1 de setembro de 2018

Meu amigoTom Jaime ou Uma nota em tom maior de admiração, carinho e saudade


Por Clênio Sierra de Alcântara

Fotos: Arquivo do Autor
Tom Jaime num evento com alunos da Escola Estadual Presidente Humberto Castello Branco, do bairro de Tejipió, no Recife, em 2016


Uma das pessoas mais generosas e gentis que eu conheci, o senhor Antônio Francisco dos Santos, conhecido no cenário musical pernambucano como Tom Jaime – e mesmo fora dele, porque o apelido era pegado a ele desde a adolescência, como me contou, porque andava muito com um amigo chamado Jaime: “A gente estava junto e o pessoal dizia: ‘Lá vem Antônio e Jaime’. Aí ficou o apelido Tom Jaime até hoje” -, era um saxofonista de primeira qualidade. E simples, sabe? E bonacheirão como um carinhoso e acolhedor avô.

Conheci Tom Jaime quando, há cinco anos, me aproximei da cirandeira Lia de Itamaracá e, junto com o grupo dela, na posição de um curioso que queria mergulhar no universo da cultura popular, em geral, e no da ciranda, em particular, com o fito de escrever uma biografia dela, comecei a viajar na companhia de todos eles. E foi numa dessas viagens – estávamos a caminho de Garanhuns, no dia 28 de julho de 2016 – que Tom Jaime me contou parte de sua vida.

Nascido na cidade de Itabaiana, na Paraíba, em 27 de setembro de 1944 – Dia dos Santos Cosme e Damião -, na famosa Itabaiana onde se realiza uma das feiras livres mais tradicionais do Nordeste e terra que também deu ao mundo o igualmente talentoso Severino Dias de Oliveira, que todos nós conhecemos como Sivuca, Antônio Francisco dos Santos, o Tom Jaime, se mudou para o Recife com cinco anos de idade. Ainda adolescente – precisamente aos quinze anos – começou a trabalhar na fábrica de cerâmica da família Brennand – “De carteira assinada, viu, Sierra?!”, ele ressaltou -, localizada no bairro da Várzea, na capital pernambucana, onde ele fixara morada. Ele ficaria ligado à fábrica durante trinta e cinco anos.

Foi ainda aos quinze anos que ele tomou parte em aulas de música que começaram a ser ministradas na Escola São João da Várzea. As aulas ocorriam nas quintas-feiras à noite – ele saía do trabalho às 16:00 h. Foi dessa época o convívio com o tal do Jaime, que estudava trompete. Aluno aplicado, o então jovem itabaianense estudou clarinete durante três anos: “Aí, Sierra, o rapaz do saxofone foi pro Exército, em Natal, e eu peguei o saxofone. Comecei no saxofone de 63 pra cá”. Já senhor do seu instrumento, aos vinte e dois anos Tom Jaime passou a integrar a Orquestra Universal – também da família Brennand; foi para constituí-la que as aulas de música tiveram início naquela escola -, saindo para tocar à noite. A Universal durou até 1978.

Tendo se casado em 1971, Tom Jaime se mudou para o bairro Cosme e Damião, na cidade de Camaragibe, que faz fronteira com o Recife.

Conseguindo conciliar o trabalho na fábrica com as atividades musicais, Tom Jaime me disse que tocou durante muito tempo na Orquestra Alvorada. Contou-me também que vivenciou o período em que a Rua do Imperador, no bairro de Santo Antônio, área central do Recife, na década de 70, era um lugar de encontro de músicos. E ele estava por lá quando um saxofonista conhecido seu o apresentou, um dia antes do Carnaval, ao então presidente do Bloco da Saudade, cuja existência principiou naquele decênio – esse bloco lírico, que existe até hoje como um dos mais tradicionais do Recife, começou a ganhar as ruas em 1974, ano em que eu nasci –, dizendo: “Fique com ele porque eu não tenho tempo”. Dito isso, depois dessa rápida passagem de bastão, digo, de saxofone, Tom Jaime recebeu as partituras de quatro músicas para começar a tocá-las já no dia seguinte. E, uma vez tendo ingressado na agremiação, do Bloco da Saudade ele não mais sairia – ele foi, inclusive, homenageado no Carnaval deste ano como o mais antigo componente de sua orquestra.

Chegando à concentração da Marcha das Mulheres, no dia 8 de março deste ano, em São Sebastião de Lagoa de Roça, Paraíba. Da esquerda para a direita: Marcos Paulo, Telma, Lia de Itamaracá e Tom Jaime

Quando Tom Jaime se aposentou do trabalho na fábrica, ele pôde se dedicar de corpo, alma e talento à musica. Em 1996 integrou um grande grupo de artistas e músicos – e políticos e pessoas públicas, como a senhora Madalena Arraes, esposa de Miguel Arraes, então governador de Pernambuco -, que foi à cidade de Lille, no norte da França, apresentar frevo, samba, maracatu e ciranda ao público europeu.

Tendo parado para ir almoçar no Pátio de São Pedro, depois de ter feito mais um bico como músico, tocando na loja Cattan da Rua Duque de Caxias – caro leitor um pequeno adendo, por favor: minha mãe trabalhou nessa loja de roupas, que fica a poucos metros da Rua do Imperador, e é uma das lembranças mais remotas que eu tenho do tempo em que comecei a “conhecer” a capital -, Tom Jaime foi abordado por Severino Alves, um às do trombone conhecido como Biu Negão, que quis saber se ele tinha interesse em tomar parte no conjunto que acompanhava a cirandeira Lia de Itamaracá. Estava-se no ano 2000. E, tendo aceito o convite, Tom Jaime por vezes tinha de fazer malabarismos com as horas – sobretudo durante o Carnaval – para conseguir se apresentar tanto com Lia como com o Bloco da Saudade. Era uma correria danada. Certa feita eu o vi embarcando na garupa de uma moto que o levaria até o Recife, logo após o término de uma apresentação da cirandeira, ocorrida à tarde na beira-mar de Olinda. Acompanhando Lia, ele viajou muito por este Brasil a fora e até voltou a Europa.

Durante aquela nossa conversa – e conversaríamos bastante ao longo desses anos – eu perguntei a Tom Jaime se a cultura popular era valorizada aqui em Pernambuco. Enfático ele me disse que não. E pontificou: “Veja, por exemplo, o caso do frevo. O frevo só se toca no Carnaval, por isso não tem frevo novo. O único que toca frevo o ano todo é [Maestro] Spok. Mas, onde é que ele toca? Nos Estados Unidos, na Europa...”.


Foto: Facebook do Bloco da Saudade

Desde o final de 2016, Tom Jaime vinha dando sinais de que não estava bem; quadro esse que foi se agravando e ele se viu atravessando mais um ciclo de depressão. “É tão ruim isso, Sierra. Eu tomo remédio, mas não é fácil me livrar disso”, ele me confidenciou num dos nossos encontros. Com o empurrão e o apelo dos outros seus companheiros de palco, ele novamente renovou forças e voltou a tocar seu saxofone, acompanhando Lia e o Bloco da Saudade. Mas a sua aparente recuperação ocultava uma grave doença: ele foi, infelizmente, diagnosticado com um câncer agressivo e já em estado de metástase; e ficou dias internado no Hospital Barão de Lucena, no Recife, onde faleceu na quarta-feira passada.

A última aparição pública do talentoso saxofonista Tom Jaime ocorreu durante a apresentação da cirandeira Lia, ocorrida no dia 29 de junho, Dia de São Pedro, na Ilha de Itamaracá. Quem o via tocar, quem o conhecia de muito perto, percebia que a música se constituía mesmo como parte da essência de sua vida. Sua bondade natural, sua paciência, sua clareza de pensamento e o seu apego ao essencial da existência foram qualidades que eu percebi nele logo nos nossos primeiros encontros e que fizeram com que eu lhe devotasse um enorme carinho e admiração.

Tom Jaime e o seu saxofone eram um verdadeiro convite à celebração plena da vida.

Um comentário:

  1. PARABÉNS,Sierra é isso aí so nos resta as boas lembranças.E uma eterna saudade do meu PAPA.Apelido que eu coloque.E assim o chamava.

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