27 de fevereiro de 2016

A arte como fundamento da vida: entrevista com Mirabeau Menezes

Por Clênio Sierra de Alcântara


  
Foto: do autor        Mirabeau Menezes ao lado de sua obra "Palhaço de Pierrô"



O artista plástico Mirabeau Menezes, paraibano da cidade de João Pessoa, onde nasceu em 1964, é um sujeito hiperativo e irrequieto. Está sempre pensando na elaboração de uma obra, na montagem de uma exposição e no fundamento máximo de sua produção artística. No último dia 12 ele lançou o livro Mirabeau – Maria das Louças no Centro de Turismo e Lazer Sesc Cabo Branco, na capital da Paraíba, no vernissage de uma mostra retrospectiva de sua carreira que ficará em cartaz até 12 de março.

Estando eu passando alguns dias em João Pessoa, marquei uma entrevista com Mirabeau; o nosso encontro ocorreu na manhã do dia 17 de fevereiro na Galeria de Arte Archidy Picado, onde estava sendo montada a exposição “Erieta e Amigos” com o propósito de arrecadar fundos para custear o tratamento de saúde da artista Erieta Ewald – as obras ficarão expostas de 19 de fevereiro a 13 de março – e para a qual ele doou “Palhaço de Pierrô”, uma acrílica sobre tela pintada no ano passado.



Mirabeau a partir de que momento o fazer artístico entrou na sua vida e quais são as suas influências?

A minha pintura é uma pintura eclética. Ela trabalha entre a margência dos abstratos e dos figurativos. E por isso é uma pintura que tem essa base, desde os anos 80, quando iniciei minha carreira.

Você acredita que as artes, de um modo geral, precisam ter um engajamento político e propor uma discussão dos problemas sociais ou simplesmente vale o conceito da “arte pela arte”?

A arte é um conceito que envolve toda a sociedade. Quando se faz arte você está passando pelos momentos políticos, sociais e econômicos do país. A arte reflete isso pelo fato de que ela marca o tempo, a história de um homem, de um escritor, de um cineasta, de um pesquisador. Isso aí tudo é arte, né? A arte é arte instalação, é Bienal, é tudo que envolve todo sentimento, a alma do ser humano. A arte tem que ter uma parte social, né? Candido Portinari pintou uma série intitulada “Os momentos sociais do Brasil”. Você sabe que Candido Portinari é um pintor que tem quadro até na Unesco.

A sua pintura figurativa é muito marcada por elementos de cunho religioso e se nota também um gosto de retratar traços da vida cotidiana e mesmo a natureza morta. Existe um tema que preponderantemente norteia a concepção de suas obras?

Eu acho que a minha arte, os meus traços são muito originais; são parte de uma pesquisa que eu faço. Já a cor tem um embasamento muito mais forte; a cor é o elemento mais forte da minha pintura, porque a textura, os elementos que eu constituo dentro da minha pintura são parte de um conteúdo que busca retratar não só a vivência na região Nordeste, mas também mantê-la antenada com as tendências maiores da arte do mundo.

Em que medida o abstrato, melhor dizendo, como se processa a escolha – se é que existe uma escolha – na hora de elaborar uma nova obra? Você diz: “Hoje eu quero algo abstrato e não figurativo”?

Não, eu trabalho dentro de uma concepção que, quando eu vou pesquisar ou trabalhar, eu trabalho as duas peças, três ou quatro peças, que se chamam telas, em tamanhos diferentes, tanto na abstração quanto na figuração, de uma forma eclética; não tem esse porém de ficar trabalhando só numa ou noutra. Não, eu trabalho nas duas.

A escultura é outra vertente da arte à qual você se entrega de maneira igualmente intensa. Você atravessa fases no sentido de permanecer um tempo só esculpindo ou então só pintando?

Não, eu acho que o artista é livre; o artista não pode ficar situado em um elemento. O Pablo Picasso, que é o maior exemplo, para mim, da Era Moderna, do século XX, ele trabalhava com escultura, com cerâmica, com pintura figurativa e com pintura abstrata. Algumas coisas de Picasso são altamente abstracionistas.

Diga-me: em algum momento a vida provinciana, o estar fixado numa capital nordestina, fora do eixo Rio-São Paulo, onde se diz que “as coisas realmente acontecem” foi motivo de inquietação ou frustração? Você em algum período desejou estar noutro lugar do país para difundir a sua arte ou acredita que em João Pessoa alcançou tudo o que desejou alcançar como artista?

Eu acho que já viajei, já fiz exposição em parte da Europa, né? Fui a Portugal e Espanha. Tenho quadros também na exposição Brasil-Londres, que foram artistas brasileiros pra Londres. Eu tenho um currículo vasto, né? Mas eu acho que o Rio e São Paulo foi na década de 80. Agora eu tô propondo pra 2016 fazer uma exposição numa galeria em São Paulo.

São mais de trinta anos dedicados ao labor artístico; inúmeras exposições no Brasil e no exterior. Como se define o artista e o homem Mirabeau Menezes e como ele vê o conjunto de sua obra?

Minha obra é uma obra vasta, né? Eu acho que a maturidade faz isso. O meu público tem colecionador de obra de arte minha. Eu acho que isso aí é o fruto de muitos anos de trabalho. Eu acho que quem inicia hoje nunca pode desistir; os obstáculos vão existir sempre para qualquer profissional. Eu acho que você tem que superar isso e transcendê-lo.

Mirabeau, para terminar, me diga: a arte redime o homem?

Não, a arte é aquilo tudo que o homem expressa através da alma, do espírito. Ele precisa estar bem consigo mesmo; às vezes inquieto como Van Gogh, louco como Velásquez e doido como Francis Bacon (rindo).

19 de fevereiro de 2016

No terreiro daquela casa a ciranda não dava para quem queria


Por Clênio Sierra de Alcântara



Fotos: do autor       Antônio Preto é um símbolo de resistência da cultura popular pernambucana que conseguiu passar para alguns dos seus filhos o amor pelas tradições do seu povo

No dia 20 de dezembro de 2015 aconteceu na Praça do Carmo, em Olinda, um evento em homenagem a Selma do Coco que contou com a participação de vários artistas: Dona Glorinha, Lia de Itamaracá, Aurinha do Coco, Coco de Roda Canavial e o Coco de Selma, que é basicamente formado pelas netas daquela saudosa representante da cultura popular que faleceu em maio do ano passado. Percorrendo os bastidores, me pus a conversar com Valdir José Galdino, conhecido como Mestre Biô, que, junto com o irmão Valmir, conduz o Coco de Roda Canavial, que é de lá de Nazaré da Mata. No meio do nosso papo, ele me falou que seu pai fora mestre cirandeiro e se encontrava ali. Como já faz tempo que eu aprendi que antiguidade é posto, deixei literalmente o Mestre Biô de lado e me pus a entrevistar o patriarca da família.

Nascido em 1º de março de 1955, em Nazaré da Mata, Antônio Severino João primeiro me contou por que é chamado de Antônio Preto: “Na minha rua tinha outro Antônio e o povo trocava os nomes, confundia eu e ele. Então, como ele era mais claro do que eu, passou a ser chamado de Antônio Alvo e eu de Antônio Preto”. Muito atento e respondendo pacientemente às minhas perguntas, Antônio Preto descreveu em quadros de evocação de seu passado o envolvimento que durante anos manteve com o folguedo ciranda. Segundo sua narrativa, foi seu pai José Severino João que o chamou para formarem uma ciranda na localidade em que moravam. E assim foi que nasceu a Ciranda Carimbó, um nome para mim curioso, porque carimbo é uma dança típica do Pará. A propósito indaguei-o se seu pai gostava de carimbó ou do Pinduca, o mais conhecido difusor desse folguedo, e ele não soube responder. O fato é que a ciranda foi formada e se apresentava no terreiro de sua casa ou nas imediações; e sempre atraía muita gente. Por essa época Antônio ainda era adolescente, tendo somente dezesseis anos de idade. Recordou que Antônio Baracho, o grande e famoso mestre cirandeiro que também nasceu em Nazaré, fora antes mestre de maracatu de baque solto: “Eu cheguei a ir pra sambada de maracatu dele na época. Ele começou a cantar ciranda quando saiu de lá. Baracho foi um cirandeiro bom. Foi ele quem botou a ciranda pra todo mundo ver”. E Lia, o senhor conhecia? “Desde que eu comecei na ciranda eu ouvia falar de Lia. Eu via ela na televisão”. Ele também se lembrou que outros cirandeiros, como João Limoeiro e Zé Galdino se apresentavam na cidade: “Eu acho que era a Prefeitura que chamava eles. Que eu saiba, ela sempre pagava a eles, nunca deixou de pagar, não”.


Reunião de parte do clã. Da esquerda para a direita: Valmir, Valdir [Mestre Biô], Valdenise e o patriarca Antônio Preto



A lida na lavoura da cana-de-açúcar sempre foi uma realidade quase que inescapável na vida de Antônio Preto; seu pai era canavieiro e ele logo se viu também ligado a essa rotina. E trabalhava o ano inteiro e não só no período de corte da cana, capinando, plantando e fazendo de tudo nos imensos canaviais da Usina São José [não seria Usina Matary?]. Ele recorda: “A vida era muito difícil. Meu pai cortava cana; e eu comecei aos dezesseis anos. Construí minha casa com dinheiro da cana. Eu ia trabalhar e minha mulher, Maria José Galdino, ia pegar areia no Rio Pegi” [ou Pagi?]. Durante quatro anos, levado pelo filho José Carlos – ele teve cinco rebentos com Maria José, todos com os nomes iniciados com a letra V de vitória: Valdir, Valdemir, Valdenise, Valdênio e Valdécio, criados no meio dos folguedos; e assumiu como seus José Carlos e Antônio Carlos, que sua mulher já tinha antes de se casar com ele -, Antônio trabalhou como servente de pedreiro em Candeias, Jaboatão dos Guararapes; mas quando a firma faliu, ele voltou a labutar no canavial.






Antônio Preto, como era a sua ciranda? “Antigamente as cirandeira ajudava a gente. A ciranda era cerrando [disse isso fazendo movimentos com os braços]. Era mais bonita. A ciranda mudou muito. Essas cirandas de hoje são muito atrapalhada. Eu nem sei cantar. A dança de agora é tudo pulando”. Eu pedi e ele cantou uma das cirandas do seu tempo depois de dizer que “A ciranda a gente mesmo tirava”. (Antes de eu apresentar a ciranda do Antônio quero esclarecer para os não iniciados que ciranda nomeia tanto a dança como a cantiga; e que além dos mestres cirandeiros que as conduzem, igualmente podem ser chamados de cirandeiros, as pessoas que brincam ciranda). Eis os versos do Antônio Preto: “Não há quem possa subir e descer/ a ladeira do limão./ Eu peço às minhas cirandeira/ que pisem devagar no chão”.

Embora bastante prestigiada a Ciranda Carimbó só existiu durante dez anos; e durante esse tempo, além de Nazaré da Mata, foi apresentada em cidades como Aliança e Condado. Antônio Preto contou que a ciranda teve fim porque ele passou a ser brincante de maracatus de baque solto, tendo passado por vários ao longo de vinte anos – não se pode esquecer que Nazaré da Mata é a “terra dos maracatus”. Antônio deixou de ser brincante - “Eu tô velho, não aguento mais isso" ele me confidenciou com sua fala mansa – e atualmente é diretor do Maracatu Águia de Ouro. E como o senhor vê o panorama da cultura popular lá em sua cidade? “Eu acho que ela tá bem representada em Nazaré. Você precisa ir lá no Carnaval. Antigamente o maracatu andava a pé para chegar nos lugar onde ia fazer apresentação. Hoje em dia tem carro, tem ônibus, tem muito apoio”.








Depois que me concedeu a entrevista, Antônio Preto se pôs a caminhar entre a multidão que fora prestigiar a homenagem a Dona Selma, anunciando o dvd do coco dos seus filhos que estava sendo vendido a R$ 10,00. Com seu jeito simples e sua encantadora espontaneidade, Antônio Preto revela no brilho dos seus olhos o orgulho que ele sente de ver a terceira geração de sua família envolvida com as tramas da cultura popular que são tecidas com fios de muitos saberes, cores, coragem, determinação, alegria, devoção e, sobretudo, muita resistência.


Eu ao lado de Antônio Preto, mais um mestre da cultura popular que tive o privilégio de conhecer e compartilhar de seus saberes e vivências



(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], nº 185, abril de 2016, Opinião, p. 2.)

11 de fevereiro de 2016

A propósito do tapa-sexo e das estrelinhas coladas em mamilos

Por Clênio Sierra de Alcântara




Foto: Gisele Alquas   Todos nós sabemos do que a misoginia é capaz, mas não nos mobilizamos a contento a fim de banir esse grande mal que permeia o convívio social



Parece mesmo que nunca haverá de existir um remédio que consiga combater eficazmente e varrer da face da Terra a peste da misoginia. Leis não surtem o efeito esperado, campanhas de esclarecimento se mostram contraproducentes e discursos inflamados das feministas tão somente evidenciam o óbvio ululante: em que pese algum avanço, às mulheres, os homens sempre cuidam de destinar toda a vileza e brutalidade de que são capazes. Daí por que os estupros, os assassinatos ditos passionais, a proibição da prática do aborto, os espancamentos, o impedimento da obtenção de instrução escolar e a submissão quase animalesca. Por que será que não nos conformamos com o fato de que nunca seremos realmente melhores do que elas? Por que não aceitamos a verdade incontornável de que são a elas que devemos a nossa existência?

De dentro da minha casa desde muito cedo eu comecei a ver o desenho irregular das relações mantidas entre os homens e as mulheres e aquilo me assustava. No choro escondido ou exposto eu travava com o meu íntimo a tortura da indignação que não podia se rebelar. Eu via tudo dentro da minha casa e na da minha avó... [estou chorando agora, me desculpem]... Eu via tudo e na consciência da criança que eu era, aquelas cenas me perturbavam sobremaneira, de modo que chorar era a única forma de protesto que eu podia ou tinha coragem de revelar. Talvez seja em virtude disso que eu remorse tanto  quando me ponho a dizer palavras duras a minha mãe quando batemos boca... Nem se tivessem toda a força do mundo as mulheres seriam capazes de escapar das garras da nossa ferocidade, estupidez e tirania.

A coisificação da mulher é a misoginia elevada à enésima potência; é a certificação de que milênios de convívio entre homens e mulheres não conseguiram aplacar a nossa não aceitação de que são elas os seres que mais se parecem conosco; e que foram elas que garantiram a perpetuação de nossa espécie. Afirmamos e reafirmamos que temos mais músculos, que somos mais fortes e inteligentes, que determinamos o que deve ser cumprido, que estabelecemos as regras do jogo e que, até na hora do sexo, dominamos a situação porque ficamos por cima. Sentimos uma necessidade enorme de autoafirmação; e por isso coisificamos as mulheres para que se confirme a nossa superioridade e domínio sobre tudo o que existe; e por isso diuturnamente nos empenhamos com uma tenacidade espantosa para que elas não ousem ameaçar a nossa supremacia absoluta.

No sábado de Zé Pereira – dia 6 de fevereiro - a monstruosidade masculina deu mais um exemplo do quão cruel e insensível ela é. A modelo Ju Isen foi impedida pela diretoria da agremiação Unidos do Peruche, de São Paulo, de protestar a favor do impeachment de Dilma Rousseff usando um tapa-sexo com a imagem estilizada da presidente da República; e, contrariando isso, ela então resolveu, segundo se disse, manifestar-se contra a proibição rasgando a fantasia e mostrando os seios durante o desfile. O resultado disso foi que, sob a alegação de que o regulamento da Liga das Escolas de Samba de São Paulo proíbe qualquer tipo de manifestação política nos desfiles e que a infração, portanto, acarretaria penalidades para a Peruche, a modelo foi empurrada para fora do sambódromo: a imagem em que ela aparece jogada no chão é forte; e é o rebaixamento à condição de animal ao qual se destina maus tratos como se isso fosse algo normal e necessário. Segundo uma reportagem que apurou o caso, foi dito que ao exibir os seios – e ela faz isso costumeiramente em passeatas -, Ju Isen estava ofendendo as crianças e as outras pessoas que assistiam aos desfiles. Vejam a que ponto chegou essa gente com sua hipocrisia e desfaçatez. Quer dizer que seios “cobertos” apenas com estrelinhas nos mamilos pode? Quer dizer que seios nus e pintados também pode? Quer dizer que a Mulata Globeleza inteiramente nua pode e não ofende a integridade, os valores e os bons costumes da bendita família tradicional brasileira?



Foto: Jales Valquer    A modelo Ju Isen jogada para fora do sambódromo é uma das imagens mais marcantes do  Carnaval deste ano. Enquanto umas empunhavam "metralhadoras" que não as defendiam de nada, outras sofriam agressões de todo tipo como o beijo forçado


Por mais feminista que eu possa ser não consigo compactuar com essa estratégia – será que é uma estratégia? - à qual tantas mulheres recorrem ao ser cúmplices de seus algozes. Por que, podendo – digo podendo porque, bem sabemos, sob regimes teocráticos muçulmanos as mulheres não têm gosto, vontade ou qualquer outra coisa: elas existem apenas como algo que pode garantir uma satisfação sexual e a geração de um outro ser e só – se negar a não se despirem em desfiles carnavalescos, em programas de TV, em revistas, em filmes e etc., elas se põem justamente a querer tomar parte nisso? Por que as mulheres consomem produtos culturais que apelam para a vulgaridade mais abjeta e que tudo fazem para denegrir a imagem delas?
A banalidade das violências que a todo tempo se praticam contra as mulheres é muito, muitíssimo mais do que uma distinção entre o que é ser masculino e o que é ser feminino; é muito mais do que a confirmação do poder superior dos homens; é muito mais do que a aplicação de todo e qualquer preceito religioso; é muito mais, enfim, do que uma suposta ordem natural das coisas: é o domínio da infame covardia do mundo masculino a destroçar qualquer sentido de humanidade e racionalidade que nos é atribuído.

(Artigo pulicado também in O Monitor [Garanhuns], nº 183, fevereiro de 2016, Opinião, p. 2).

3 de fevereiro de 2016

E quem há de abrir mão da alegria?

Por Clênio Sierra de Alcântara




O Carnaval deveria acontecer pelo menos três vezes por ano para que a gente desopilasse os atropelos do dia a dia




Não tenho postura de folião, vamos dizer, porreta, do tipo que se prepara para encarar as prévias todas, os bailes, os blocos e tal, mas eu adoro o Carnaval. Adoro ver o Recife e Olinda serem enfeitados para o reinado de Momo. E as ruas tomadas de gente. E as crianças aprendendo a vivenciar essa festa.  E as pessoas fantasiadas esbanjando irreverência e descontração. E os blocos líricos evocando tempos idos em canções cheias de saudade. E os passistas com seus fôlegos de atletas. E as senhorinhas muito maquiadas e dispostas a encarar a jornada. E os mestres dos clubes e troças, dos caboclinhos, maracatus e escolas de samba cuidando para que tudo saia nos trinques e os aplausos venham aos magotes.

Quando eu saio para brincar o Carnaval carrego comigo a certeza de que vou dar de cara com a ousadia, com a greia, com o deboche, com o “não tô nem aí pra tu”. E antes mesmo de me danar na folia, eu já terei me divertido à beça, rindo com as presepadas com as quais me deparo pelo caminho. Penso que é no divertimento que se pode verdadeiramente encontrar a essência do que somos: desvencilhados das amarras e das tantas exigências do dia a dia, que nos fazem de seres quase autômatos, encontramos no lúdico o momento de extravasarmos tudo o que nos aporrinha e oprime e limita e aborrece.

Agora a mim me chegam imagens e lembranças de carnavais do meu tempo de criança em Abreu e Lima cidade onde nasci. Um tempo no qual se jogava talco na cabeça das pessoas; meninos formavam grupinhos batendo latas e, improvisando uma fantasia de La Ursa, iam às portas das casas cantando: “A La Ursa quer dinheiro, quem não dá é pirangueiro”. Um grande barato. Era ainda o tempo no qual se faziam as chamadas “lanças” ou “bombas d’água” com canos de PVC, cabos de vassoura e solas de sandálias para puxar água – o mecanismo tinha o mesmo fundamento de sucção de uma seringa – e dar banho em quem quer que fosse que estivesse passando na rua, folião ou não. Havia também aqueles que maceravam urucum para pintarem seus rostos e, sem avisarem, os de quem lhes dava na telha. Era um Carnaval de suja-suja e mela-mela. E sempre havia os que não entravam no espírito da brincadeira e ficavam possessos.  Mas de nada adiantavam demonstrações de insatisfação, porque a toada era essa mesma.

Antes que eu chegasse à fase adulta, por vários anos o meu Carnaval de adolescente se resumia a ir prestigiar os ensaios do Grêmio Recreativo Escola de Samba Império do Bento, cuja sede ficava na Rua São Gonçalo, onde eu morava, e que era comandado pelo casal Bentinho e Márcia, gente por mim muito querida. Corríamos todos: eu, Cleiton, Davi e outros para lá tão logo os instrumentos começavam a marcação do ritmo envolvente. Eta coisa boa danada. Nunca vou esquecer as primícias e os jogos de sedução e as tantas juras mentirosas que eu vivenciei ali: os homens não valemos nada.

Está quase na hora de botar o bloco do eu sozinho na rua. Seja do jeito que for eu estou sempre disposto a correr atrás da alegria.

 Alegria, alegria, oba!!