Por Sierra
Foto: Acervo da Família A valente e saudosa Dona Nenê. Não posso dizer que ela deixou em mim um vazio, porque de mim ela não saiu e nem vai sair, porque eu jamais vou esquecê-la |
Quem viaja, seja a passeio,
seja a trabalho, costuma carregar em seu bagageiro mental muitas referências
dos lugares por onde passou. Eu sou assim. E tanto quanto de paisagens,
estabelecimentos, eventos e acontecimentos experimentados nos lugares é muito
corriqueiro que eu carregue, também, lembranças de pessoas que eu conheci em tais
viagens. E quando algumas dessas pessoas tornam a ser vistas em viagens
sucessivas é que a coisa ganha contornos mais sólidos e permanentes no meu
diário de viagem.
A princípio eu comecei a
frequentar a Pousada Nossa Senhora das Neves, localizada entre as ruas Branca Dias e Dom Carlos Gouvêia Coelho, na capital da Paraíba, em
companhia de Ernani Neves, então meu fiel parceiro de vida e de viagens pelo
Nordeste afora. Depois, foram várias as vezes em que, metido comigo mesmo,
sozinho e nem por isso desanimado, porque a solidão nunca me fez mal, eu fui me
refugiar ali em finais de semana e mesmo quando me encontrava de férias do
trabalho. Era sempre assim: eu ligava para a pousada perguntando se tinha um
quarto disponível e a voz do outro lado me dizia: “Tem sim, meu filho, pode
vir”.
Era com esse jeito de mãezona
que uma irrequieta Maria da Neves, a Dona Nenê, costumava
tratar os seus hóspedes. A bem da verdade, nunca, em todos os anos que
frequentei o seu estabelecimento, eu fiz qualquer registro de hospedagem. Eu
pensava cá comigo: “Poxa, isso não tá certo. Se acontecer algo comigo na cidade
nem a policia nem o pessoal do hospital vai saber onde eu tô hospedado”. Mas
com o tempo eu relaxei. O que é que eu poderia fazer se era como se estivesse
recebendo visitas em sua casa que Dona Nenê tratava os seus hóspedes?!
Cartão que Dona Nenê me deu na primeira vez que eu me hospedei na pousada, muitos anos atrás |
Costumeiramente era durante o café da manhã que eu conversava demoradamente com Dona Nenê. Ao longo destes meus 51 anos de vida não foram poucas as mulheres de fibra que eu tive o privilégio de conhecer. Ela falava com orgulho da sua luta para criar os dois filhos, Aurílio e Aurélio, e do grande empenho para construir a sua pousada. Incansável em sua labuta diária, Dona Nenê tinha um verdadeiro horror à gente preguiçosa e acomodada. Certa feita ela me disse assim: “Meu filho, tem gente que você oferece emprego e a criatura não quer. Tem gente que prefere viver das esmolas que o Governo dá, como esse Bolsa Família. Tô cansada de ver isso por aqui”. E seguia falando sobre vários acontecimentos de sua vida e do seu empenho para manter os negócios, como o restaurante que funcionava no térreo de um dos dois prédios da pousada - ah, e nas noites das sextas-feiras rolava música ao vivo; e ela de pronto avisava: “Meu filho, o som não vai até tarde, não. No máximo à meia-noite a gente termina”. Aurílio, seu filho mais velho, integrava a banda; e o evento contava com um público fiel.
Paraibana nascida na cidade de Itapororoca, ainda adolescente ela começou a trabalhar como dona de bar. Não teve sorte no casamento: casou-se com um sujeito que a maltratava e a espancava. E, como Maria da Neves não era mulher de viver apanhando de ninguém, separou-se do homem que a agredia e resolveu dar ela própria um rumo para a sua vida na João Pessoa onde moravam, cuidando dos filhos e mirando o futuro com a confiança de que venceria todos os obstáculos para "fazer dos filhos gente", como ela costumava dizer. E ela conseguiu isso. Ela venceu as dificuldades todas que apareceram; e é um exemplo de força, perseverança e resistência.
Foto: Acervo da Família Dona Nenê na entrada da sua pousada |
Tempos atrás, numa de minhas idas à capital paraibana, já sabendo do falecimento de Dona Nenê - acontecimento esse que me fora contado por Tony Lamon, um vendedor de lanches que morava nas adjacências da pousada - eu senti uma certa melancolia. Foi uma coisa muito triste. Seu filho Aurélio me contou que a causa mortis foi infarto. Dona Nenê, uma mulher determinada, guerreira e batalhadora de coração enorme foi vitimada por uma doença cardíaca. Ela estava com 69 anos. Dona Nenê vai permanecer no meu diário de viagem como um dos grandes personagens que eu tive o privilégio de conhecer nessas minhas andanças. Não posso dizer que ela deixou em mim um vazio, porque de mim ela não saiu e nem vai sair, porque eu jamais vou esquecê-la.
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