23 de março de 2019

Como construir uma memória afetiva da cidade

Por Clênio Sierra de Alcântara


Foto: Arquivo do Autor
Pouca gente sabe que esta árvore, que já foi muito frondosa, é uma sobrevivente do bota-abaixo que marcou a paisagem do centro urbano da cidade de Abreu e Lima para as obras de triplicação da BR 101, na década de 1980. Esta árvore faz parte da memória urbana e afetiva das pessoas que, como eu, percorriam os lugares que as obras fizeram desaparecer


I

Revirando os escaninhos – e os escombros – de minha memória eu penso que encontrei a gênese daquilo que, no futuro, se tornaria um dos meus interesses intelectuais e existenciais mais consistentes, que é o que me vincula à história das cidades, notadamente às suas transformações e permanências materialmente constituídas.

Inferi, olhando para o meu passado, que uma experiência de transformação do espaço urbano que eu vivenciei quando ainda era menino, na minha cidade natal, Abreu e Lima, pode sim, ser considerado como o start de tudo o mais que me levaria a me interessar pelas urbs quando de minha passagem pelo ambiente acadêmico.

Menino que gozou de plena – e eu poderia até dizer que de absoluta – liberdade de ir e vir, porque éramos em casa apenas eu e uma mãe que passava o dia trabalhando, o que significava não ter ninguém para me vigiar e pôr rédeas. Junte-se a isso o fato de que, vivendo em casas de aluguel, mudávamos constantemente de endereço – creio que minha mãe nem sempre dispunha do dinheiro da locação; por isso, certa feita, morando no bairro de Timbó, o proprietário do imóvel que ocupávamos cortou o fornecimento de água e de energia para que saíssemos da casa. Tempos difíceis esses, como diria Charles Dickens. Tempos de dificuldades e de humilhações –, e se compreenda o tanto que eu andei pela jovem e acanhada Abreu e Lima, então recentemente emancipada de Paulista, passando de um bairro para outro, sem conseguir fincar raízes em nenhum deles, mas acumulando memória de minha passagem por eles.

Muito embora existisse num território que não estava, por assim dizer, distante da capital, a Abreu e Lima do meu tempo de criança era ela mesma uma cidade-criança, cuja emancipação política ocorrera em 1982, quando eu contava oito anos de idade. De modo que, como cenário urbano propriamente dito, a cidade era diminuta – como, aliás, permanece sendo, ainda que vastas áreas, antes cobertas por vegetação, tenham sido ocupadas por moradias e outros tipos de edificações –, o espaço rural era dominante e bastante próximo da área urbanizada. Os da minha geração conheceram uma Abreu e Lima que possuía um terreno imenso, conhecido como Sítio Bilio, que começava onde hoje vemos a Praça de São José e ia subindo em direção a Caetés Velho.

II

Numa das passagens de “Infância em Berlim”, o filósofo Walter Benjamin sentenciou: “Nunca poderemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade” (Walter Benjamin. “Infância em Berlim”. In Rua de mão única. Obras escolhidas II. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. 5ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995, p. 104-105).

Considerando essa avaliação benjaminiana enquanto volto os olhos e o pensamento reavivando lembranças, eu recomponho fragmentos da cidade que um dia existiu fisicamente e que hoje se encontra fixada em registros fotográficos e na memória de tantos que, como eu, a conheceram em outros tempos. Abreu e Lima não é para mim apenas saudade: é também bússola e ponto de partida.

Caso a cidade que conhecemos na infância tivesse sido conservada intacta até os dias de hoje, talvez, ainda assim, não a reconhecêssemos inteira e completa, porque nós, em vez dela, nos transformamos durante o correr do tempo; e essa transformação incutiu em cada um de nós uma maneira muito própria de enxergar os espaços que a compunham, de modo que o que antes era ou parecia ser familiar ganha contornos de coisa nova; ou então é desprezada como se não mais fizesse parte do que agora é a cidade conhecida e reconstruída dentro de nós.

III

A novidade foi chegando pelo disse-me-disse: como a cidade era prejudicada pelo intenso tráfego de veículos de todo tipo que circulavam pela BR 101 que cortava o espaço urbano de ponta a ponta e passando justamente por sua área central, ela iria ganhar mais quatro faixas de rodovia. Não demorou muito e começaram as desapropriações e demolições. Ruas, becos, casas, árvores, estabelecimentos comerciais, tudo foi sendo posto abaixo e desaparecendo para sempre da nossa experiência cotidiana. Era o progresso que começava a chegar a Abreu e Lima junto com aquelas máquinas, diziam muitos. O bota-abaixo logo fez abrir enormes clareiras. Parte da cidade estava sendo redesenhada e reocupada bem diante dos meus olhos de menino. Tudo foi sendo desocupado e demolido para dar lugar a quatro faixas de autopistas. Sumiram da paisagem o Colégio Neusa Rodrigues, a Delegacia de Polícia e dezenas e dezenas de casas e lojas, apagando um pedaço da memória da cidade.

IV

Como que passando o objeto do seu estudo a limpo, Lewis Mumford nos conduz por entre ruas, praças e outros traçados citadinos nos persuadindo a acreditar que, apesar de certas deficiências, a cidade continua sendo o espaço de redenção da humanidade. No derradeiro parágrafo do seu monumental estudo A cidade na história ele nos diz assim:

A missão final da cidade é incentivar a participação consciente do homem no processo cósmico e no processo histórico. Graças a sua estrutura complexa e durável, a cidade aumenta enormemente a capacidade de interpretar esses processos e tomar neles uma parte ativa e formadora, de tal modo que cada fase do drama que desempenhe vem a ter, no mais elevado grau possível, a iluminação da consciência, a marca da finalidade, o colorido do amor. Esse engrandecimento de todas as dimensões da vida, mediante a comunhão emocional, a comunicação racional e o domínio tecnológico, e, acima de tudo, a representação dramática, tem sido na história a suprema função da cidade. E permanece como a principal razão para que a cidade continue existindo (Lewis Mumford. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. Trad. Neil R. Silva. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 621).

V

As máquinas ditavam o ritmo apressado da transformação. Muitos homens trabalhando. O cenário de terra arrasada foi gradativamente dominando a paisagem urbana de Abreu e Lima. Nada impedia o avançar dos tratores e das escavadeiras. Um morro foi parcialmente removido. Lá embaixo, próximo à Rua Capitão José Primo, uma árvore de belas e delicadas flores vermelhas resistiu e/ou foi poupada da fome da mecânica força bruta do maquinário imparável, e permanece viva até hoje assistindo ao vai e vem  dos veículos.

A caminho da escola eu atravessava parte dos canteiros de obras abismado com o fato de que, como se fosse quase que por uma ação de prestidigitador, aqueles homens que pareciam deuses e semideuses incansáveis, conferiam outra feição àquela cidadezinha, modificando cenários inteiros onde milhares de pessoas atuavam diariamente em seus cotidianos comuns.

Toda a área que virara um imenso descampado, de uma ponta a outra do perímetro urbano, no sentido sul e norte, haveria de ser destinada ao tráfego de veículos, como se esse fosse o seu destino desejado. E como se as casas, os estabelecimentos comerciais, as ruas e tudo o mais que os tratores e as escavadeiras puseram fim merecessem mesmo ter suas histórias desmanchadas e apagadas dali.

Outra imagem que eu jamais vou esquecer: no meio do barulho provocado pelas máquinas que abriam passagem para a entidade chamada Progresso, indivíduos entravam no canal que seguia pela Rua Ulisses Pernambucano pegando os camarões de água doce que existiam ali.

VI

Vigora um claro entendimento entre pelo menos parte dos que estudam a história das cidades, que não se pode criar e/ou desenvolver uma memória afetiva com relação às cidades se não existe um convívio com determinados espaços das urbs. A mim me parece ser uma grande ilusão acreditar que indivíduos que nunca viram e/ou caminharam por uma determinada via possam de uma hora para outra ser convocados a apoiar a restauração de um dado edifício antigo, a preservação e conservação de uma praça e a manutenção de um coreto e/ou de um chafariz no Largo Fulano de Tal. Penso que, tanto quanto de familiaridade, é necessário que as pessoas compreendam e saibam por que tal prédio e por que este e aquele cenário precisam ser preservados na sua cidade; porque uma coisa é ter familiaridade com determinado edifício no sentido de quem, por exemplo, passa por ele todos os dias a caminho da escola e/ou do trabalho; e outra, bem diferente, é entender e saber a importância que aquela edificação tem dentro da memória urbana na qual está inserida.

Há quem diga que os nossos centros históricos não atraem muitos turistas e nem mesmo as pessoas das redondezas por estarem mal conservados. Não, para mim o raciocínio é outro: nossas cidades históricas apresentam inúmeros prédios em ruínas e outros tantos seriamente comprometidos e correndo o risco de desaparecer da paisagem porque, de um modo geral, não somos instruídos desde cedo nem a ir a esses lugares e nem a valorizá-los, de modo que impera no seio da sociedade brasileira o triste e lamentável entendimento de que esses espaços só interessam fundamentalmente a estudiosos ou, quando muito, a gente excêntrica e/ou curiosa; daí por que, em grande medida, os centros históricos são desprezados pela maioria da população. E isso diz muito do acúmulo de ruínas que se encontram neles. Ou seja, as cidades históricas brasileiras estão mal conservadas porque elas não são valorizadas e as pessoas em massa não as procuram, e não o contrário.

Em seu clássico A imagem da cidade, o norte-americano Kevin Lynch argumentou que parece haver “uma imagem pública de qualquer cidade que é a sobreposição de muitas imagens individuais”; ou talvez, prosseguiu ele, “exista uma série de imagens públicas, cada qual criada por um número significativo de cidadãos” (Kevin Lynch. A imagem da cidade. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 51). Eu compartilho desse entendimento; e foi bem na esteira desse pensamento que eu escrevi no tópico II desta narrativa a propósito de uma eventual mudança de percepção da cidade que pode acometer cada um de nós.

VII

Faz quase dezoito anos que eu deixei de morar em Abreu e Lima. Mas é nela que eu trabalho. E é por ela que eu tenho de passar ao me deslocar em direção à capital Recife. De maneira que, além de erguida e guardada em lembranças longínquas de minha memória afetiva que, como foi narrado brevemente aqui, diz respeito também à sua memória urbana, ela permanece presente no meu olhar e no meu entendimento, não somente como objeto de recordação, mas também como fato concreto com o qual eu ainda interajo e mantenho vivências.

Há quem olhe para Abreu e Lima nos dias de hoje e compreenda que não houve propriamente um crescimento material da cidade desde que ocorreu aquele bota-abaixo havido na década de 1980, e sim um inchaço populacional que levou à construção de milhares de moradias em áreas antes ocupadas por um tecido vegetal. De algum modo, essas construções enfeiaram um pouco mais o tecido urbano abreulimense. E viceja, entre parte de seus habitantes, uma nítida percepção de que, ao fim e ao cabo, a cidade, na verdade, perdeu moradias, estabelecimentos comerciais, um colégio, paisagens e pontos de referência em favor de faixas de autoestradas que não resolveram o seu problema de tráfego, porque duas antigas faixas de rolamento que a cortam no sentido sul e norte, permaneceram atravancando o seu núcleo central. E, em virtude disso, há anos se especula que uma nova obra rodoviária irá outra vez arrancar mais alguns nacos da já desfigurada Abreu e Lima.

O imperativo da vida sobre rodas e os projetos rodoviários mal concebidos continuam sendo os maiores inimigos da preservação da memória urbana neste país.

VIII

O renomado medievalista francês Jacques Le Goff, falecido há quatro anos, foi certa feita indagado se nas sociedades ocidentais de fins do século passado, das quais se dizia que o desejo de cidade era contrariado pelo desejo de natureza, a cidade perdera definitivamente os seus atrativos. E ele de pronto respondeu:

Não creio. Mas os urbanos do século XXI, decidirão eles viver, como desejam, numa cidade não-poluída e, portanto, abandonar seu automóvel nas portas da cidade ou nos estacionamentos?

Na Idade Média, a cidade possuía uma beleza viva, mas estou convencido de que ela está prestes a conceber novos encantos que irão renovar sua sedução (Jacques Le Goff. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p. 153).

Às vezes, sem que nos demos conta, a cidade na qual habitamos ou com a qual mantemos alguma relação, se transforma de tal maneira que não a reconhecemos quando os nossos olhos a procuram. Nossa memória afetiva, que é construída entrelaçada com a memória urbana, compõe um capítulo substancial da vida que erigimos nesse espaço.

A cidade que nos abriga, a cidade que nos encanta, a cidade que nos amedronta, a cidade, enfim, onde se desenrolam as nossas vivências deve ser tomada, defendida e aceita como sendo o locus inescapável de nossa existência, daí por que nós não podemos e nem devemos negligenciá-la e nem abrir mão dela.

Um comentário:

  1. Muito bom e importante que exista pessoas que se preocupa com nossa história e nossa cultura Parabéns clênio.

    ResponderExcluir