23 de março de 2024

A resistência do analfabetismo

 Por Sierra


Imagem: Internet
Educação não é assunto para depois; é assunto para agora, porque educar leva tempo. Enquanto a educação não for a prioridade das prioridades neste país, continuaremos amargando a triste realidade de uma elevada taxa de evasão escolar de mãos dadas com um contingente absurdo de analfabetos

Pode algum dirigente de uma nação afirmar que está empenhado em promover a conquista da cidadania de cada um dos habitantes do país sem que a tais indivíduos seja facultado o acesso à escola, a uma escola que seja realmente capaz de alfabetizá-lo?

Foi essa pergunta que eu me fiz ontem quando li uma matéria num portal de notícias que dava publicidade a dados sobre o panorama educacional brasileiro divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)  na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) 2023. De acordo com tais dados, o Brasil possui ainda espantosos 9 milhões e 300 mil pessoas com 15 anos ou mais de idade que não sabem ler ou escrever.

É claro que uma situação vergonhosa como essa não é fruto do acaso. Quem ler, por exemplo, duas obras básicas sobre o histórico do estabelecimento do ensino neste país, que são História da educação, do Paulo Ghiraldelli Jr. (2ª ed. São Paulo: Editora Cortez, 1994) e Grandezas e misérias do ensino no Brasil, da Maria José Garcia Werebe (4ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, s. d.) fica estarrecido diante da construção de todo um aparato institucionalizado pelo Estado que resultou na vigência, durante décadas, de um cenário escolar que era quase que totalmente vedado àqueles que não fossem filhos de famílias economicamente privilegiadas, ou seja, a maior parte da população. De modo que tais limitações e dificuldades de acesso à educação formal geraram um contingente muito expressivo de analfabetos e também dos chamados analfabetos funcionais, que são aqueles indivíduos que, embora tenham aprendido a ler e a escrever, não desenvolveram a contento tais competências, o que faz com que eles não consigam redigir um texto simples sem cometer falhas graves e nem compreender de todo narrativas igualmente simples.

Não é preciso ser um especialista em Pedagogia e nem conhecedor das obras dos teóricos da Educação para sabermos quão impactante é para a sociedade abrigar em seu seio um número elevado de analfabetos; impacto esse que, particularmente, afeta sobremaneira a vida da pessoa que não sabe ler nem escrever. As desigualdades socioeconômicas que marcam a realidade, ou melhor, as realidades dos quatro cantos deste país são um dos reflexos da histórica precariedade do sistema público de ensino e mesmo da ausência dele. Indivíduos com pouca ou nenhuma formação escolar tendem a conseguir subempregos e até ser vítimas do que legalmente é denominado de "trabalho análogo à escravidão". E uma mão de obra portadora de formação escolar deficiente e/ou desprovida dela tende a ser pouco produtiva porque não sabe ler um manual, uma receita, um aviso, etc., e, em consequência disso, fica com os seus conhecimentos limitados.

Em sua obra aqui citada, Maria José Garcia Werebe afirmou que "Não se pode pretender realizar a prosperidade de uma nação apenas com uma elite instruída, ao lado de uma população analfabeta" (Op. cit., p. 234). E uma boa formação escolar, salientou a autora, está direta e fundamentalmente ligada à educação basilar que deve "oferecer um mínimo de cultura básica a todos os brasileiros".

É fato amplamente sabido por aqueles que se interessam por assuntos ligados à educação que, no Brasil, há muitos anos, é bastante elevado o índice de evasão escolar. E as explicações que os especialistas dão para isso são as mais diversas: práticas de ensino pouco atraentes e/ou desconectadas com a realidade cotidiana dos estudantes; falta de recursos financeiros dos familiares dos alunos para conseguir mantê-los  frequentando as escolas; o imediatismo dos jovens que pensam que tudo poderia ser mais breve e fácil de ser alcançado e não durar anos a fio, como a vida escolar; a necessidade que muitos desses jovens têm de arranjar logo um emprego para ajudar nas despesas da casa; etc.

Numa realidade cada vez mais cheia de aparatos tecnológicos que exigem de nós inúmeras competências atreladas ao saber ler, o drama desses 9 milhões e 300 mil analfabetos que o Brasil abriga só tende a aumentar. Drama esse que inclui, principalmente, ficar de fora do aproveitamento de tais tecnologias e, por conseguinte, na dependência de quem os guie pelos labirintos dessas mudanças.

Recordando mestre Paulo Freire, um educador que vem sendo tão atacado por uma gente que se apresenta, como não poderia deixar de ser, como conservadora e opressora, educar deve ser para a prática da liberdade e da autonomia: "A educação deve ser desinibidora e não restritiva. É necessário darmos oportunidades para que os educandos sejam eles mesmos. Caso contrário domesticamos, o que significa a negação da educação" (Paulo Freire. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 32)..

A resistência e a persistência de um grande contingente de analfabetos neste país deveria envergonhar toda a sociedade e não somente os governantes. Mas, infelizmente, não é isso o que ocorre. Quantas pessoas será que leram e/ou de alguma outra forma tomaram conhecimento da divulgação dos dados sobre analfabetismo feita pelo IBGE? Em matéria de educação nós continuamos mantendo o comportamento de um aluno que acredita que o que o professor está querendo lhe ensinar não vai servir para a vida dele, e, por isso, ele não o leva a sério como deveria, o que é um comportamento de quem parece não compreender que a educação escolar é um veículo de promoção de transformação social.

Educação não é assunto para depois; é assunto para agora, porque educar leva tempo. Enquanto a educação não for a prioridade das prioridades neste país, continuaremos amargando a triste realidade de uma elevada taxa de evasão escolar de mãos dadas com um contingente absurdo de analfabetos.

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