I
Revirando os escaninhos – e
os escombros – de minha memória eu penso que encontrei a gênese daquilo que, no
futuro, se tornaria um dos meus interesses intelectuais e existenciais mais
consistentes, que é o que me vincula à história das cidades, notadamente às
suas transformações e permanências materialmente constituídas.
Inferi, olhando para o meu
passado, que uma experiência de transformação do espaço urbano que eu vivenciei
quando ainda era menino, na minha cidade natal, Abreu e Lima, pode sim, ser
considerado como o start de tudo o
mais que me levaria a me interessar pelas urbs
quando de minha passagem pelo ambiente acadêmico.
Menino que gozou de plena –
e eu poderia até dizer que de absoluta – liberdade de ir e vir, porque éramos
em casa apenas eu e uma mãe que passava o dia trabalhando, o que significava
não ter ninguém para me vigiar e pôr rédeas. Junte-se a isso o fato de que,
vivendo em casas de aluguel, mudávamos constantemente de endereço – creio que
minha mãe nem sempre dispunha do dinheiro da locação; por isso, certa feita,
morando no bairro de Timbó, o proprietário do imóvel que ocupávamos cortou o
fornecimento de água e de energia para que saíssemos da casa. Tempos difíceis
esses, como diria Charles Dickens. Tempos de dificuldades e de humilhações –, e
se compreenda o tanto que eu andei pela jovem e acanhada Abreu e Lima, então
recentemente emancipada de Paulista, passando de um bairro para outro, sem conseguir
fincar raízes em nenhum deles, mas acumulando memória de minha passagem por
eles.
Muito embora existisse num
território que não estava, por assim dizer, distante da capital, a Abreu e Lima
do meu tempo de criança era ela mesma uma cidade-criança, cuja emancipação
política ocorrera em 1982, quando eu contava oito anos de idade. De modo que,
como cenário urbano propriamente dito, a cidade era diminuta – como, aliás,
permanece sendo, ainda que vastas áreas, antes cobertas por vegetação, tenham
sido ocupadas por moradias e outros tipos de edificações –, o espaço rural era
dominante e bastante próximo da área urbanizada. Os da minha geração conheceram
uma Abreu e Lima que possuía um terreno imenso, conhecido como Sítio Bilio, que
começava onde hoje vemos a Praça de São José e ia subindo em direção a Caetés
Velho.
II
Numa das passagens de
“Infância em Berlim”, o filósofo Walter Benjamin sentenciou: “Nunca poderemos
recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do
resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente
deixaríamos de compreender nossa saudade” (Walter Benjamin. “Infância em
Berlim”. In Rua de mão única. Obras
escolhidas II. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins
Barbosa. 5ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995, p. 104-105).
Considerando essa avaliação
benjaminiana enquanto volto os olhos e o pensamento reavivando lembranças, eu
recomponho fragmentos da cidade que um dia existiu fisicamente e que hoje se
encontra fixada em registros fotográficos e na memória de tantos que, como eu,
a conheceram em outros tempos. Abreu e Lima não é para mim apenas saudade: é também
bússola e ponto de partida.
Caso a cidade que conhecemos
na infância tivesse sido conservada intacta até os dias de hoje, talvez, ainda
assim, não a reconhecêssemos inteira e completa, porque nós, em vez dela, nos
transformamos durante o correr do tempo; e essa transformação incutiu em cada
um de nós uma maneira muito própria de enxergar os espaços que a compunham, de
modo que o que antes era ou parecia ser familiar ganha contornos de coisa nova;
ou então é desprezada como se não mais fizesse parte do que agora é a cidade
conhecida e reconstruída dentro de nós.
III
A novidade foi chegando pelo
disse-me-disse: como a cidade era prejudicada pelo intenso tráfego de veículos
de todo tipo que circulavam pela BR 101 que cortava o espaço urbano de ponta a
ponta e passando justamente por sua área central, ela iria ganhar mais quatro
faixas de rodovia. Não demorou muito e começaram as desapropriações e
demolições. Ruas, becos, casas, árvores, estabelecimentos comerciais, tudo foi
sendo posto abaixo e desaparecendo para sempre da nossa experiência cotidiana.
Era o progresso que começava a chegar a Abreu e Lima junto com aquelas
máquinas, diziam muitos. O bota-abaixo logo fez abrir enormes clareiras. Parte
da cidade estava sendo redesenhada e reocupada bem diante dos meus olhos de
menino. Tudo foi sendo desocupado e demolido para dar lugar a quatro faixas de
autopistas. Sumiram da paisagem o Colégio Neusa Rodrigues, a Delegacia de Polícia e dezenas e dezenas de casas e
lojas, apagando um pedaço da memória da cidade.
IV
Como que passando o objeto
do seu estudo a limpo, Lewis Mumford nos conduz por entre ruas, praças e outros
traçados citadinos nos persuadindo a acreditar que, apesar de certas
deficiências, a cidade continua sendo o espaço de redenção da humanidade. No
derradeiro parágrafo do seu monumental estudo A cidade na história ele nos diz assim:
A
missão final da cidade é incentivar a participação consciente do homem no
processo cósmico e no processo histórico. Graças a sua estrutura complexa e
durável, a cidade aumenta enormemente a capacidade de interpretar esses
processos e tomar neles uma parte ativa e formadora, de tal modo que cada fase
do drama que desempenhe vem a ter, no mais elevado grau possível, a iluminação
da consciência, a marca da finalidade, o colorido do amor. Esse engrandecimento
de todas as dimensões da vida, mediante a comunhão emocional, a comunicação
racional e o domínio tecnológico, e, acima de tudo, a representação dramática,
tem sido na história a suprema função da cidade. E permanece como a principal
razão para que a cidade continue existindo (Lewis Mumford. A cidade na história: suas origens,
transformações e perspectivas. Trad. Neil R. Silva. 4ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998, p. 621).
V
As máquinas ditavam o ritmo
apressado da transformação. Muitos homens trabalhando. O cenário de terra
arrasada foi gradativamente dominando a paisagem urbana de Abreu e Lima. Nada
impedia o avançar dos tratores e das escavadeiras. Um morro foi parcialmente
removido. Lá embaixo, próximo à Rua Capitão José Primo, uma árvore de belas e delicadas flores vermelhas resistiu e/ou foi poupada da fome da mecânica
força bruta do maquinário imparável, e permanece viva até hoje assistindo ao vai e vem dos veículos.
A caminho da escola eu
atravessava parte dos canteiros de obras abismado com o fato de que, como se
fosse quase que por uma ação de prestidigitador, aqueles homens que pareciam
deuses e semideuses incansáveis, conferiam outra feição àquela cidadezinha,
modificando cenários inteiros onde milhares de pessoas atuavam diariamente em
seus cotidianos comuns.
Toda a área que virara um
imenso descampado, de uma ponta a outra do perímetro urbano, no sentido sul e
norte, haveria de ser destinada ao tráfego de veículos, como se esse fosse o
seu destino desejado. E como se as casas, os estabelecimentos comerciais, as
ruas e tudo o mais que os tratores e as escavadeiras puseram fim merecessem
mesmo ter suas histórias desmanchadas e apagadas dali.
Outra imagem que eu jamais
vou esquecer: no meio do barulho provocado pelas máquinas que abriam passagem
para a entidade chamada Progresso, indivíduos entravam no canal que seguia pela
Rua Ulisses Pernambucano pegando os camarões de água doce que existiam ali.
VI
Vigora um claro entendimento
entre pelo menos parte dos que estudam a história das cidades, que não se pode
criar e/ou desenvolver uma memória afetiva com relação às cidades se não existe
um convívio com determinados espaços das urbs.
A mim me parece ser uma grande ilusão acreditar que indivíduos que nunca viram
e/ou caminharam por uma determinada via possam de uma hora para outra ser
convocados a apoiar a restauração de um dado edifício antigo, a preservação e
conservação de uma praça e a manutenção de um coreto e/ou de um chafariz no
Largo Fulano de Tal. Penso que, tanto quanto de familiaridade, é necessário que
as pessoas compreendam e saibam por que tal prédio e por que este e aquele
cenário precisam ser preservados na sua cidade; porque uma coisa é ter
familiaridade com determinado edifício no sentido de quem, por exemplo, passa
por ele todos os dias a caminho da escola e/ou do trabalho; e outra, bem diferente,
é entender e saber a importância que aquela edificação tem dentro da memória
urbana na qual está inserida.
Há quem diga que os nossos
centros históricos não atraem muitos turistas e nem mesmo as pessoas das
redondezas por estarem mal conservados. Não, para mim o raciocínio é outro:
nossas cidades históricas apresentam inúmeros prédios em ruínas e outros tantos
seriamente comprometidos e correndo o risco de desaparecer da paisagem porque,
de um modo geral, não somos instruídos desde cedo nem a ir a esses lugares e
nem a valorizá-los, de modo que impera no seio da sociedade brasileira o triste
e lamentável entendimento de que esses espaços só interessam fundamentalmente a
estudiosos ou, quando muito, a gente excêntrica e/ou curiosa; daí por que, em
grande medida, os centros históricos são desprezados pela maioria da população.
E isso diz muito do acúmulo de ruínas que se encontram neles. Ou seja, as
cidades históricas brasileiras estão mal conservadas porque elas não são
valorizadas e as pessoas em massa não as procuram, e não o contrário.
Em seu clássico A imagem da cidade, o norte-americano
Kevin Lynch argumentou que parece haver “uma imagem pública de qualquer cidade
que é a sobreposição de muitas imagens individuais”; ou talvez, prosseguiu ele,
“exista uma série de imagens públicas, cada qual criada por um número
significativo de cidadãos” (Kevin Lynch. A
imagem da cidade. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2011, p. 51). Eu compartilho desse entendimento; e foi bem
na esteira desse pensamento que eu escrevi no tópico II desta narrativa a
propósito de uma eventual mudança de percepção da cidade que pode acometer cada
um de nós.
VII
Faz quase dezoito anos que
eu deixei de morar em Abreu e Lima. Mas é nela que eu trabalho. E é por ela que
eu tenho de passar ao me deslocar em direção à capital Recife. De maneira que,
além de erguida e guardada em lembranças longínquas de minha memória afetiva
que, como foi narrado brevemente aqui, diz respeito também à sua memória
urbana, ela permanece presente no meu olhar e no meu entendimento, não somente
como objeto de recordação, mas também como fato concreto com o qual eu ainda
interajo e mantenho vivências.
Há quem olhe para Abreu e
Lima nos dias de hoje e compreenda que não houve propriamente um crescimento material da cidade desde que ocorreu aquele bota-abaixo havido na década de 1980, e sim
um inchaço populacional que levou à construção de milhares de moradias em áreas
antes ocupadas por um tecido vegetal. De algum modo, essas construções enfeiaram
um pouco mais o tecido urbano abreulimense. E viceja, entre parte de seus
habitantes, uma nítida percepção de que, ao fim e ao cabo, a cidade, na
verdade, perdeu moradias, estabelecimentos comerciais, um colégio,
paisagens e pontos de referência em favor de faixas de autoestradas que não
resolveram o seu problema de tráfego, porque duas antigas faixas de rolamento
que a cortam no sentido sul e norte, permaneceram atravancando o seu núcleo
central. E, em virtude disso, há anos se especula que uma nova obra rodoviária
irá outra vez arrancar mais alguns nacos da já desfigurada Abreu e Lima.
O imperativo da vida sobre
rodas e os projetos rodoviários mal concebidos continuam sendo os maiores
inimigos da preservação da memória urbana neste país.
VIII
O renomado medievalista
francês Jacques Le Goff, falecido há quatro anos, foi certa feita indagado se
nas sociedades ocidentais de fins do século passado, das quais se dizia que o
desejo de cidade era contrariado pelo desejo de natureza, a cidade perdera
definitivamente os seus atrativos. E ele de pronto respondeu:
Não
creio. Mas os urbanos do século XXI, decidirão eles viver, como desejam, numa
cidade não-poluída e, portanto, abandonar seu automóvel nas portas da cidade ou
nos estacionamentos?
Na
Idade Média, a cidade possuía uma beleza viva, mas estou convencido de que ela
está prestes a conceber novos encantos que irão renovar sua sedução
(Jacques Le Goff. Por amor às cidades:
conversações com Jean Lebrun. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes.
São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p. 153).
Às vezes, sem que nos demos
conta, a cidade na qual habitamos ou com a qual mantemos alguma relação, se
transforma de tal maneira que não a reconhecemos quando os nossos olhos a
procuram. Nossa memória afetiva, que é construída entrelaçada com a memória
urbana, compõe um capítulo substancial da vida que erigimos nesse espaço.
A cidade que nos abriga, a
cidade que nos encanta, a cidade que nos amedronta, a cidade, enfim, onde se
desenrolam as nossas vivências deve ser tomada, defendida e aceita como sendo o
locus inescapável de nossa
existência, daí por que nós não podemos e nem devemos negligenciá-la e nem
abrir mão dela.
Muito bom e importante que exista pessoas que se preocupa com nossa história e nossa cultura Parabéns clênio.
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