18 de outubro de 2025

O Museu Afro-brasileiro de Laranjeiras

Por Sierra

 

Fotos: Arquivo do Autor
Instalado num imponente sobrado, no sítio histórico de Laranjeiras, este museu é um espanto. Que acervo rico ele possui! A manutenção de tal equipamento museal e cultural numa cidade cuja história é profundamente marcada pela cultura dos engenhos de açúcar é algo extremamente necessária para que as gerações atuais compreendam a dimensão do que foi o regime escravocrata neste país e as suas consequências que perduram até os dias atuais



Sobre lutar e resistir...

 

Segundo os levantamentos feitos pelo historiador Luis Felipe de Alencastro, em cerca de 14.910 viagens transcorridas durante três séculos, o total de africanos desembarcados no Brasil – principalmente nos portos do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco – atingiu o quantitativo de 4,8 milhões de indivíduos. No período que vai de 1500 até 1850, “em cada cem pessoas desembarcadas no Brasil durante esse período, 86 eram escravos africanos e catorze eram colonos e imigrantes portugueses” (Luiz Felipe de Alencastro. “África, números do tráfico Atlântico”. In Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes [orgs.]. Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 60).










A graciosa monitora Iandra Leal: obrigado mais uma vez, querida, por me guiar pelas dependências desse grande e admirável museu


Escravidão, castigos, desamparo social no pós-abolição da escravatura, perseguição, demonização e preconceito contra as suas atividades religiosas, preconceito racial... Promoveu-se a imigração de colonos europeus e asiáticos deixando-se os negros entregues à própria sorte. Os negros que, na precisa definição de Antonil, eram “as mãos e os pés do senhor de engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente” (André João Antonil. Cultura e opulência no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, p. 159), agora, com a abolição da escravatura, eram só rejeitos de uma sociedade deveras excludente e renegadora do seu passado. 

É ponto pacífico se ler que os negros africanos que foram trazidos para as terras brasileiras na condição de escravos para labutar fundamentalmente nas grandes lavouras de cana-de-açúcar, café e fumo e, também, no pesado serviço das minas, para conseguirem manter seus ritos e adorar os deuses que com eles vieram da África, passaram a recorrer ao que comumente se chama de “sincretismo religioso” e “dupla pertença” que, numa explicação bastante simples e ligeira significa que eles, os negros, cultuavam as suas entidades e as suas cosmogonias, misturando-as, por assim dizer, com os santos e os rituais existentes na dominante religião cristã da Igreja Católica Apostólica Romana.

Registros e testemunhos históricos nos dão conta de que a travessia dos séculos não tirou das chamadas “religiões de matriz africana” o “significado” de “coisa ruim” e de “práticas condenáveis” e “demoníacas” que um considerável contingente de católicos e protestantes até hoje lhes atribui, chegando mesmo a dizer – e o que eu considero a suprema face da intolerância e do repúdio – que tais “práticas” são qualquer outra coisa – superstição, feitiçaria, idolatria, magia -, nunca religião, como destacou Luis Nicolau Parés, que enfatizou ainda o seguinte: “A demonização por parte da Igreja foi seguida da criminalização pelos códigos penais, da patologização pelos médicos e da denúncia pelos jornalistas. No entanto, a política da repressão se alternou historicamente com uma certa tolerância seletiva. Na maioria das regiões, acabou por emergir um combinado entre práticas aceitáveis e legitimadas como religião e outras proscritas como perigosas e sincréticas, amiúde associada à feitiçaria” (Luis Nicolau Parés. “Religiosidades”. In Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes. Op. cit., p. 382).











Tomemos como exemplo o Recife, uma das chamadas “cidades negras” do país. Assim como o Rio de Janeiro e Salvador, para termos conhecimento do que foi, na primeira metade do século XX principalmente, a realidade vivenciada por negros para manter e cultuar suas ancestralidades.

Num estudo bastante minucioso e esclarecedor Maria das Graças Andrade Ataíde de Almeida analisou as tramas e relações de poder na interventoria de Agamemon Magalhães, entre 1937 e 1945, ou seja, durante o governo ditatorial do Estado Novo de Getúlio Vargas. Uma de suas abordagens enfocou as perseguições sofridas pelos adeptos das religiões de matriz africana. Disse-nos ela: “[...] os terreiros afrobrasileiros passaram a sofrer perseguições policiais, sendo fechados [...] Seus adeptos ocuparam as primeiras páginas dos jornais da cidade, sendo humilhados e ridicularizados frente à sociedade pernambucana” (Maria das Graças Andrade Ataíde de Almeida. A construção da verdade autoritária. São Paulo: Humanitas/FFCH/USP, 2001, p. 155).









A política autoritária então em voga no Recife do Estado Novo manifestava a intenção de alçar a capital pernambucana nas teias da modernidade e do progresso. Enquanto a área central da cidade era reurbanizada, desfazendo parte do desenho do período colonial, tido como símbolo de atraso, o processo de embelezamento e higienização da metrópole englobava se livrar dos “indesejáveis”, como os moradores de palafitas e mocambos, e as práticas religiosas dos afrodescendentes que se viram, em sua quase totalidade, tendo como uma das estratégias de sobrevivência, de se deslocar para os subúrbios, “onde encontraram espaço geográfico para suas habitações/moradias e continuidade de suas práticas religiosas; por outro [lado], criaram e recriaram estratégias e manutenção de seus cultos, camuflando seus terreiros em agremiações carnavalescas, ocultando seus orixás [...] propositalmente, por trás de santos católicos, persistindo na manutenção do culto mesmo quando presos; negociando, estabelecendo regras para aqueles que poderiam obter conhecimento sobre seus rituais” (Valéria Gomes Costa. É do dendê! História e memórias urbanas da nação Xambá do Recife [1950-1992]. São Paulo: Annablume, 2009, p. 25).













Compreendendo um corte temporal que vai de 1930 a 1980, também tendo o Recife o como objeto de análise, Maristela Oliveira de Andrade, em artigo no qual fez uma série de análises sobre a sua tese de doutorado, nos disse que, em seu estudo, procurou contestar teses que apontavam  umbanda como uma modalidade de culto que teria se integrado à modernização do Brasil, em geral, e de Pernambuco, em particular, graças a uma racionalização de suas práticas, resultando na eliminação de rituais e crenças que lhe davam um caráter de religião fetichista e negra. O que realmente  ocorreu, segundo a avaliação da autora, foi que no processo de modernização, na ótica em que fora concebido, implicava a eliminação definitiva das práticas mágicas; e o que a umbanda fizera foi tão somente uma “assepsia” em seus rituais, embora mantendo o caráter mágico de suas práticas e crenças. A adoção do que a autora chamou de “um modelo branqueado” assumido pelos adeptos da umbanda, com a eliminação dos sacrifícios de animais, a moderação visual e sonora, resultantes da substituição de um guarda-roupa ritual colorido por batas brancas, além do abandono do som dos atabaques, “o elemento mais vibrante do ritual africano”, pode ser interpretada, segundo ela, “como mais uma estratégia de sobreviver às pressões da sociedade, semelhante àquela adotada anteriormente, de sincretização entre as divindades africanas e os santos católicos, que passaram a figurar nos altares africanos, escamoteando os recipientes de pedra que verdadeiramente representam os deuses do panteão negro” (Maristela Oliveira de Andrade. “Pensamento mágico e religioso, a ancestralidade africana da cultura brasileira”. In Cultura e tradição nordestina: ensaios de História Cultural e Intelectual. João Pessoa: Editora Ideia, 1997, p. 25-26. O artigo compreende as páginas 21 a 34).

A dimensão de uma, digamos, estratégia de sobrevivência das chamadas religiões de matriz africana ainda hoje ecoa como um exercício de resistência que é praticado de modo permanente por seus adeptos. Quase cinco séculos depois que os primeiros negros chegaram ao Brasil na condição de escravos para trabalhar em várias frentes, pode-se dizer, sem medo de soar exagerado, que a luta deles contra a, por assim dizer, dominação do branco, continua na ordem do dia. Ainda que a abolição da escravatura tenha ocorrido no longínquo ano de 1888, os efeitos de mais de trezentos anos do regime escravocrata permanecem incrustados no seio da sociedade, como revelam o racismo estrutural, os constantes episódios de preconceito racial e os frequentes ataques a terreiros de religiões de matriz africana que, para muita gente, nem religiões são. Como certa feita disse Gilberto Freyre, “é evidente que o preconceito racial não se manifesta sempre diretamente: toma algumas vezes expressão disfarçada, como nos casos de grupos que, adotando atitude agressiva em relação a outros grupos, hoje ou outrora afirmam defender causa ou interesses, não de raça ou de raça ou de classe, mas de civilização, de religião ou de ideologia” (Gilberto Freyre. “Eliminação de conflitos e tensões entre raças”. Trad. Waldemar Valente. In Palavras repatriadas. Textos reunidos, anotados e prefaciados por Edson Nery da Fonseca. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2003, p. 116). Em vista de tudo isso, eu acredito que a educação contra os preconceitos deve ser uma prática cotidiana, uma ação diária que deve ser pensada e tomada como medida de transformação comportamental que, por conseguinte, provocará uma transformação social.
























Acompanhemos algumas narrativas sobre ataques a terreiros ocorridos em diferentes estados deste país: no dia 29 de julho de 2016 um terreiro foi incendiado e saqueado na Comunidade Alto do Miranda, no Cabo de Santo Agostinho, Região Metropolitana do Recife. O pai de santo Douglas Hanubis declarou, na época, que não acreditava que o crime tivesse sido praticado por intolerância religiosa (“Terreiro é saqueado e incendiado no Cabo”. In JC Online:  https://jc.ne10.uol.com.br/canal/cidades/policia/noticia/2016/07/29/terreiro-e-saqueado-e-incendiado-no-cabo-246562.php.  Publicado em 29/7/2016. Acessado em 27/1/2021).

 Por volta das 16h do dia 14 de novembro de 2019, o terreiro Ilê Axé Icimimo, localizado em Cachoeira, cidade do Recôncavo Baiano, foi incendiado; fora a segunda vez, naquele ano, que o local sofrera ataque. “Mais uma vez estamos passando por esse momento difícil”, declarou o pai de santo Duda Candola (“Pai de santo relata incêndio criminoso em terreiro da Bahia”. In Catraca Livre: https://catracalivre.com.br/cidadania/pai-de-santo-relata-incendio-criminoso-em-terreiro-da-bahia/. Publicado em  17/11/2019. Acessado em 28/1/2021). 

No Rio de Janeiro os ataques dessa natureza passaram a ser praticados de maneira coordenada por traficantes convertidos numa igreja neopentecostal. Em agosto de 2019 o terreiro Ilê Axé de Bate Folha, em Duque de Caxias, foi invadido por traficantes – o décimo caso registrado só na Baixada Fluminense -; eles quebraram as imagens e oferendas e ameaçaram de morte a mãe de santo. Investigações da Polícia Civil apontaram a relação entre evangélicos e traficantes que integravam o chamado Bonde de Jesus (“Polícia prende ‘Bonde de Jesus’ que atacava terreiros de umbanda e candomblé”. In Estadão Conteúdohttps://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2019/08/18/interna_nacional,1078089/policia-prende-bonde-de-jesus-que-atacava-terreiros-de-umbanda-e-can.shtml.  Publicado em 18/8/2019. Acessado em 22/6/2021). 

De acordo  com Maycon de Oxum, um dos responsáveis pela Tenda Nossa Senhora Aparecida, terreiro de umbanda localizado em Boqueirão do Piauí, a casa já vinha sofrendo ameaças, ameaças que culminaram com o incêndio do espaço em 22 de dezembro de 2020 (“Terreiro de umbanda é incendiado em Capitão de Campo”. In Piauí Hoje: https://piauihoje.com/noticias/municipios/terreiro-de-umbanda-e-incendiado-em-campo-maior-358085.html#:~:text=O%20local%20tinha%20teto%20e,em%20menos%20de%20cinco%20minutos&text=A%20casa%20%E2%80%9CTenda%20Nossa%20Senhora,ter%C3%A7a%2Dfeira%20(22).  Publicado em 27/12/2020. Acessado em 27/1/2021). 

No bairro Carlos Sampaio, em Nova Iguaçu, no Rio de janeiro, a Tenda Espírita Pai Joaquim da Angola foi incendiada em plena manhã de um domingo. Desconsolado com o ocorrido, Pai Emilson de Iemanjá lamentou: “Quando cheguei lá, fiquei em desespero [...] Tanto sacrifício, luta, anos para conquistar o que a gente tem e vem uma pessoa e faz isso” (Cíntia Cruz. “Terreiro de umbanda é incendiado em Nova Iguaçu”. In Extra: https://extra.globo.com/casos-de-policia/terreiro-de-umbanda-incendiado-em-nova-iguacu-24629189.html.  Publicado em 8/9/2020. Acessado em 27/1/2021).

 

Talvez o caso aqui mencionado do incêndio e saque do terreiro no Cabo de Santo Agostinho não tenha sido motivado por intolerância religiosa, como acreditava na ocasião daquela reportagem o pai de santo Douglas Hanubis. Contudo, de um modo geral, é ela, a intolerância religiosa, que fundamentalmente está no cerne de tais ataques. E o que dizer quando líderes de outras denominações religiosas promovem, eles próprios, entre os seus rebanhos, uma doutrina de demonização das religiões de matriz africana, atacando-as frequentemente?

Num livro cujo título por si só já é uma senha do nível de ataque que ele contém contra as religiões de matriz africana – e também contra outras -, Edir Macedo, o líder da Igreja Universal do Reino de Deus não poupa palavras depreciativas e ofensivas a todas elas. Ele diz, por exemplo, que “orixás, caboclos e guias” não são deuses e sim “espíritos malignos sem corpos, ansiando por acharem um meio para se expressarem neste mundo, não podendo fazê-lo antes de possuírem alguém” (Edir Macedo. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? 6ª ed. São Paulo: Unipro Editora, 2019, p. 19). Ainda segundo Edir Macedo, “Para evitar atritos com a Igreja Católica, os escravos, inspirados por entidades demoníacas, passaram a relacionar os nomes dos seus deuses – demônios, para ficar mais claro – com os santos do catolicismo romano” (Edir Macedo. Op. cit.,p. 55).

 

E sobre reconhecimento e preservação de memória

 

O aparato discursivo e narrativo ao qual lancei mão na primeira parte deste artigo foi o meio mais apropriado, segundo a minha avaliação, que eu encontrei para contextualizar a importância, o significado enquanto espaço de resistência e de preservação de memória e o grande simbolismo que é a existência dessa coisa espantosa e admirável que é o Museu Afro-brasileiro localizado na cidade de Laranjeiras, em Sergipe, que eu fui conhecer na manhã do dia 13 de dezembro de 2017.









Quem fez a serventia da casa, como monitora do equipamento museal, foi uma graça de menina chamada Iandra Marina. Ocupando um belo sobrado no sítio histórico laranjeirense onde nasceu o magistrado Achiles Ribeiro, o Museu Afro-brasileiro não é só um espécie de guardião da história da cultura de povos africanos que serviram de mão de obra na trajetória socioeconômica de Laranjeiras; é, também, cenário e espaço de celebração de toda uma cosmogonia, de todo um modo de ser e de existir e testemunho das agruras sofridas pelas tantas levas de negros que chegaram àquela região, ainda no Período Colonial, para trabalharem como escravos principalmente em engenhos de cana-de-açúcar que existiam às dezenas na imensidão daquelas terras que, no período compreendido entre 1840 e 1863, transformou-se num verdadeiro empório industrial de Sergipe: eram 73 engenhos que produziam açúcar, fábricas de aguardente e charutos movimentando um concorrido porto, no Rio Cotinguiba, que recebia embarcações de várias procedências. Laranjeiras – destaque-se isso -, além do Museu Afro-brasileiro, abriga o Museu Comunitário Filhos de Obá, que fica num dos terreiros mais antigos do país, fundado ainda no século XIX.

O modesto catálogo que eu possuo desse museu informa que ele foi criado em janeiro de 1976 e oficializado em fevereiro do mesmo ano pelo decreto nº 3339, tendo sido o primeiro do país com tal natureza e denominação. O catálogo, que contém fotografias de autoria de Marcel Nauer, foi lançado em 1990 sob o patrocínio da Fundação Banco do Brasil, dentro das comemorações do IV Centenário da Conquista de Sergipe e da Fundação da Cidade de São Cristóvão, que foi a primeira capital sergipana.














Fui percorrendo as dependências do Museu Afro-brasileiro de Laranjeiras apreciando o seu acervo admirável composto por fotografias, instrumentos de castigos e torturas, móveis, vestimentas, objetos de culto  e do viver cotidiano de décadas atrás e representações de orixás em tamanho natural e sentindo, como cidadão e como historiador, uma satisfação enorme por encontrar em pleno funcionamento, em uma pequena cidade, um espaço museal tão importante que carrega em seu bojo um mais do que expressivo sentido de preservação da memória ancestral de povos trazidos da África em condições subumanas e que aqui, ainda que a ferro e fogo, conseguiram manter vivos os rituais, as crenças e diversos outros aspectos de suas existências.













O Museu Afro-brasileiro de Laranjeiras é um equipamento cultural de grande valia para que continuemos defendendo o entendimento de que a história do passado escravocrata deste país não deve jamais ser esquecida e que o convívio com a diversidade religiosa e/ou cosmogônica é um indicativo de respeito pela alteridade e de comunhão de mundos.

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