3 de junho de 2023

No dia em que eu estive em São Cristóvão o sol ardia na minha melancolia

Por Sierra

 

Fotos: Arquivo do Autor
No conjunto arquitetônico e no seu traçado colonial, São Cristóvão é um encanto para os olhos e, com o perdão do clichê, um museu a céu aberto de parte da História do Brasil

I

 

O território que integra a sede do município de São Cristóvão, que foi a primitiva capital de Sergipe e que dista a cerca de 23 km de Aracaju, foi conquistado por Cristóvão Barros numa época em que as terras sergipanas se achavam sob o domínio de índios aliados com franceses.

As crônicas históricas nos dizem que Cristóvão Barros chegou àquele lugar em fins de 1589. Durante a penetração pelo interior ele travou inúmeras batalhas com os gentios, fazendo-os recuar para o litoral, onde já se encontravam outras tribos. Diz-se que na noite do dia 1º de janeiro de 1590, o conquistador e os seus comandados travaram um decisivo combate na várzea do Rio Vazabarris, tendo saído vitoriosos. Tempo depois, ele fez erguer um forte junto à foz do Rio Sergipe, também conhecido como Rio Cotinguiba, num istmo que não existe mais; e, no mesmo local, fundou uma povoação à qual deu o nome de cidade de São Cristóvão, em honra ao santo do seu nome.



Subindo para conhecer a parte alta da cidade


De maneira muito didática o narrador do verbete da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros referente à São Cristóvão nos contou que historiadores não souberam precisar a data (dia e mês) da fundação da povoação, porque nenhum documento então encontrado trazia isso registrado; e que, por outro lado, não havia certeza também sobre o local em que o núcleo de povoamento foi estabelecido; e citou algumas fontes por ele consultadas: seguindo o que escrevera Adolfo Varnhagen, Felisbelo Freire sustentava que tanto a fortaleza como o primitivo povoado foram levantados próximos ao Rio Poxim. Felte Bezerra, por sua vez, citando Frei Jaboatão, defendia que o arraial fora fundado à margem direita do Rio Cotinguiba, perto da barra. E Clodomir Silva sustentava que a área primitiva do povoado era o outeiro de Santo Antônio, junto ao Porto da Areia, hipótese essa que, segundo o narrador, é pouco provável (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1959, p. 459).

O que se tem como certo é que, efetivamente, a cidade sofreu sucessivas mudanças até firmar-se no sítio atual, à margem do Rio Paramopama, afluente do Vaza-barris. A primeira transferência ocorreu entre 1595 e 1596, por motivo de segurança, porque temia-se ataques dos franceses que se empenhavam para reconquistar o território. A segunda mudança teria ocorrido antes de 1607; sem que se saiba o motivo dessa transferência, diz-se que se realizou para um ponto bem distante do anterior. José Anderson Ribeiro nos disse que, após essa segunda transferência a cidade recebeu o nome de Sergipe del Rei, o qual se conservou durante todo o século XVII. Ele nos esclareceu ainda o seguinte sem dizer os nomes de suas fontes: 

As causas dessa segunda mudança ainda não foram plenamente definidas pelos historiadores. Uns acham que o motivo crucial era a sua péssima localização, imprópria ao comércio; outros, porém, admitem três causas para a sua transposição: 1) a insalubridade do local, por causa da abundância de charcos na região; 2) a pequenez da área da elevação, onde se situava, impossibilitando o crescimento da povoação e 3) a falta de visão da barra do rio Vaza-barris, que ficava à retaguarda (José Anderson Nascimento. "Esboço histórico". In Tom Maia, José Anderson Nascimento e Thereza Regina de Camargo Maia. Sergipe del Rei. São Paulo: Ed. Nacional; Rio de Janeiro: Embratur, 1979, p. 11).

Assim como o seu lugar de estabelecimento, o nome da cidade também sofreu alterações ao longo dos anos: foi denominada a princípio de São Cristóvão, depois São Cristóvão de Sergipe d’El Rei e ainda Sergipe de El Rei.


Conjunto Carmelita






Na vasta e minuciosa pesquisa iconográfica que conduziu em busca de imagens de vilas e cidades do Período Colonial brasileiro, Nestor Goulart Reis destacou que não encontrou desenhos das vilas do território sergipano; e que encontrou apenas mapas da região, nos quais aparece indicada, de forma esquemática, a então vila de São Cristóvão. A imagem por ele selecionada, que eu reproduzo aqui, é um detalhe de um original manuscrito que integra o atlas de João Teixeira Albernaz, que é de cerca de 1631. Descreveu assim o pesquisador a imagem: “A antiga vila é aqui representada de modo esquemático, como era comum nos atlas ( que tinham principalmente objetivos geográficos). São indicadas três igrejas e um cruzeiro” (Nestor Goulart Reis. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Fapesp, 2000, p. 323. Nas páginas 64 e 65 é que aparece a reprodução do detalhe do mapa que eu fiz publicar aqui).


Imagem que aparece no livro do Nestor Goulart Reis Filho






Aroldo de Azevedo destacou num estudo sobre esse período remoto que “A urbanização do nosso país só teve início, realmente, depois que se iniciou a colonização e foi instituído o regime das Capitanias. De fato, conforme rezavam as cartas-régias, os Donatários tinham o direito de ‘fazer todas e quaisquer povoações que se chamarão Vilas’, as quais possuiriam ‘termo, jurisdição, liberdades e insígnias de Vilas, segundo a forma e costume de meus Reinos’” (Aroldo de Azevedo. Vilas e cidades do Brasil Colonial – Ensaio de Geografia Urbana Retrospectiva. Boletim  nº 208 – Geografia nº 11. São Paulo: Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1956, p. 11. Os trechos apostrofados Aroldo de Azevedo citou de João de Azevedo Carneiro Maia. O município. Rio de Janeiro: Tipografia Leuzinger, 1883, p. 28).







Dada a instabilidade nos seus começos de existência, os anos iniciais de São Cristóvão foram marcados por enormes turbulências devido, como vimos, às investidas tanto dos nativos como dos franceses que, igualmente aos portugueses, queriam se estabelecer naquelas terras. Ao adentrar o século XVII ocorreu certa calmaria e o processo de colonização foi se processando a partir do povoado, de onde eram expedidas Cartas de sesmarias visando povoar-se o território sergipano, numa penetração que ia do sul e, depois, do leste para oeste.

O ano de 1637 marcou o início de investidas de holandeses em Sergipe. No dia 30 de março chegou à cidade o exército luso-brasileiro do Conde Bagnuolo vindo de Porto Calvo, em Alagoas, batido pelas tropas holandesas. Bagnuolo fez da cidade seu quartel-general, mas, sentindo as desvantagens de um combate frente a frente com o inimigo ao qual vinha tentando vencer recorrendo a uma guerra de emboscadas, resolveu seguir para a Bahia, não sem antes mandar fazer devastações pelas ruas e arredores para que os invasores não encontrassem muito o que aproveitar.







Por essa época, como núcleo citadino ainda incipiente, São Cristóvão já possuía cem fogos (casas), uma Misericórdia e dois conventos.

A ação do Conde Bagnuolo e a investida dos comandados do Conde Maurício de Nassau foram descritas assim por Barlaeus:

 

Enquanto realizamos a nossa empresa na África, o Conde de Bagnuolo, com cerca de 2.000 soldados, arrastando mais propriamente do que levando a guerra ao Sergipe Del Rei, mandados para ali pequenos troços, infestava-nos as terras, lavouras e engenhos, queimando, talando, saqueando. Em consequência, resolveu Maurício expulsar daquela posição ao conde espanhol. Detido, porém, por grave enfermidade, com as forças quebrantadas pela pertinácia de uma febre contínua, que durou três meses confiou a ação ao coronel Schkoppe (...) Schkoppe, desalojando a Bagnuolo de suas primeiras posições, arrasou os engenhos dos adversários e os pomares. Feita esta devastação, reconduziu a soldadesca, com incrível velocidade, para as margens do São Francisco (Gaspar Barlaeus. História dos feitos recentemente praticado durante oito anos no Brasil. Trad. Cláudio Brandão. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1980, p. 65).

 

O primeiro ataque dos flamengos a São Cristóvão ocorreu no dia 17 de novembro de 1637. Quase três anos depois, em 1º de agosto de 1640, forças holandesas e portuguesas travaram combate na cidade. No ano seguinte Andreas, um dos comandantes holandeses penetrou pela barra do Vaza-barris arvorando bandeira de paz. Era um embuste. Recebido sem hostilidade, ele e os seus comandados desembarcaram e se apoderaram de surpresa da cidade. Felipe Camarão chegou a cercar São Cristóvão visando retomá-la de Andreas, mas, sem recursos, levantou o cerco.







Em 1642 a Capitania de Sergipe foi doada pelo Supremo Conselho da Administração dos Estados Gerais das Províncias Unidas Neerlandesas no Brasil a Nunin Olfers, ficando assim, São Cristóvão, em poder dos holandeses.

A expulsão desses invasores só ocorreu três anos depois, quando o Forte Maurício foi conquistado pelas tropas luso-sergipanas, tendo sido preso na cidade o comandante holandês Van Vagels.

A expulsão dos holandeses não significou um período de paz para os habitantes da então capital sergipana. Muito pelo contrário. Até pelo menos o terceiro quartel do século XVIII, São Cristóvão seria palco de inúmeros embates originados principalmente contra desmandos e arbitrariedades de administradores e pelo fato de Sergipe existir tutelado pelo governador da Bahia. Vejamos: em 1654 a Câmara Municipal são-cristovense desentendeu-se com o governador Pestana de Brito, por causa de arbitrariedades, e fez contra ele uma série de representações ao governador da Bahia, que tratou de destituí-lo. Brito chegou a ser reposto, mas foi novamente destituído em outubro de 1656. Certamente inconformado com o ocorrido e ambicionando voltar ao poder, Pestana de Brito chefiou um movimento contra o Governo da Bahia, que conseguiu reprimir a ação e prendê-lo em março de 1657.








No ano de 1670 a Câmara Municipal e o povo depuseram o Capitão-mor Jorge Rabelo Leite, por abuso de poder; ele chegou a ser reposto pelo governador-geral, mas foi logo depois destituído novamente, agora por essa mesma autoridade.

Nos anos finais do século XVII Sergipe foi transformado em comarca da Bahia. Dois fatos de grande significado para a consolidação administrativa de São Cristóvão marcaram aquele período: em 1694 os camaristas são-cristovenses, em carta de 2 de junho, reclamaram e solicitaram ao governador-geral a criação da ouvidoria de Sergipe; em 16 de fevereiro de 1698 a ouvidoria foi criada, sendo o primeiro ouvidor o Dr. João de Sá Souto Mayer.






Em 1710 a cidade sofreu uma nova invasão, desta feita promovida pelos habitantes de Vila Nova, por questões ligadas à cobrança de tributos. Tal pleito também era reclamado pelos próprios são-cristovenses. E não podemos nos esquecer de que os tributos eram determinados pelo governador-geral em favor da Coroa Portuguesa.

Ainda no século XVIII, precisamente em 1763, São Cristóvão foi mais uma vez atacada: negros fugidos e índios a eles aliados agiram em represália às perseguições que vinham sofrendo dos colonos e das autoridades da comarca.

Não é difícil imaginar que sucessivas ações de invasões e de ataques de algum modo provocaram danos materiais ao menos em parte das edificações e que a  cidade precisou, por  conta disso, passar por vários, digamos, planos de reconstrução. No período pós-invasão holandesa, por exemplo, como destacou José Anderson Nascimento, "O plano de reconstrução de São Cristóvão, entre 1657-1648, seguia a passo lento, em vista da falta dos suficientes recursos" (José Anderson Nascimento. Op. cit., p. 16).






A chegada do Oitocentos reservou um, digamos, breve tempo de paz para os habitantes do município que, no alvorecer do século XIX, já somavam 6.400 indivíduos distribuídos num espaço que possuíam diversos edifícios importantes e contava dez engenhos de produção de cana-de-açúcar instalados.

Pela Carta Régia ou Decreto de 8 de julho de 1820, Sergipe foi emancipado da tutela da Bahia, elevada à categoria de Capitania independente. E, em 19 de fevereiro do ano seguinte, nomeado pelo Rei, chegou a São Cristóvão o primeiro governador, Carlos Cezar Burlamaqui. Porém, o seu governo não teve longa duração, na verdade, durou quase nada: o governador da Bahia se insurgiu contra a emancipação, enviou tropas a São Cristóvão que depuseram Burlamaqui e o levaram preso para Salvador em março daquele ano. Leiamos o que disse o narrador da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros sobre tais acontecimentos:

 

São Cristóvão ficou impossibilitada de lutar contra o inominável ato de desrespeito à independência de Sergipe, porque grande número dos detentores do poder, àquela época, fazia parte do partido recolonizador, movidos aqueles, por interesses pessoais ou de grupo.

Entretanto, a 5 de maio de 1822, a Câmara são-cristovense, sob a presidência do capitão Luiz Francisco Freire e com assistência de autoridades civis militares e do povo, dirige uma representação a D. João VI e ao Congresso das Cortes Portuguesas pedindo a emancipação e independência da Capitania (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Op. cit., p. 461).

No seu História de Sergipe a partir de 1820, Maria Thetis Nunes explicou assim o episódio que resultou na destituição de Carlos Cezar Burlamaqui:


Conforme ele mesmo declarou em sua Memória, chegou a São Cristóvão na tarde do dia 19 do mês sem, porém, ter conhecimento dos graves acontecimentos que, cinco dias depois após a sua partida, tinham ocorrido em Salvador. Ali irrompera, no dia 10, o levante das tropas aquarteladas no forte de São Pedro, sob o comando de Manuel Pedro Freitas Guimarães, contando com o apoio do povo inflamado pela palavra vibrante do jornalista e médico Cipriano Barata. Era a adesão da Bahia à Revolução Constitucionalista que, em agosto do ano anterior, explodira no Porto, estendendo-se, vitoriosa, a Lisboa, onde foi criada uma Junta Provisional do Governo Supremo do Reino. assumindo o poder, a Junta convocou eleições para as Cortes que deveriam dar a Portugal uma Constituição.

As autoridades que representavam D. João VI na Bahia, o Conde da Palma e Felisberto Caldeira Brant Pontes não tiveram condições de oferecer resistência aos revolucionários e, afinal, retiraram-se para o Rio de Janeiro. A Câmara, convocada, decidiu proclamar a adesão da Bahia às Cortes de Lisboa, ao constitucionalismo triunfante na Metrópole. É estabelecida uma Junta Governativa composta de brasileiros e portugueses, sendo o Comando das Armas entregue, sob pressão popular, ao Brigadeiro Freitas Guimarães. A Junta dá ciência dos acontecimentos ao governo de Lisboa, solicitando envio de tropas (Maria Thetis Nunes. História de Sergipe a partir de 1820. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1978, p. 35).

De acordo ainda com Maria Thetis Nunes, a Junta enviou três cartas assinadas pelo seu Secretário José Caetano de Paiva ao Capitão-mor de Sergipe Luís Antônio da Fonseca Machado. Numa delas foi noticiado o que ocorrera em Salvador no dia 10 de fevereiro; noutra foi determinado que em em Sergipe se procedesse o mesmo Juramento à Constituição que tivera lugar na Bahia; "e a terceira ordenava que o Capitão-mor não desse posse a Burlamaqui, obrigando-o a deixar a Província, usando mesmo a força se, por acaso, fosse necessária" (Maria Thetis Nunes. Op. cit., p. 35).

Ainda em 1822, através de várias manifestações de caráter cívico, os são-cristovenses tomaram parte no movimento da independência do país proclamado, como todos nós sabemos, em 7 de setembro daquele ano, por Dom Pedro I. E assim foi que, no mês seguinte à proclamação da independência, o general Pedro Labatut chegou a São Cristóvão; e, contando com o apoio da população que, diz-se, foi entusiástico, instalou um governo provisório, independente da Bahia.




Igreja Matriz de Nossa Senhora da Vitória


No dia 1º de dezembro daquele 1822, sob o acompanhamento de enorme assistência, a Câmara de São Cristóvão fez uma solene aclamação de Dom Pedro I, dirigindo-se todos, em seguida, à Igreja Matriz (o solícito narrador da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros não informou para qual dos templos a multidão seguiu, mas eu acredito que tenha sido para a Igreja Matriz) onde foi celebrado um solene Te Deum. Tal acontecimento provocou manifestações das demais Câmaras sergipanas.

No entanto, estava longe ainda o tempo do sossego na antiga capital de Sergipe. Leiamos o que sucedeu nos dois anos seguintes:

Em fevereiro de 1823, o povo da cidade, indignado contra o procedimento desleal do governador Barros Pimentel, que se recusa a dar cumprimento a uma ordem do Conselho interino da Bahia, no sentido de mandar eleger um Conselho de 5 membros, considerando que Sergipe já era Província Independente – reúne-se e dirige-se à Câmara, pedindo providências contra o gesto de Barros Pimentel, lesivo aos interesses políticos sergipanos e a Câmara, após uma série de medidas, acaba por acusar o governador de traição e determinar a sua prisão, bem como aos seus colaboradores, brigadeiro Pedro Vieira de Melo e outros, todos membros do antigo partido recolonizador.

Em abril de 1824, a conjunção de novas forças políticas organizadas contra o povo, tendo à frente altos chefes militares ambiciosos, rebela-se contra o governador legal, brigadeiro Manoel Fernandes Silveira, o qual, sem apoio da Força, foge para a Estância e daí lança uma proclamação ao povo e aos soldados, pedindo a estes que abandonem os seus comandantes e se unam à população, para salvar a legalidade e a independência de Sergipe.

A proclamação surte efeito, sendo o Presidente reintegrado no Governo, a 8 de maio do mesmo ano (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Op. cit., p. 462).



Praça Getúlio Vargas




Mas o maior golpe para os são-cristovenses viria vinte e um anos depois. Em 1855 deu-se, afinal, a transferência da capital de Sergipe para Aracaju. A Câmara, em sessão realizada no dia 28 de fevereiro daquele ano lançou veemente protesto contra a mudança, porém, não teve efeito algum. Desse modo, São Cristóvão, que passara 250 anos como o centro político, administrativo e econômico de Sergipe, doravante amargaria longas décadas digerindo uma decadência natural em virtude de ter perdido a condição de capital. Eis o que registrou o narrador da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros sobre a mudança da capital no verbete dedicado à Aracaju:

Geograficamente, Aracaju derrotou a velha São Cristóvão, situada no fundo do Paramopama, mal acessível até às menores embarcações, construída no topo de um estreito contraforte, rodeada de encostas íngremes terminando em vales estreitos e que não poderia oferecer as mesmas facilidades de expansão que a planície do Aracaju (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Op. cit., p. 219).

No dia 17 de janeiro de 1860 o Imperador Dom Pedro II visitou São Cristóvão (talvez o registro do diário esteja errado, porque depois do dia 13 ele anotou 17 e, na sequência, dia 14). Entre os vários registros que fez em seu diário, ele anotou que o "caminho do Aracaju para São Cristóvão é bonito; que visitou aulas de meninos; que as ruas da cidade "são quase todas calçadas"; que "o telhado da Matriz" desabou no dia 12 de dezembro e o povo construiu-o de novo: "um servente que estava na cornija veio abaixo; mas não morreu apesar da altura não ser pequena". Ele considerou a Matriz e a Câmara onde, ao que parece, ficou hospedado, sofríveis. E avaliou: "Posição da cidade boa, num alto dominando por um lado, uma várzea extensa, boa água e fresca. Talvez tivesse sido melhor abrir canal reunindo o Vaza-barris ao Cotinguiba que mudar a capital inutilizando-se tantos edifícios" (Dom Pedro II. Viagem à costa leste [de Aracaju ao Espírito Santo] - 11/1 a 28/1/1860. Volume 5. In www.https://museuimperial.museus.gov.br/diarios/.

O advento do século XX trouxe consigo um tempo de prosperidade para a cidade e o município. Enquanto Aracaju ia se aformoseando como cidade nova em plena belle époque, São Cristóvão viu-se sendo tomada por um surto de progresso a partir da segunda década da nova centúria. Em fins de 1911 instalou-se no município uma fábrica de tecidos. Dois anos depois, os trilhos da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro – posteriormente encampada pela Rede Ferroviária Federal S. A. – ligaram São Cristóvão a Aracaju e a Salvador.




Prédio onde funcionava a Prefeitura Municipal




Da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, p. 


O núcleo urbano primitivo de São Cristóvão é composto por duas partes distintas: as chamadas cidades alta e baixa. É na cidade alta, erguida num outeiro, que se encontra o traçado citadino do Período Colonial com várias e imponentes edificações que dizem da importância da cidade. O conjunto urbanístico, que foi considerado “Monumento Histórico” pelo Decreto-lei nº 94, de 22 de junho de 1938 – atente-se que 1938 foi o ano em que as principais cidades históricas de Minas Gerais ( Serro, Ouro Preto, Mariana e Diamantina) também foram reconhecidas por lei como cidades-monumentos – sofreu de alguma forma com as construções novas que foram surgindo no século passado. Já na cidade baixa, ficaram as primeiras unidades fabris e as residências dos operários; e nessa parte a arquitetura das edificações ficou mais diversificada.

O transcurso do tempo promoveu uma série de transformações socioeconômicas em São Cristóvão ao longo do século XX e nas duas primeiras décadas deste que ora atravessamos. O trem, por exemplo, há muito tempo deixou de correr por ali; é só uma lembrança evocada pelos trilhos que ainda existem. Enquanto que a cidade antiga permanece resistindo à falta de um comprometimento maior para com a sua preservação.



Esta e as cinco fotos seguintes são da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Respectivamente das páginas 463, 462, 464, 459, 460 e 460














Nas palavras de Eurico Amado registradas num pequeno catálogo do Museu de Arte Sacra da cidade, lançado provavelmente em 1984, que é a data assinalada no final do texto dele, ocorreram sim danos à paisagem urbana antiga. Leiamos o que ele disse em seu testemunho no qual não esqueceu de recordar a figura de João Bebe Água:

 

Pela rodovia João Bebe Água – nome pitoresco do festeiro local que resistiu à mudança da capital para Aracaju, negando-se a soltar foguetes até o dia em que São Cristóvão volte a ser a sede política do Estado – chega-se à cidade por um plano mais alto. De certo ponto, descortina-se a paisagem urbana numa grata e impressionante visão da arquitetura colonial das imponentes igrejas, algumas delas ainda do século XVII. Por este acesso, a cidade deixa-se surpreender em sua intimidade, entrega-se inteira e de vez ao visitante. Mostra, sem qualquer cerimônia, os danos que os homens já lhe fizeram, deformando sua paisagem urbana: o traçado das praças, o antigo calçamento de pedras e ali a imoralidade da luz de neon. Dessa desapiedada depredação salvou-se, intacta, a praça do Convento de São Francisco (Eurico Amado. “Museu de Arte Sacra de São Cristóvão – SE” [prefácio]. In Museu de Arte Sacra São Cristóvão – SE. s. l.: Museu de Arte Sacra, s. d. p. 11).


Esta e as quatro imagens seguintes são de autoria de Tom Maia para o livro Sergipe del Rei citado no texto. Respectivamente das páginas 19, 20, 21, 23 e 25 do caderno de desenhos da obra, que possui numeração própria em relação à parte textual










No dizer da famosa cordelista Alda Cruz, “Falar de São Cristóvão/É mergulhar no passado/Um passado que não passou/É se viver lado a lado/Com a cultura nordestina/Em uma cidade que nos ensina/ a valorizar e ser valorizado” (Alda Cruz. São Cristóvão que vi e vivi. São Cristóvão: Datagraph, 2015, p. 3). Façamos isso então, porque a História está em permanente construção.

 



A caminho da parte baixa da cidade




II

 

Seguindo a minha jornada de viagens para conhecer cidades antigas brasileiras, na manhã do dia 12 de dezembro de 2017 eu saí de ônibus de Aracaju com destino a São Cristóvão. Foi uma viagem ainda marcada por uma melancolia que andava comigo; minha avó falecera havia pouco mais de um mês apenas e a tristeza que me atingia era avassaladora. Viajei sozinho. E foi melhor assim.

À medida que o ônibus avançava eu via pelo caminho que na área afastada da parte de ocupação mais antiga da cidade, São Cristóvão apresentava evidente desenvolvimento urbano e um comércio pulsante e diversificado.







Atravessei também uma extensa zona rural passando por uma estrada da qual se avistavam chácaras e fazendas. Vi casas simples. Vi gente simples. Vi pela janela do coletivo a vida acontecendo naquela imensidão verdejante.

Exatamente às 9h45 eu desembarquei na antiga capital sergipana; e, sem perda de tempo, comecei a percorrer o território tomando primeiramente a direção da chamada “cidade alta”.







III


Eu estava na bela e encantadora Praça São Francisco, Patrimônio Cultural da Humanidade, apreciando o casario ali existente, o formoso casario que contorna a praça que, segundo Eurico Amado, como vimos, salvou-se de uma “desapiedada depredação” que marcou outros recantos da cidade, quando fui abordado por um sujeito que se ofereceu para me guiar pelo sítio histórico.







Não costumo seguir guias turísticos nas viagens que eu faço. Eu gosto de perceber sozinho os lugares e ir enveredando por eles. Não gosto do movimento apressado de quem só faz turismo atrás dos chamados “cartões-postais” e dos “pontos imperdíveis”. Não, eu aprecio isso sim, mas procurando por mais; eu busco ver outros desenhos também, outros cenários, porque isso é o que completa o olhar do viajante que, necessitando de uma informação, aborda alguém na rua, entra num estabelecimento comercial ou de outra natureza e, assim, interage com as pessoas do lugar.

Como eu vinha dizendo, fui abordado por um guia turístico na Praça São Francisco. Não fui educado para com ele. Na verdade, eu recusei o seu trabalho de modo ríspido. E continuei explorando o território. Até que eu me dei conta do quão grosseiro eu havia sido com o rapaz e resolvi ir até ele e lhe pedir desculpas.








Elenaldo Santos, o Galego, 36 anos na ocasião, me disse que nasceu em Lagarto; e que recebeu capacitação como guia turístico pelo Sebrae. Contou-me de algumas de suas viagens. Alertou-me sobre assaltos em Laranjeiras. Dei-lhe uns trocados.


Elenaldo Santos, o Galego: bem informado guia turístico de São Cristóvão




 

IV

O encanto com a Praça São Francisco e com os dois museus que eu visitei nela – o de Arte Sacra e o Museu Histórico – foram dando lugar a um certo desencanto à medida que eu fui me afastando dela e me deparando, aqui e ali, com monumentos carecendo de cuidados, como uma simples pintura; e com o antigo prédio da Prefeitura Municipal em estado de abandono. Contudo, aos meus olhos, o sítio histórico, no geral, estava íntegro e conservado. E eu gostei do que vi na cidade alta. E eu sei perfeitamente por que eu gostei do que eu vi ali; eu me reconheço nesses lugares; eu sinto um pertencimento a eles; e São Cristóvão renovou e intensificou esses sentimentos em mim.


Conjunto do Convento São Francisco que ocupa parte da praça reconhecida pela UNESCO como patrimônio do mundo








Infelizmente eu não encontrei nenhuma das igrejas abertas para visitação, mas fotografei todas elas. Poucas coisas me encantam tanto nos sítios históricos como as igrejas, por isso, eu sempre as procuro.









Percorri várias ruas e praças. Observei que estava precária a sinalização turística. E que, pelo menos naquelas horas, aquela parte da cidade se encontrava com pouquíssimo movimento de gente.

Não tive oportunidade de conhecer a cordelista Alda Cruz; mas tratei de adquirir dois dos seus mais de cem cordéis. Suvenires da viagem. Conheci uma casa de licores. E visitei ainda o ateliê do xilogravurista e pintor Nivaldo Maia.













 

Ah, leitor, o multiartista Miguel Falabella contou, numa crônica, o dia em que esteve em São Cristóvão acompanhando uma sua empregada, Jacira, que havia dezenove anos deixara a cidade rumo ao Rio de Janeiro em busca de trabalho e estava todo esse tempo sem ver os parentes. eis o que o cronista disse do cenário que conheceu:

São Cristóvão repousa no alto de uma colina, quieta, aparentemente inabitada, neste meio-dia de sol quente e um céu azul de doer a vista. Na praça do mosteiro, pisando nas pedras do calçamento antigo, tudo é uma só labareda do passado, um conjunto arquitetônico impressionante, um pouco da nossa história e um orgulho adormecido que, a princípio, boceja sonolento, mas que pula no peito, assim, de repente, e enche os olhos de água. São Cristóvão, eu não sabia, é a quarta cidade mais antiga do Brasil, distante alguns quilômetros de Aracaju, atual capital do estado. Tudo nela grita os tempos de Sergipe d'el Rey, uma dignidade clara, de janelas azuis e paredes espessas, testemunhas do Brasil Colônia, como os campanários do século XVII recortados contra um céu imóvel, como se Deus tivesse emborcado uma xícara de finíssima porcelana azul sobre a terra (Miguel Falabella. "O caminho de volta". In Vivendo em voz alta. São Paulo: Lua de Papel, 2011, p. 30. Leitor: esse título da obra aparece na capa, na lombada e na folha de rosto; já na ficha de catalogação foi registrado assim: Crônicas: memórias guardadas para viver em voz alta).


V

 

Na hora do almoço eu desci para a “cidade baixa”. E almocei no restaurante Comida Caseira da Maria, onde comi um delicioso e inesquecível ensopado de camarão e sururu.












De barriga cheia eu caminhei também por ali, observando os traços daquele cenário profundamente marcado por uma estação ferroviária aparentemente abandonada. Na página 462 da tantas vezes aqui citada Enciclopédia dos Municípios Brasileiros há uma foto da estação que indica que, na época do registro – possivelmente em meados da década de 1950 -, a estação estava em pleno funcionamento, porque, além de mostrar o prédio em bom estado, vemos na fotografia várias sacas empilhadas – talvez fosse milho, açúcar ou farinha de mandioca, produtos que tinham grande destaque na economia de São Cristóvão na época – possivelmente aguardando para serem embarcadas.


Imagem da estação dos trens contida na página 462 da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros


Num cenário marcado por restos de um passado que podia ser visto nas fachadas de várias casas e estabelecimentos comerciais, aos meus olhos nada foi mais impactante na chamada “cidade baixa” do que aquela estação de trens e os trilhos resistindo a tudo, inclusive, à indiferença dos tantos que neles pisavam.







Quando tomei o ônibus de volta para Aracaju eu vi, já ali, que a imagem daquela estação ficaria indelevelmente no vagão da memória puxado pelo trem da minha tristeza.



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