mais uma vez atacada: negros fugidos e índios a eles
aliados agiram em represália às perseguições que vinham sofrendo dos colonos e
das autoridades da comarca.
Não é difícil imaginar que sucessivas ações de invasões e de ataques de algum modo provocaram danos materiais ao menos em parte das edificações e que a cidade precisou, por conta disso, passar por vários, digamos, planos de reconstrução. No período pós-invasão holandesa, por exemplo, como destacou José Anderson Nascimento, "O plano de reconstrução de São Cristóvão, entre 1657-1648, seguia a passo lento, em vista da falta dos suficientes recursos" (José Anderson Nascimento. Op. cit., p. 16).
A chegada do Oitocentos reservou um, digamos, breve tempo de paz para os habitantes do município que, no alvorecer do século XIX, já somavam 6.400 indivíduos distribuídos num espaço que possuíam diversos edifícios importantes e contava dez engenhos de produção de cana-de-açúcar instalados.
Pela Carta Régia ou Decreto de 8 de julho
de 1820, Sergipe foi emancipado da tutela da Bahia, elevada à categoria de Capitania independente. E, em 19 de fevereiro do
ano seguinte, nomeado pelo Rei, chegou a São Cristóvão o primeiro governador, Carlos Cezar Burlamaqui. Porém, o seu governo não teve longa duração, na
verdade, durou quase nada: o governador da Bahia se insurgiu contra a
emancipação, enviou tropas a São Cristóvão que depuseram Burlamaqui e o levaram
preso para Salvador em março daquele ano. Leiamos o que disse o narrador da
Enciclopédia dos Municípios Brasileiros sobre tais acontecimentos:
São
Cristóvão ficou impossibilitada de lutar contra o inominável ato de desrespeito
à independência de Sergipe, porque grande número dos detentores do poder,
àquela época, fazia parte do partido recolonizador, movidos aqueles, por
interesses pessoais ou de grupo.
Entretanto,
a 5 de maio de 1822, a Câmara são-cristovense, sob a presidência do capitão
Luiz Francisco Freire e com assistência de autoridades civis militares e do
povo, dirige uma representação a D. João VI e ao Congresso das Cortes
Portuguesas pedindo a emancipação e independência da Capitania (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros.
Op. cit., p. 461).
No seu História de Sergipe a partir de 1820, Maria Thetis Nunes explicou assim o episódio que resultou na destituição de Carlos Cezar Burlamaqui:
Conforme ele mesmo declarou em sua Memória, chegou a São Cristóvão na tarde do dia 19 do mês sem, porém, ter conhecimento dos graves acontecimentos que, cinco dias depois após a sua partida, tinham ocorrido em Salvador. Ali irrompera, no dia 10, o levante das tropas aquarteladas no forte de São Pedro, sob o comando de Manuel Pedro Freitas Guimarães, contando com o apoio do povo inflamado pela palavra vibrante do jornalista e médico Cipriano Barata. Era a adesão da Bahia à Revolução Constitucionalista que, em agosto do ano anterior, explodira no Porto, estendendo-se, vitoriosa, a Lisboa, onde foi criada uma Junta Provisional do Governo Supremo do Reino. assumindo o poder, a Junta convocou eleições para as Cortes que deveriam dar a Portugal uma Constituição.
As autoridades que representavam D. João VI na Bahia, o Conde da Palma e Felisberto Caldeira Brant Pontes não tiveram condições de oferecer resistência aos revolucionários e, afinal, retiraram-se para o Rio de Janeiro. A Câmara, convocada, decidiu proclamar a adesão da Bahia às Cortes de Lisboa, ao constitucionalismo triunfante na Metrópole. É estabelecida uma Junta Governativa composta de brasileiros e portugueses, sendo o Comando das Armas entregue, sob pressão popular, ao Brigadeiro Freitas Guimarães. A Junta dá ciência dos acontecimentos ao governo de Lisboa, solicitando envio de tropas (Maria Thetis Nunes. História de Sergipe a partir de 1820. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1978, p. 35).
De acordo ainda com Maria Thetis Nunes, a Junta enviou três cartas assinadas pelo seu Secretário José Caetano de Paiva ao Capitão-mor de Sergipe Luís Antônio da Fonseca Machado. Numa delas foi noticiado o que ocorrera em Salvador no dia 10 de fevereiro; noutra foi determinado que em em Sergipe se procedesse o mesmo Juramento à Constituição que tivera lugar na Bahia; "e a terceira ordenava que o Capitão-mor não desse posse a Burlamaqui, obrigando-o a deixar a Província, usando mesmo a força se, por acaso, fosse necessária" (Maria Thetis Nunes. Op. cit., p. 35).
Ainda em 1822, através de várias manifestações de caráter cívico, os são-cristovenses tomaram parte no movimento da independência do país proclamado, como todos nós sabemos, em 7 de setembro daquele ano, por Dom Pedro I. E assim foi que, no mês seguinte à proclamação da independência, o general Pedro Labatut chegou a São Cristóvão; e, contando com o apoio da população que, diz-se, foi entusiástico, instalou um governo provisório, independente da Bahia.
Igreja Matriz de Nossa Senhora da Vitória |
No dia 1º de dezembro daquele 1822, sob o
acompanhamento de enorme assistência, a Câmara de São Cristóvão fez uma solene
aclamação de Dom Pedro I, dirigindo-se todos, em seguida, à Igreja Matriz (o
solícito narrador da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros não informou para
qual dos templos a multidão seguiu, mas eu acredito que tenha sido para a
Igreja Matriz) onde foi celebrado um solene Te Deum. Tal acontecimento provocou
manifestações das demais Câmaras sergipanas.
No entanto, estava longe
ainda o tempo do sossego na antiga capital de Sergipe. Leiamos o que sucedeu
nos dois anos seguintes:
Em
fevereiro de 1823, o povo da cidade, indignado contra o procedimento desleal do
governador Barros Pimentel, que se recusa a dar cumprimento a uma ordem do
Conselho interino da Bahia, no sentido de mandar eleger um Conselho de 5 membros, considerando que Sergipe já era Província Independente – reúne-se e
dirige-se à Câmara, pedindo providências contra o gesto de Barros Pimentel,
lesivo aos interesses políticos sergipanos e a Câmara, após uma série de
medidas, acaba por acusar o governador de traição e determinar a sua prisão,
bem como aos seus colaboradores, brigadeiro Pedro Vieira de Melo e outros,
todos membros do antigo partido recolonizador.
Em
abril de 1824, a conjunção de novas forças políticas organizadas contra o povo,
tendo à frente altos chefes militares ambiciosos, rebela-se contra o governador
legal, brigadeiro Manoel Fernandes Silveira, o qual, sem apoio da Força, foge
para a Estância e daí lança uma proclamação ao povo e aos soldados, pedindo a
estes que abandonem os seus comandantes e se unam à população, para salvar a
legalidade e a independência de Sergipe.
A
proclamação surte efeito, sendo o Presidente reintegrado no Governo, a 8 de
maio do mesmo ano (Enciclopédia
dos Municípios Brasileiros. Op. cit., p. 462).
Praça Getúlio Vargas |
Mas o maior golpe para os
são-cristovenses viria vinte e um anos depois. Em 1855 deu-se, afinal, a
transferência da capital de Sergipe para Aracaju. A Câmara, em sessão realizada
no dia 28 de fevereiro daquele ano lançou veemente protesto contra a mudança,
porém, não teve efeito algum. Desse modo, São Cristóvão, que passara 250 anos
como o centro político, administrativo e econômico de Sergipe, doravante
amargaria longas décadas digerindo uma decadência natural em virtude de ter
perdido a condição de capital. Eis o que registrou o narrador da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros sobre
a mudança da capital no verbete dedicado à Aracaju:
Geograficamente, Aracaju
derrotou a velha São Cristóvão, situada no fundo do Paramopama, mal acessível
até às menores embarcações, construída no topo de um estreito contraforte, rodeada
de encostas íngremes terminando em vales estreitos e que não poderia oferecer
as mesmas facilidades de expansão que a planície do Aracaju (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros.
Op. cit., p. 219).
No dia 17 de janeiro de 1860 o Imperador Dom Pedro II visitou São Cristóvão (talvez o registro do diário esteja errado, porque depois do dia 13 ele anotou 17 e, na sequência, dia 14). Entre os vários registros que fez em seu diário, ele anotou que o "caminho do Aracaju para São Cristóvão é bonito; que visitou aulas de meninos; que as ruas da cidade "são quase todas calçadas"; que "o telhado da Matriz" desabou no dia 12 de dezembro e o povo construiu-o de novo: "um servente que estava na cornija veio abaixo; mas não morreu apesar da altura não ser pequena". Ele considerou a Matriz e a Câmara onde, ao que parece, ficou hospedado, sofríveis. E avaliou: "Posição da cidade boa, num alto dominando por um lado, uma várzea extensa, boa água e fresca. Talvez tivesse sido melhor abrir canal reunindo o Vaza-barris ao Cotinguiba que mudar a capital inutilizando-se tantos edifícios" (Dom Pedro II. Viagem à costa leste [de Aracaju ao Espírito Santo] - 11/1 a 28/1/1860. Volume 5. In www.https://museuimperial.museus.gov.br/diarios/.
O advento do século XX trouxe consigo um tempo de prosperidade para a cidade e o município. Enquanto Aracaju ia se aformoseando como cidade nova em plena belle époque, São Cristóvão viu-se sendo tomada por um surto de progresso a partir da segunda década da nova centúria. Em fins de 1911 instalou-se no município uma fábrica de tecidos. Dois anos depois, os trilhos da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro – posteriormente encampada pela Rede Ferroviária Federal S. A. – ligaram São Cristóvão a Aracaju e a Salvador.
Prédio onde funcionava a Prefeitura Municipal |
Da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, p. |
O núcleo urbano primitivo de
São Cristóvão é composto por duas partes distintas: as chamadas cidades alta e
baixa. É na cidade alta, erguida num outeiro, que se encontra o traçado
citadino do Período Colonial com várias e imponentes edificações que dizem da
importância da cidade. O conjunto urbanístico, que foi considerado “Monumento
Histórico” pelo Decreto-lei nº 94, de 22 de junho de 1938 – atente-se que 1938
foi o ano em que as principais cidades históricas de Minas Gerais ( Serro, Ouro
Preto, Mariana e Diamantina) também foram reconhecidas por lei como
cidades-monumentos – sofreu de alguma forma com as construções novas que foram
surgindo no século passado. Já na cidade baixa, ficaram as primeiras unidades
fabris e as residências dos operários; e nessa parte a arquitetura das
edificações ficou mais diversificada.
O transcurso do tempo
promoveu uma série de transformações socioeconômicas em São Cristóvão ao longo
do século XX e nas duas primeiras décadas deste que ora atravessamos. O trem,
por exemplo, há muito tempo deixou de correr por ali; é só uma lembrança
evocada pelos trilhos que ainda existem. Enquanto que a cidade antiga permanece
resistindo à falta de um comprometimento maior para com a sua preservação.
Esta e as cinco fotos seguintes são da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Respectivamente das páginas 463, 462, 464, 459, 460 e 460 |
Nas palavras de Eurico Amado
registradas num pequeno catálogo do Museu de Arte Sacra da cidade, lançado
provavelmente em 1984, que é a data assinalada no final do texto dele,
ocorreram sim danos à paisagem urbana antiga. Leiamos o que ele disse em seu
testemunho no qual não esqueceu de recordar a figura de João Bebe Água:
Pela
rodovia João Bebe Água – nome pitoresco do festeiro local que resistiu à
mudança da capital para Aracaju, negando-se a soltar foguetes até o dia em que
São Cristóvão volte a ser a sede política do Estado – chega-se à cidade por um
plano mais alto. De certo ponto, descortina-se a paisagem urbana numa grata e
impressionante visão da arquitetura colonial das imponentes igrejas, algumas
delas ainda do século XVII. Por este acesso, a cidade deixa-se surpreender em
sua intimidade, entrega-se inteira e de vez ao visitante. Mostra, sem qualquer
cerimônia, os danos que os homens já lhe fizeram, deformando sua paisagem
urbana: o traçado das praças, o antigo calçamento de pedras e ali a imoralidade
da luz de neon. Dessa desapiedada depredação salvou-se, intacta, a praça do
Convento de São Francisco (Eurico Amado. “Museu de Arte Sacra de
São Cristóvão – SE” [prefácio]. In Museu
de Arte Sacra São Cristóvão – SE. s. l.: Museu de Arte Sacra, s. d. p. 11).
No dizer da famosa cordelista Alda Cruz, “Falar de São Cristóvão/É mergulhar no passado/Um passado que não passou/É se viver lado a lado/Com a cultura nordestina/Em uma cidade que nos ensina/ a valorizar e ser valorizado” (Alda Cruz. São Cristóvão que vi e vivi. São Cristóvão: Datagraph, 2015, p. 3). Façamos isso então, porque a História está em permanente construção.
A caminho da parte baixa da cidade |
II
Seguindo a minha jornada de
viagens para conhecer cidades antigas brasileiras, na manhã do dia 12 de
dezembro de 2017 eu saí de ônibus de Aracaju com destino a São Cristóvão. Foi uma
viagem ainda marcada por uma melancolia que andava comigo; minha avó falecera
havia pouco mais de um mês apenas e a tristeza que me atingia era avassaladora.
Viajei sozinho. E foi melhor assim.
À medida que o ônibus
avançava eu via pelo caminho que na área afastada da parte de ocupação mais antiga
da cidade, São Cristóvão apresentava evidente desenvolvimento urbano e um
comércio pulsante e diversificado.
Atravessei também uma
extensa zona rural passando por uma estrada da qual se avistavam chácaras e
fazendas. Vi casas simples. Vi gente simples. Vi pela janela do coletivo a vida
acontecendo naquela imensidão verdejante.
Exatamente às 9h45 eu
desembarquei na antiga capital sergipana; e, sem perda de tempo, comecei a
percorrer o território tomando primeiramente a direção da chamada “cidade alta”.
III
Eu estava na bela e
encantadora Praça São Francisco, Patrimônio Cultural da Humanidade, apreciando
o casario ali existente, o formoso casario que contorna a praça que, segundo
Eurico Amado, como vimos, salvou-se de uma “desapiedada depredação” que marcou
outros recantos da cidade, quando fui abordado por um sujeito que se ofereceu
para me guiar pelo sítio histórico.
Não costumo seguir guias
turísticos nas viagens que eu faço. Eu gosto de perceber sozinho os lugares e
ir enveredando por eles. Não gosto do movimento apressado de quem só faz
turismo atrás dos chamados “cartões-postais” e dos “pontos imperdíveis”. Não,
eu aprecio isso sim, mas procurando por mais; eu busco ver outros desenhos
também, outros cenários, porque isso é o que completa o olhar do viajante que,
necessitando de uma informação, aborda alguém na rua, entra num estabelecimento
comercial ou de outra natureza e, assim, interage com as pessoas do lugar.
Como eu vinha dizendo, fui
abordado por um guia turístico na Praça São Francisco. Não fui educado para com ele.
Na verdade, eu recusei o seu trabalho de modo ríspido. E continuei explorando o
território. Até que eu me dei conta do quão grosseiro eu havia sido com o rapaz
e resolvi ir até ele e lhe pedir desculpas.
Elenaldo Santos, o Galego, 36 anos na ocasião, me disse que nasceu em Lagarto; e que recebeu capacitação como guia turístico pelo Sebrae. Contou-me de algumas de suas viagens. Alertou-me sobre assaltos em Laranjeiras. Dei-lhe uns trocados.
Elenaldo Santos, o Galego: bem informado guia turístico de São Cristóvão |
IV
O encanto com a Praça São
Francisco e com os dois museus que eu visitei nela – o de Arte Sacra e o Museu
Histórico – foram dando lugar a um certo desencanto à medida que eu fui me
afastando dela e me deparando, aqui e ali, com monumentos carecendo de
cuidados, como uma simples pintura; e com o antigo prédio da Prefeitura
Municipal em estado de abandono. Contudo, aos meus olhos, o sítio histórico, no geral, estava íntegro e conservado. E eu gostei do que vi na cidade alta. E eu sei perfeitamente por que eu gostei do que eu vi ali; eu me reconheço nesses lugares; eu sinto um pertencimento a eles; e São Cristóvão renovou e intensificou esses sentimentos em mim.
Conjunto do Convento São Francisco que ocupa parte da praça reconhecida pela UNESCO como patrimônio do mundo |
Infelizmente eu não encontrei
nenhuma das igrejas abertas para visitação, mas fotografei todas elas. Poucas coisas
me encantam tanto nos sítios históricos como as igrejas, por isso, eu sempre as
procuro.
Percorri várias ruas e
praças. Observei que estava precária a sinalização turística. E que, pelo menos
naquelas horas, aquela parte da cidade se encontrava com pouquíssimo movimento
de gente.
Não tive oportunidade de
conhecer a cordelista Alda Cruz; mas tratei de adquirir dois dos seus mais de
cem cordéis. Suvenires da viagem. Conheci uma casa de licores. E visitei ainda
o ateliê do xilogravurista e pintor Nivaldo Maia.
São Cristóvão repousa no alto de uma colina, quieta, aparentemente inabitada, neste meio-dia de sol quente e um céu azul de doer a vista. Na praça do mosteiro, pisando nas pedras do calçamento antigo, tudo é uma só labareda do passado, um conjunto arquitetônico impressionante, um pouco da nossa história e um orgulho adormecido que, a princípio, boceja sonolento, mas que pula no peito, assim, de repente, e enche os olhos de água. São Cristóvão, eu não sabia, é a quarta cidade mais antiga do Brasil, distante alguns quilômetros de Aracaju, atual capital do estado. Tudo nela grita os tempos de Sergipe d'el Rey, uma dignidade clara, de janelas azuis e paredes espessas, testemunhas do Brasil Colônia, como os campanários do século XVII recortados contra um céu imóvel, como se Deus tivesse emborcado uma xícara de finíssima porcelana azul sobre a terra (Miguel Falabella. "O caminho de volta". In Vivendo em voz alta. São Paulo: Lua de Papel, 2011, p. 30. Leitor: esse título da obra aparece na capa, na lombada e na folha de rosto; já na ficha de catalogação foi registrado assim: Crônicas: memórias guardadas para viver em voz alta).
V
Na hora do almoço eu desci
para a “cidade baixa”. E almocei no restaurante Comida Caseira da Maria, onde
comi um delicioso e inesquecível ensopado de camarão e sururu.
De barriga cheia eu caminhei
também por ali, observando os traços daquele cenário profundamente marcado por
uma estação ferroviária aparentemente abandonada. Na página 462 da tantas vezes aqui citada
Enciclopédia dos Municípios Brasileiros há uma foto da estação que indica que,
na época do registro – possivelmente em meados da década de 1950 -, a estação estava em
pleno funcionamento, porque, além de mostrar o prédio em bom estado, vemos na
fotografia várias sacas empilhadas – talvez fosse milho, açúcar ou farinha de
mandioca, produtos que tinham grande destaque na economia de São Cristóvão na
época – possivelmente aguardando para serem embarcadas.
Imagem da estação dos trens contida na página 462 da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros |
Num cenário marcado por
restos de um passado que podia ser visto nas fachadas de várias casas e
estabelecimentos comerciais, aos meus olhos nada foi mais impactante na chamada
“cidade baixa” do que aquela estação de trens e os trilhos resistindo
a tudo, inclusive, à indiferença dos tantos que neles pisavam.
Quando tomei o ônibus de volta para Aracaju eu vi, já ali, que a imagem daquela estação ficaria indelevelmente no vagão da memória puxado pelo trem da minha tristeza.
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