Por Sierra
Nasci e cresci numa cidade chamada Abreu e Lima, localizada na Região Metropolitana do Recife, que não dispunha de livrarias; e, a ideia do que era uma biblioteca, eu só vim a ter quando, aos 11 anos de idade, eu ingressei na antiga 5ª série do 1º Grau, em 1985, na Escola Polivalente do meu terrão natal. Pobre, suburbano, filho de uma mãe solteira que batalhava como podia pra criar dois filhos, à minha casa os livros só chegaram quando minha mãe comprou, a um prestanista que apareceu em nossa porta, um conjunto de três livros de estórias infantis e outros dois com perguntas e respostas sobre os assuntos os mais variados.
Mas os tais livros não fizeram de mim um leitor. Nem esses que minha mãe comprou, nem os que eu via na casa dos meus padrinhos Maria Lúcia e Aleixo Miranda e nem os da biblioteca da escola.
Muito embora Abreu e Lima não ficasse muito distante da capital, ir ao Recife não era algo comum para a gente que se encontrava no mesmo nível social que a minha família e nas condições nas quais nós vivíamos.
Ir à capital, quando se ia, era um verdadeiro acontecimento; e tanto que ir ao Recife significava ir à "cidade", como se só o Recife fosse uma verdadeira cidade. Ninguém, pelo menos do meu círculo de convivência, dizia "eu vou ao Recife": a pessoa dizia "eu vou à cidade"; e, ouvindo isso, todos nós sabíamos que a pessoa estava indo à capital.
Não dispondo de uma verdadeira vida cultural quando criança e adolescente, eu só conheci e comecei a frequentar livrarias quando fiquei adulto e consegui um emprego, primeiro numa livraria de livros didáticos, depois, num cargo público. Acontece que as idas a algumas livrarias do Recife só começaram efetivamente quando eu ingressei no curso de bacharelado em História, na Universidade Federal de Pernambuco.
Por esse tempo, final da década de 1990, eu fui algumas vezes à icônica Livro 7, à Síntese, à Saraiva, à Cortez e a algumas unidades da Livraria Imperatriz. Eram ainda tempos bicudos para mim, porque, embora empregado, o meu salário era uma mixaria, de modo que eu, a bem da verdade, visitava mais livrarias para ver e folhear livros do que comprá-los.
A virada do século XX para o século XXI trouxe consigo uma novidade no mercado livreiro: o aparecimento das chamadas megastores: livrarias imensas que, além de livros, comercializavam cd's, dvd's e outras coisas mais; e com outros atrativos, como cafeterias; e várias delas foram abertas em shopping centers. O advento dessas megastores decretou o enfraquecimento e depois o fechamento de algumas livrarias do centro do Recife: a Síntese, que ficava na Rua do Riachuelo; a Livro 7, na Rua Sete de Setembro; e a Saraiva, que também ficava nessa mesma rua e que só fechou porque a própria rede aderiu ao formato megastore. Já a Livraria Imperatriz figurou como heroína da resistência, aguentando o tranco e o poder da forte concorrência mantendo as suas unidades nas ruas Sete de Setembro e da Imperatriz e abrindo unidades também em shoppings.
Quando o burburinho dando conta de que seria instalada uma filial da Livraria Cultura no Bairro do Recife, no Cais da Alfândega, uns e outros começaram a dizer que o empreendimento lançaria uma pá de cal nas livrarias menores. E assim foi: em 2005 a Livraria Cultura foi aberta dando início a um dos capítulos mais memóraveis do universo livreiro no Recife, que fora durante muitos anos dominado pela memorável Livro 7.
O livro do Pedro Herz
Ainda que a minha vida financeira tenha melhorado ao longo dos anos, nem sempre eu comprava em livrarias as obras que me interessavam; eu ia, como até hoje eu vou, a alguns dos vários sebos existentes no Recife; e também recorria, como ainda recorro, ao site Estante Virtual, surgido em 2005 - ele foi, doze anos depois, comprado pela Livraria Cultura, e, posteriormente, pelo Magazine Luiza -, e às lojas que vendem de quase tudo, como a Amazon, que provocou um solavanco enorme nas livrarias com sua política agressiva de preços, e a Americanas. Contudo, eu passei a frequentar também a Livraira Cultura, encantado que eu fiquei com aquele espaço; e fiz muitas compras lá, apegado ao seu programa de fidelidade.
Antes mesmo que eu começasse a ler O livreiro: como uma família começou alugando 10 livros na sala de casa construiu uma das principais livrarias do Brasil (São Paulo: Planeta do Brasil, 2017), escrito pelo Pedro Herz, eu já me vi tomado por uma forte emoção. Primeiro,porque me veio à lembrança do falecimento de seu autor, no ano passado; e, segundo, porque a Livraria Cultura, do Paço Alfândega, no Recife - a do Shopping RioMar eu pouco frequentei -, continua sendo a livraria mais importante da minha vida, porque foi nela que eu vivenciei alguns dos momentos mais felizes de minha existência até aqui. Foi lá que eu lancei os meus primeiros livros; foi lá que ocorreu o lançamento da obra O grande sedutor: escritos sobre Gilberto Freyre de 1945 até hoje, que eu organizei do meu saudoso amigo Edson Nery da Fonseca; foi lá que eu estive com um dos biógrafos de Clarice Lispector, o norte-americano Benjamin Moser; foi lá que eu aplaudi as cantoras Klébi Nori e Érica Maria nos pockets shows que aconteciam no auditório; foi lá que eu acompanhei o meu querido Cristiano Galvão no lançamento do seu A transformação do indivíduo em quase Estado; foi lá que eu estive com Anco Márcio Tenório Vieira, Leonardo Dantas Silva e Marco-Aurélio de Alcântara, grandes expressões do cenário intelectual pernmabucano; foi lá que eu estive várias vezes em companhia de Ernani Neves, num tempo em que caminhávamos muito juntos pelas estradas da vida; e foi lá que, enfim, sozinho, eu percorria aquele espaço onde eu pegava a Revista da Cultura e enchia os meus olhos com tantos livros, cd's e dvd's que uns eu comprava de imediato e outros eu escrevia em minha lista de desejos, de forma que frequentar a Livraria Cultura era sempre um grande e prazeroso acontecimento para mim, porque permanecer lá dentro era como estar num outro mundo, muito diferente do mundo que ficava do lado de fora.
Não pense o leitor que esse O livreiro, do Pedro Herz, é apenas e somente um livro que narra a história da gênese da Livraria Cultura. É muito mais do que isso .O que você lerá nele não é só a respeito de judeus alemães que, perseguidos pelos nazistas, vieram tentar ganhar a vida no Brasil; você não entrará em contato apenas com os percalços e dificuldades enfrentados pela família Herz para fazer um empreendimento livreiro acontecer. Em O livreiro nós, leitores, entramos essencialmente em contato com pessoas que tanto quanto comprometidas com o comércio de livros estavam substancialmente irmanadas e empenhadas para que o saber e o conhecimento circulassem e chegassem ao maior número de pessoas que fosse possível; eram um compromisso e um empenho visando uma transformaçãoo social por meio da leitura e dos livros. Não era pouca coisa. Não era mesmo.
Lendo O livreiro eu enxerguei nos posicionamentos e questionamentos levantados por seu autor a dimensão profunda de um cidadão que tocava em frente o negócio de sua família sem deixar de lançar os seus olhos para os dramas cotidianos vivenciados por milhões de indivíduos numa sociedade economicamente tão desigual. Pedro Herz fala sobre o mercado livreiro e o universo dos livros, mas também nos diz sobre educação de filhos, economia, ações desabonadoras praticadas por uns e outros, etc. Tanto quanto uma narrativa memorialística, O livreiro é um ato de coragem de quem não se prendia ao passado porque se sentia também comprometido com o que estava por vir, com o futuro. É, em suma, um livro ao mesmo tempo emocionante, vibrante e entusiasmador.
Recentemente eu vi, num documentário sobre o historiador Sérgio Buarque de Holanda, o professor Antonio Candido dizer que os amantes dos livros às vezes cometem loucuras por causa deles. Eu confirmo tal assertiva porque, na minha vida, eu já cometi algumas loucuras para adquirir certos livros da minha biblioteca; e, algumas delas, eu cometi justametne na inesquecível Livraria Cultura do Paço Alfândega.
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