Por Sierra
Nesta semana o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou mais alguns dados relativos ao universo urbanos de nossos milhares de municípios. E tais dados revelaram como em muitas das cidades deste país as ruas, espaços por excelência de circulação nas urbs, não são tratadas como deveriam ser: como partes essenciais do todo urbano destinadas não somente aos veículos, mas também aos pedestres.
Os dados divulgados pelo IBGE são do Censo de 2022. Quando eu me deparei com eles, em sites de notícias, me veio à lembrança uma obra de Gilberto Freyre lançada em 1982: Rurbanização: que é?, na qual ele defendeu uma harmonia entre os espaços urbanos e rurais. Segundo as palavras do eminente estudioso pernambucano rurbanização é "Um processo de desenvolvimento socioeconômico que combina, como formas e conteúdos de uma só vivência regional - a do Nordeste, por exemplo ou nacional - a do Brasil como um todo - valores e estilos de vida rurbanos [...] Trata-se de uma rejeição à mística absoluta de urbanização, por um lado, ao sonho lírico de alguns de se conservarem populações inteiras dentro de formas arcaicamente rurais de vida" (Gilberto Freyre. "Da ecologia social à rurbanização: considerações gerais e um tanto desordenadas". In Rurbanização: que é? Recife: Editora Massangana, 1982, p. 57).
Eu pensei nessa obra do autor de Sobrados e mucambos porque várias das considerações nela tratadas continuam, a meu ver, muito pertinentes e atuais dentro de uma realidade urbana ou de realidades urbanas que temos enfrentado em meio as muito discutidas mudanças climáticas, que têm provocado enchentes e inundações em muitas cidades deste país como nunca antes se vira, como ocorreu no Ro Grande do Sul. Tais calamidades públicas expuseram mais uma vez que as nossas Municipalidades não têm feito os deveres de casa, quais sejam: coibir a ocupação desordenada de morros, encostas e áreas ribeirinhas; manutenção de parques e promoção de arborização das cidades; desobstrução de escoadouros das águas servidas - o tal do saneamento básico - e pluviais; educação ambiental com vistas à promoção do destino correto dos resíduos sólidos; etc.
Eu não vou tratar aqui de todos os dados divulgados pelo IBGE. Eu quis trazer para este artigo alguns deles como retratos do processo de urbanização que está em curso neste país.
De acordo com aquele instituto, 88,5% da população - um percentual elevadíssimo - vivem em ruas pavimentadas; 18,8% apenas convivem com calçadas livres de obstáculos - é comum que tais calçadas, no mais das vezes, mal conservadas, não disponham de rampas de acesso para cadeirantes -; e 33,7% da população brasileira vivem em ruas sem nenhuma árvore, o que é outro dado realmente espantoso.
Não há ninguém que eu conheça que gostaria de morar numa sem pavimentação, como é a onde eu moro, na Ilha de Itamaracá, no litoral norte de Pernambuco, uma ilha-cidade que integra a Região Metropolitana do Recife. E por que não querem? Porque ruas pavimentadas normalmente significam valorização dos imóveis nelas existentes; fácil acesso de carros particulares e também de viaturas policiais, ambulâncias e de caminhões de coleta de lixo; e facilidade de deslocamento de pedestres e cadeirantes, muito embora saibamos que não são poucos os logradouros e vias pavimentados que apresentam problemas diversos, como falta de bueiros e bocas de lobo e de instrumentos que promovem a redução da velocidade de veículos automotivos.
Os dados divulgados pelo IBGE lançaram luz para um fato de nossa realidade facilmente percebido por todos aqueles que conservam alguma memória urbana da cidade onde vive e/ou de cidades pelas quais circula e visita de vez em quando. O observador atento das transformações por que sua cidade passou ao longo dos anos certamente notou que várias delas foram levadas a cabo para beneficiar os proprietários de veículos automotivos: imóveis foram demolidos parcial ou totalmente para dar lugar a novas ruas e avenidas e/ou para alargar as já existentes. Como eu tantas vezes já disse, a cultura urbana rodoviária, imperante há décadas neste país, é a grande responsável pela mutilação de cidades, destruição do patrimônio histórico edificado - alguns dos prédios antigos são parcialmente demolidos para darem lugar a estacionamentos - e, claro, pelo número elevadíssimo de mortes no trânsito que o Brasil registra todos os dias.
A política governamental que, com incentivos fiscais, prioriza o veículo automotivo particular em detrimento dos sistemas de transporte público de passageiros, só contribui para que muitos acreditem que a questão da melhoria da mobilidade urbana seja um problema insolúvel neste país. Enquanto cidades europeias - como é o caso de Paris - estabelecem cada vez mais restrições para a circulação de carros, nós continuamos aqui insistindo em nos manter na direção contrária. Não se pensa e nem se fala numa reorganização do espaço urbano; daí por que a maioria de nossas ruas e avenidas desde há muito permanece sendo espaços destinados quase que exclusivamente aos veículos automotivos e, portanto, excludentes e perigosos para pedestres e cadeirantes.
Um dado muito grave e preocupante também, gente, é que a pavimentação, o calçamento, a asfaltização de ruas e avenidas, em muitas cidades, vem acompanhada de eliminação dos já às vezes escassos elementos verdes que as vias possuem - vocês viram, na foi? 33,7% de nossa população vivem em ruas que não possuem sequer uma árvore -, como se a convivência do asfalto com a vegetação não fosse possível e como se nós não tivéssemos necessidade de sombras e dos efeitos benéficos que as árvores provocam na melhoria da qualidade do ar, sobretudo em cidades apinhadas de carros que exalam toneladas de monóxido de carbono na atmosfera diariamente.
Não vejo um bom futuro para as nossas cidades. Muito pelo contrário. Enquanto a política governamental for regida pelo lema "um carro para cada cidadão" nós continuaremos assistindo ao aumento do caos no trânsito e às constantes mutilações e redesenhos dos traçados urbanos para acomodar o maior número de automóveis que for possível.
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