4 de outubro de 2025

O Recife teatralizado no meio da rua: memórias e dramas urbanos, cena cultural e outros desafios existenciais de uma cidade ameaçada pelas mudanças climáticas

 Por Sierra


Fotos: Arquivo do Autor
O Recife que se projeta e que se quer para o futuro deve ser uma cidade que abrigue e acolha dignamente todos os seus habitantes


Na manhã do último dia 27 de setembro - Dia dos Santos Cosme e Damião -, quando eu cheguei à Rua da Roda, conhecida como Praça do Sebo, no bairro de Santo Antônio, área central do Recife, para prestigiar um sarau organizado pelo multiartista Valmir Jordão, vi umas pessoas arrumando uns equipamentos eletrônicos e perguntei a uma moça para que eram aquelas coisas; e ela me disse que, logo mais, à noite, ali, naquele mesmo lugar, só que no perímetro do logradouro ocupado por bares - existem grades e portões que delimitam o espaço ocupado pelos boxes dos sebistas do que é destinado aos bares -, iria ocorrer a apresentação de uma peça teatral, a partir das 19h.










Não estava nos meus planos ficar flanando pela capital pernambucana até o anoitecer. Ocorreu que, depois de almoçar e de ir ver a exposição "Roxinha Lisboa - Meu Brasil interior", na Caixa Cultural, não fui para Olinda, como planejara, e, quando anoiteceu, eu deixei o Cais da Alândega, onde me encontrava, e retornei à Rua da Roda para prestigiar mais uma iniciativa artística e cultural imbuída do desejo que muitos que o frequentam têm de manter o centro do Recife vivo e pulsante.

Chegando lá eu encontrei parte da equipe de produção fazendo os últimos ajustes no som e na luz. E, trocando figurinhas com um e outro, foi que eu me inteirei, de fato, sobre a peça. E, às 19h22, o espetáculo começou tomando o espaço como cenário a partir do início da Rua da Roda, ou seja, no encontro com a Avenida Dantas Barreto. E que espetáculo!










Tomando como mote as consequências que, segundo parte da comunidade científica, as transformações climáticas trarão para o Recife - de acordo com as previsões, a capital pernambucana é uma das cidades que deverão sumir do mapa em virtude da elevação do nível dos oceanos -, o grupo recifense Bote de Teatro, em parceria com a mineira Cia. Toda Deseo, montou o espetáculo "Ilha: dois", onde vários aspectos e mazelas existenciais do Recife são contundentemente expostos em praça pública numa combinação bem urdida e azeitada de texto, luz, som e outros elementos que dão um dinamismo e uma potência deveras explosiva à apresentação.









No princípio era o verbo. E "Ilha:dois" começa com uma fumaça que vai se espalhando  e envolvendo os atores em cena enquanto, como se estivéssemos a ouvir um programa de rádio, duas mulheres e um homem nos contam de suas lembranças de dois episódios da história recente do Recife - a grande cheia de 1975 e o boato do estouro da barragem de Tapacurá - que logo de cara nos dão um testemunho evidente e inegável da vulnerabilidade do território recifense às anunciadas consequências das mudanças climáticas: ora, se uma chuva intensa deixou grande parte da cidade debaixo d'água, em 1975, o que é que nós podemos esperar que aconteça, caso o aumento do nível dos oceanos ocorra?









Essa é a questão fundamental e basilar de "Ilha: dois". Mas o espetáculo possui outras camadas, para usar uma expressão tão em voga hoje em dia. E quais são essas camadas? Todas elas dizem respeito ao universo urbano recifense: pertencimento ao espaço citadino; lógica de ocupação dos espaços; a gentrificação excludente - e por falar em gentrificação, o caso do menino Miguel Otávio, filho de uma empregada doméstica que, em junho de 2020, caiu de um prédio de alto padrão, localizado não muito longe da Rua da Roda, foi recordado -; prédios abandonados e/ou malcuidados, como o do INSS, logo ali defronte à Rua da Roda, na Avenida Dantas Barreto, uma via muito criticada, como também salientou a peça, por ser pouco compensatória e de baixa serventia, digamos assim, quando se considera que, para abri-la, foram postos abaixo centenas de edificações dos períodos colonial e imperial; a reocupação do centro - a peça deu uma cutucada no diretor Kleber Mendonça Filho que repetidamente diz que ama o centro do Recife e, no entanto, mora na Zona Sul -; o drama cotidiano de quem não tem onde morar; a potente cena musical da cidade expressa, em alto e bom som, pelos vários cantores e cantoras de brega; os anônimos, como os donos daqueles bares da Rua da Roda e dos sebistas que ali atuam, que permanecem, à maneira deles e com o trabalho deles, mantendo o centro do Recife vivo; etc.







Ao caminhar para o seu fim "Ilha: dois" que, com seu grande elenco formado pelos atores Cardo Ferraz, Daniel Barros, Inês Maia e Pedro Toscano, constitui um espetáculo pirotécnico, sonoro e visceralmente incisivo e reflexivo sobre o estado em que se encontra o Recife e a respeito do que pode vir a acontecer nessa urbe, caso nada seja feito com relação ao que a comunidade científica recomenda e preconiza para que não somente os recifenses, os pernambucanos, os nordestinos e os brasileiros e, sim, toda a humanidade, não seja penalizada com as alterações no nível dos oceanos, e caso não se busque pelo menos tentar conseguir mitigar e diminuir os impactos negativos que as mudanças climáticas acarretarão, nos leva e nos conduz para a água; esse elemento símbolo da vida nos chega em forma de chuva - ou seria à maneira de um banho catártico? -, chuva essa que, por ora, pelo menos ali, não é provocadora de enchentes e inundações e nem causadora de mortes, e, sim, que chega para lavar os nossos olhos e a nossa consciência suja e cheia de incompreensões no que diz respeito ao nosso convívio com a natureza e com aquilo que construímos e também destruímos, num exercício perene de acúmulos de ruínas e de sepultamento de memórias e histórias, individuais e coletivas, porque uma cidade é de todos e de cada um que nela habita e até daqueles que apenas a frequentam seja para o que for.









Parafraseando, ou melhor, recorrendo a imagens do mestre Chico Buarque, acreditemos que, diante do temor de que o Recife um dia será alguma cidade submersa, não sejamos dela futuros amantes que, talvez, serão encontrados por escafandristas curiosos e tenazes: amemos este Recife de hoje, de corpo vivamente presente, cuidando dele diuturnamente e pensando no bem comum, porque a cidade que se projeta e que se quer para o futuro deve ser uma cidade que abrigue e acolha dignamente todos os seus habitantes.





Encenada no coração da Ilha de Santo Antônio, "Ilha: dois" nos disse o tempo todo que o Recife não é uno e, sim, plural em aspectos positivos e negativos como, aliás, é toda e qualquer cidade.

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