Por Sierra
A forma como a imagem de um país foi construída e disseminada pelos Estados Unidos, ao longo de praticamente todo o século XX, fez com que a pátria norte-americana fosse vista por muitos como uma verdadeira Terra da Promissão, onde carrões atravessam autoestradas largas, aparentemente infinitas e sem imposição de limites de velocidade; a fábrica de sonhos de Hollywood produzia um encantamento atrpas do outro; o castelo da Cinderela, na Disneyworld, estava lá à espera de súditos do mundo todo que pudessem pagar pelo ingresso; Elvis Presley, Frank Sinatra e Michael Jackson embalavam as festas; e a fartura poderia ser vsita em quase todos os espaços daquela Pátria Abençoada.
Em diferentes épocas e momentos de sua história recente, alguns norte-americanos, contrariando tanto o hard power como o soft power dos discursos oficiais, começaram a dizer ao resto do mundo que, vista bem de perto, a Terra da Promissão não era tão promissora e nem tão perfeita assim para certos tipos de indivíduos.
Desde a luta e o ativismo de Martin Luther King com o seu "I have a dream" que dos Estados Unidos ecoam vozes dissonantes da uniformidade levada a cabo e difundida pela Casa Branca na figura icônica do Tio Sam. Recorrendo ao chamado soft power, uma arma poderosíssima de influência, alguns artistas se puseram a, digamos, expor bastidores nada coloridos e brilhantes do dito Paraíso na Terra. Vejamos alguns exemplos bastante ilustrativos disso no parágrafo seguinte.
No ano de 1984, durante o governo do presidente Ronald Reagan, o cantor Bruce Sprinsgteen lançou o disco Born in the USA, que trazia uma música homônima cuja narrativa se portava como um testemunho triste de um veterano da Guerra do Vietnã que dizia daquele tempo de combate e também da volta ao seu país natal à procura de emprego: ele, que fora matar gente numa terra estrangeira, estava, agora, lutando para sobreviver em sua própria pátria. Em 1999, às vésperas, portanto, do encerramento e do fim do século XX, o diretor Sam Mendes, com um roteiro assinado por Alan Ball, pôs nos cinemas de todo o mundo uma pérola chamada American beauty (Beleza americana), que é um verdadeiro libelo contra o american way of life; no filme, quase nada é realmente o que aparenta ser; e as teias e tramas sociais que vemos nele são como retratos criticamente incisivos e reveladores de uma sociedade altamente consumista que faz a pregação de um modo de vida que cria autômatos e desesperados por tentarem alcançar a plenitude do ter para ser e/ou pelo menos aparentar o alcance dos símbolos de triunfo e de status. Quatro anos depois do sucesso do filme American beauty, dois anos após os ataques terroristas que destruíram as torres do World Trade Center e no mesmo ano em que o presidente George W. Bush ordenou a invasão do Iraque alegando que aquele país possuía armas de destruição em massa e apoiava grupos de terrorismo - nada foi dito, claro, sobre os interesses norte-americanos nas reservas de petróleo iraquianas -, a cantora Madonna lançou ela mesmoa um petardo em forma de cd: o disco American life que, embora não tenha sido bem recebido pela crítica de modo quase que geral - a exploração da iconônica imagem de Che Guevara para inspirar a foto da capa esteve na esteira dos relatos negativos -, trouxe, na música homônima, outro olhar sobre o tão celebrado american dream. Já em 2018 - e também no campo musical - foi a vez de Childish Gambino cutucar a realidade racista vivenciada pela população negra dos Estados Unidos com um clipe contudente da música "This is America" - dois anos depois, em Mineápolis, no Minnesota, George Floyd, um homem negro, foi sufocado até a morte por um policial branco que pressionou um joelho no seu pescoço durante oito minutos e quarenta e seis segundos: o "I can't breathe" de George Floyd ecoou em protesto ao redor do mundo num movimento de indignação global como há tempos não se via.
O germe da distopia trumpista
Egresso do mundo empresarial e muito conhecido por conta de um programa de televisão - O aprendiz - que foi exibido em vários países, inclusive, ganhando versões locais, como ocorreu no Brasil, Donald Trump despontou no cenário político norte-americano não como um outsider qualquer e, sim, como um indivíduo que, fazendo discursos inflamáveis nos quais se misturavam posturas anti-imigração e ataques a direitos coquistados por grupos minoritários, à ciência, à liberdade de expressão e a organismos internacionais, como a Organizaçao Mundial da Saúde e a tratados em defesa do meio ambiente, como o Acordo de Paris, mexeu com corações e mentes tão irascíveis, extremistas e negacionistas quanto os dele; e o resultado disso foi que, embalados pelo sonho de que a América fosse grande novamente, Donald Trump chegou à Presidência da República dos Estados Unidos; e, o que se viu, ao longo de quatro tenebrosos anos - e ainda tendo a ocorrência de uma mortal pandemia de covid-19 no meio -, foi um presidente ególatra e excessivamente vaidoso dia após dia reforçando sua inclinação autoritária, fazendo parte do mundo civilizado se perguntar: o que está acontecendo com a maior democracia do planeta?
O que estava - e está - acontecendo, segundo vários analistas, é que uma onda de extrema-direita se espalha pelo mundo afora como que copiando e emulando o autoritarismo e o abalo das estruturas basilares da democracia levados a cabo por Donald Trump; extremismo-direitista esse que fez chegar à Presidência da República de alguns países figuras tão execráveis e perniciosas quanto Donald Trump, como ocorreu, por exemplo, no Brasil, com a eleição de Jair Bolsonaro, e em El Salvador, com Nayib Bukele.
Como é sabido, Donald Trump não conseguiu ser reeleito, insuflou os seus apoiadores a desacreditar o resultado das eleições que puseram o democrata Joe Biden na Casa Branca e, na esteira disso, ocorreu um ataque sem precedentes ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021; invasão essa que assombrou o mundo e que, mais uma vez, revelou que o trumpismo é um câncer em estado de metástase na democracia norte-americana - no Brasil, o arremedo estúpido e piorado de Donald Trump, igualmente foi derrotado nas urnas em sua tentativa de emplacar mais um mandato ao custo de uma rede bem ordenada de manobras e desinformação; e os seus apoiadores repetiram o que se viu nos Estados Unidos: no dia 8 de janeiro de 2023, eleitores de Jair Bolsonaro invadiram as sedes dos Três Poderes, em Brasília, e praticaram crimes a rodo, destruindo e saqueando o patrimônio público e vandalizando obras de arte.
Como um vulcão em permanente estado de erupçãp, o trumpismo continuou disseminando seus males pelos Estados Unidos e além enquanto Joe Biden era tragado pelo peso econômico provocado pela pandemia de covid-19, pela exploração de sua debilidade física pela mídia e pelo recrudescimento do discurso que dizia que só mesmo Donald Trump poderia resgatar os Estados Unidos do fundo do poço no qual diziam que eles se encontravam; e o resultado disso foi que o empresário multimilionário envolvido até o pescoço em imbróglios judiciais e casos obscuros - o fantasma de Jeffrey Epsstein permanece rondando a Casa Branca - conseguiu, outra vez, envolver parte do eleitorado e voltou a ser eleito para um segundo mandato com a promessa de fazer a América grande novamente, emendando um again atrá do outro.
No território do medo e da incerteza
Na noite do último dia 7 de agosto eu fui até o Recife, precisamente ao campus do Derby, da Fundação Joaquim Nabuco, prestigiar o lançamento do livro Tomara que você seja deportado:uma viagem pela distopia americana (São Paulo: Editora Nós, 2025), do jornalista e escritor Jamil Chade.
Durante a palestra e o debate que a ela se seguiu, eu fui tomado por um misto de angústia e de terror ouvindo o que o muito bem articulado e senhor do seu ofício Jamil Chade discorreu sobre alguns dos horrores que ele viu e ouviu durante a temporada que ele passou nos Estados Unidos às vésperas das eleições presidenciais e já no decorrer do início do mandato de Donald Trump.
Lendo o livro, aquela angústia sentida no dia em que eu me encontrei e abracei o Jamil Chade, se amplificou. Ao longo de mais de 200 páginas, Chade relatou, com muitos detalhes, como, sob Donald Trump, os Estados Unidos começaram a mergulhar numa distopia que se mostra deveras empenhada em, de alguma forma e medida, abalar os pilares da até aqui maior e mais poderosa democracia do planeta.
E esse movimento trumpista de corrosão dos fundamentos democráticos do american way of life está se processando em diferentes frentes: cerceamento da liberdade de expressão; ataques a funcionários públicos; desautorização de autoridades; banimento de livros; perseguição desenfreada a imigrantes, quer sejam eles criminosos ou não; disseminação de desinformação; asfixia e supressão de direitos e conquistas alcançados ao longo de muitos anos pelas minorias; etc.
Não dá para sair de Tomara que você seja deportado sem pensar que, como bem disse Jamil Chade, a corrosão de uma democracia como a norte-americana não significa que apenas A, B e C estão desprotegidos: na realidade, significa que, diferentemente do que muitos pensam, por se terem como "amigos do rei", todos nós estamos sob ameaça, porque tais ideias distópicas se espalham pelo mundo, como vemos nas posições antidemocráticas e autoritárias tomadas e defendidas por Jair Bolsonaro e por seus apoiadores.
Tomara que você seja deportado é uma leitura obrigatória para quem quer começar a entender qual é o real papel de Donaldo Trump no governo dos Estados Unidos.
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